As luzes do alçapão estão perto de apagar.
Chega
aquele momento em que o forasteiro tem que segurar a esquálida,
transpirada, sacrificada vitória na base da bicuda e da porrada. A
hora em que os nativos avançam destemidos, qual horda de índios,
alçando bolas a esmo em bloco, chutando o vento, buscando, aos
gritos, desmanchar o revés a tapas. O instante em que o mediador,
intimidado ou venal, torna-se mais receptivo ao surgimento de
histórias de superação, de gols tardios, de redenção dos locais.
Nisso, qualquer esbarrão, qualquer tropicão, qualquer escorregão,
transforma-se em motivo. Em pretexto.
A
despeito de tudo isso, o Flamengo parece se comportar bem. Vai
segurando a vitória, tentando tocar a bola naquele pasto, buscando
manter o limitado mas raçudo adversário longe de sua área. Até
chegar a derradeira volta do ponteiro. Uma bola alçada, a matada no
peito pelo zagueiro, situação controlada. Mas, súbito, ergue-se um
sussurro, que se transmuda em murmúrio, que vira clamor, que se
converte em gritos, um urrar eufórico e catártico que, num átimo,
passa a envolver todo o estádio, agora em chamas.
É
pênalti.
Pênalti,
aos 46 minutos do segundo tempo. Pênalti inexistente, ou no mínimo
bem duvidoso. A matada no peito vira mão e a bola está na marca.
Enquanto o estádio canta de alívio, um aglomerado em negro e
vermelho se forma ao redor da ladina figura de preto. É o segundo
pênalti da noite, o segundo discutível, o segundo para os da casa.
O treinador flamengo, colérico, quer bater, quer quebrar, é contido
pela meganha. O árbitro, inerte, parece indiferente à grita dos
visitantes, esboça um sorriso de canto de boca, acende um
cigarrinho, expressão cínica dos facínoras. Fez o jogo. Aos
poucos, a confusão arrefece, o da casa pega a bola. E, de forma tão
fugaz quanto rebentara, aquele alarido tonitroante simplesmente
cessa. O estádio parece gelar, hirto.
Sozinho
debaixo das três traves e sem esboçar o mais remoto traço de
emoção, Ubaldo aguarda a hora da cobrança.
E o
estádio treme.
* * *
O
Flamengo não vive bom momento. É bem verdade que não se pode
reclamar das contratações e da montagem do elenco, seguramente um
dos melhores, talvez o melhor do país. A uma base já fortíssima
(Leandro, Figueiredo, Mozer, Júnior, Andrade, Adílio, Lico) foram
acrescentados reforços de primeira linha (o centroavante Edmar, o
ponta-direita Lúcio Bala, destaque em Guarani e Palmeiras).
Repatriou-se Tita (cujo retorno do empréstimo ao Grêmio foi
antecipado). Na virada de 83 para 84, veio de volta Nunes, que
estava emprestado ao Botafogo, e contratou outro reforço de Seleção
Brasileira, o ponta-esquerda João Paulo, do Santos. Além desses
reforços, ainda há a base, que, além de jogadores de qualidade
formados na Gávea (Hugo goleiro, Zé Carlos II, Adalberto, Bigu,
Gilmar), foi reforçada com a contratação de Bebeto, Guto e Heitor,
campeões mundiais de juniores (sub-20) no México.
E há
Ubaldo. Que veio pro lugar de Raul, aposentado.
No
comando desse plantel, o treinador Cláudio Garcia, que desenvolveu a
base do Fluminense que se sagraria campeão estadual no final do ano
anterior.
Mas, se o
elenco é forte, o clube vive um momento turbulento. Garcia e o
supervisor Roberto Seabra não falam, há muito tempo, a mesma
língua. Há divergências entre alguns vice-presidentes, que ensaiam
um balé de “renuncia-não renuncia” durante todo o semestre. A
própria torcida, ainda ressentida pela saída de Zico, parece
desconfiada. É como se algo ainda estivesse faltando.
O time
até inicia bem a temporada, chega a golear o Santos (4-1) no
Maracanã na estreia da Libertadores (em atuação de gala de Mozer,
a melhor dele pelo rubro-negro). Mas a forma de jogo da equipe parece
dar sinais de esgotamento. João Paulo não consegue se firmar. Lúcio
está gordo e não é sombra do veloz e mortal atacante da Taça
Rio-83. Nunes e Edmar, tensos com a concorrência mútua, não
deslancham. Lico e Adílio já não demonstram a mesma mobilidade
para desempenhar o papel de bloqueio no meio-campo. Mesmo assim, o
Flamengo não encontra dificuldades para transpor a Primeira Fase do
Brasileiro (disputado no primeiro semestre), apesar de algumas
exibições ruins (sai debaixo de vaia após um 3-2 sobre o
Operário-MS, jogo que vencia por 2-0, cedeu o empate e venceu no fim
com um gol irregular. Depois, num 2-2 com o Goiás, também no
Maracanã, a torcida quase invade o campo para agredir os jogadores).
Os
problemas, de fato, começam na Segunda Fase. O Flamengo inicia bem
(3-0 Brasil de Pelotas, 1-0 na Portuguesa em SP). Depois, é goleado
pelo Internacional no Beira-Rio (0-4), cai em Pelotas (0-1) e escapa
de perder para a Portuguesa no Maracanã ao arrancar, nos minutos
finais, um suado 1-1, novamente sob muitas vaias.
Com o
clube em crise, o time emperrado e o emprego por um fio, Cláudio
Garcia pensa em promover várias mudanças. Mas essas alterações
terão de esperar. O Flamengo viaja à Colômbia, onde fará dois
duríssimos jogos pela Libertadores. Precisará de pelo menos três
dos quatro pontos em disputa (apenas se classifica o primeiro da
chave) para se posicionar bem na briga pela classificação. O
momento pede conservadorismo. Experiência.
Mesmo
assim, Garcia surpreende ao escalar, como titular, o jovem volante
Bigu, que formará dupla com Andrade. Na frente, Lico e Adílio
seguem como “falsos-pontas”, com Nunes como o único atacante “de
ofício”. É uma variante defensiva do esquema de 1981, com dois
volantes de contenção realizando o trabalho defensivo mais pesado.
Dá
certo. O esquema funciona e o Flamengo faz ótima partida contra o
forte América de Cali, no temido estádio Pascual Guerrero. O empate
em 1-1 é tido como injusto, pois o rubro-negro desperdiça, pelo
menos, quatro chances reais de gol (entre elas uma cabeçada de Nunes
no travessão). Mais bem escoltados, Lico e Adílio crescem
assustadoramente de produção. A nota desagradável é a lesão de
Leandro, que vinha sendo o destaque do jogo, abatido a patadas pelo
volante Aquino. Aliás, o defensor paraguaio ainda arruma outra
quizumba, ao agredir Nunes, que reage. O auxiliar somente “enxerga”
o revide e Nunes é expulso. De qualquer forma, a boa exibição é
exaltada e o Flamengo recupera a confiança para o jogo seguinte,
contra o Atlético Junior, em Barranquilla.
Ao
contrário do amplo e espaçoso campo de Cali, o Flamengo agora terá
que lidar com o pequeno Estádio Romélio Martínez, para 20 mil
espectadores, que está completamente lotado. O jogo é tido como de
“vida ou morte” para o Atlético Júnior, derrotado na estreia
pelo América (0-2). O rubro-negro, por outro lado, precisa da
vitória para alcançar a pontuação planejada. A primeira novidade
é desagradável. O auxiliar peruano que “expulsara” Nunes no
jogo de Cali agora apitará a partida em Barranquilla.
Cláudio
Garcia promove outro garoto para o lugar do lesionado Leandro. O
lateral-esquerdo Adalberto (que atuara bem na segunda etapa em Cali)
vai para o jogo, com Júnior sendo deslocado para a direita. No lugar
de Nunes, entra Edmar. O restante da equipe é o mesmo.
O jogo é
complicado, desde cedo mostra-se difícil. O Atlético Júnior atua
com disposição, adianta as linhas, não respeita tanto. Alça bolas
a esmo, criando problemas. Pratica um jogo vigoroso, não raro
violento, sob a complacência da arbitragem. Preso, truncado, o
Flamengo pouco cria. Impaciente, Cláudio Garcia não espera o
intervalo e arrisca. Saca Adalberto e coloca o atacante João Paulo.
Júnior volta à lateral-esquerda e Bigu vem para a direita. Adílio
vai para o meio-campo. O Flamengo, com uma alteração, mexe em
quatro posições e abre o time.
Novamente
dá certo. O rubro-negro passa a ocupar o campo adversário e não
demora a abrir o placar, num chutão da defesa que encontra Edmar
sozinho. O centroavante dribla o goleiro e completa para o gol vazio.
Flamengo 1-0. Enfurecidos, os colombianos exigem a anulação do gol,
alegando impedimento, a torcida joga pedras, ameaça invadir, a
Polícia ocupa o gramado. Após muita confusão, o gol é confirmado.
Mas haverá volta.
O
Flamengo recua desnecessariamente, passa a aceitar a pressão do time
local. Tenta trocar passes na defesa, mas o campo está em péssimo
estado. Júnior se atrapalha e perde a bola para o ponta-direita
Barrios, que avança e, diante do goleiro, joga a bola na frente e
salta. Força o choque. Sem titubear, o árbitro aponta para a marca.
O Flamengo exerce a reclamação protocolar, faz uma catimba para
marcar posição, mas o pênalti é cobrado por Galván. Bola dum
lado, goleiro do outro. 1-1.
No
segundo tempo, os times trocam chances de gol, o jogo segue truncado
e pouco definido. Parece se arrastar para o empate, até que aos 33
Edmar sai da área, recebe na ponta-esquerda, faz um carnaval e cruza
rasteiro para Tita, que emenda no ângulo. Flamengo 2-1. Agora,
restam pouco mais de 10 minutos para a vitória redentora.
Já
estamos com 45 minutos. O Flamengo, todo entrincheirado na área,
aguarda suplicante o apito final. O Júnior ataca com os dez de
linha. Bolas vão e vem dentro da área, todas cortadas pela zaga,
que atua bem. Até que Ischia cai pela esquerda e tenta cruzar. Mas a
bola vai baixa e fraca, o suficiente para Figueiredo aparar no peito
e sair jogando. No entanto, o árbitro, solerte e como que esperando
pelo momento do bote, apita, estridente. Pênalti.
Chegou a
hora de Ubaldo.
* * *
O estádio
está trêmulo.
Galván,
novamente diante de Ubaldo, ajeita a bola na marca. Ao contrário do
pênalti anterior, esse é o lance capital da partida. O momento em
que se definirá se sua equipe seguirá viva na competição, ou se
vagará morta-viva nas rodadas seguintes. Não há espaço para
erros. Galván está irremediavelmente condenado ao êxito. Do
contrário, perecerá. E, entre a sobrevivência e a extinção, está
Ubaldo.
O melhor
goleiro do mundo segue frio, sem demonstrar expressão. Olha
fixamente para o atacante, fita-o desafiador. Estica os braços, intimida mostrando sua monumental envergadura. Agacha-se e espera o apito. Pés
concretados ao chão. Nenhum sinal de movimento prévio. Não vai
adivinhar. Vai esperar. Vai despejar toda a responsabilidade em
Galván. Todo o lance, e tudo o que dele decorrer, será graças às
escolhas que fizer o atacante.
O apito
trila, estridente, onipresente. 48 minutos.
Galván
caminha, vacilante, à espera de um mísero sinal que traia o
goleiro. Mas Ubaldo, implacável, imperturbável, não lhe concede a
mais mísera pista. Face congelada, corpo fincado à grama. O atacante
se aproxima da bola. Vai bater no canto direito, repetindo a
anterior. Não, no esquerdo. Direito... Enfim, esquerdo. E chuta,
colocado.
Dura o
piscar de um olho. Ubaldo salta, felino, explode em músculos que o
catapultam na exata direção para onde fora desferido o chute.
Estica-se e, com a palma das mãos, consegue chocar-se com a esfera,
que iria abandonar-se à beira da trave. O chute, embora fraco e
vacilante, é bem colocado. Mas Ubaldo o alcança. Apara a bola e,
noutro salto leonino, engolfa seu corpo ao redor da pelota. Não vai
ter mais jogo.
O estádio
desmaia no mais profundo e consternado silêncio.
Ouvem-se
apenas os gritos em baixo calão daquele bando de invasores, que
agora erigem uma colina em negro e rubro sobre a expressiva figura de
Ubaldo. Tapinhas, empurrões amistosos, abraços. O Flamengo vence a
partida por 2-1. O árbitro tremelica um apito malcriado e sai pelos
fundos, sem ser notado. E aqueles herois da última batalha saem
estropiados, camisas em trapos, manquitolando, espírito esgarçado.
Mas felizes.
Ubaldo
segue caminhando para o vestiário. A bola permanentemente sob o
braço.
Recusa-se
a soltá-la.