Enfim, chega a hora da verdade.
O momento
receado por todos, embora coalhado de avisos, advertências e
análises “científicas”, que, de alguma forma, preconizavam a
situação com a qual o Flamengo agora terá de conviver. E, mais que
isso, lidar com a perspectiva de tomar decisões cruciais. Medidas
que poderão significar a glória ou o desastre. O Éden ou o limbo.
Até
aqui, a temporada tem sido dura, mas o rubro-negro vem sendo
relativamente bem-sucedido. Conquistou a Taça Guanabara com uma
campanha convincente, depois enfrentou dificuldades com a inesperada
e intempestiva demissão de Dino Sani, e sua equipe precisou de
alguns jogos para se adaptar à filosofia do novo treinador, o
ex-jogador Carpegiani, novato na função. Em paralelo, atravessou
com sucesso a duríssima, nervosa e catimbada Primeira Fase da
Libertadores, vencendo um encarniçado duelo contra o Atlético-MG,
cuja equipe foi (novamente) traída pelos nervos no duelo decisivo
final. Mas o desgaste na competição continental cobrou seu preço.
O time, cansado, não foi bem no Segundo Turno e, embora já tenha
mostrado alguns lampejos do que poderia ser capaz (nas contundentes
vitórias por 3-1 sobre o América e o baile no Bangu de Castor, 4-0
em plena Moça Bonita), perdeu vários pontos importantes e sofreu
nos clássicos (arrancou empates em 1-1 com Vasco e Fluminense, sendo
superado pelos adversários nos dois jogos), até sair da disputa
após uma derrota (1-2) para o Botafogo, numa noite gelada de sábado,
resultado que deu o título do turno para o Vasco.
Agora, o
Flamengo se vê às voltas com a disputa das Semifinais da
Libertadores (onde irá enfrentar o perigoso Deportivo Cali-COL e o
modesto Jorge Wilstermann-BOL na altitude de Cochabamba) e com o
Terceiro Turno do Estadual. Os jogos irão se encavalar
inapelavelmente. É o momento de definir qual competição priorizar.
A
diretoria se divide. Uma corrente, liderada pelo presidente, defende
que o Flamengo deveria disputar o Terceiro Turno com uma equipe
mista, priorizando a Libertadores, que dará prestígio
internacional, valorizando a marca. No entanto, outra ala entende que
o rubro-negro possui elenco suficiente para enfrentar simultaneamente
os dois campeonatos, e abrir mão de um deles tiraria a
competitividade dos jogadores, além de dar margem ao risco real da
realização de jogos vazios e deficitários.
A
perspectiva de prejuízos assombra o Flamengo, que tem realizado
esforços descomunais para manter seu elenco (a renovação de Zico,
por exemplo, arrastou-se por meses, até se celebrar um contrato
milionário, quase fora dos padrões brasileiros). O clube não vive
um momento propriamente tranquilo. Estudos da diretoria estimam que o
Flamengo somente fechará a temporada com lucro se chegar às Finais
da Libertadores e do Estadual, e ainda assim precisa que todos os
clássicos apresentem gordas rendas, algo impensável caso o time vá
a campo com reservas.
No
entanto, confronta-se a análise financeira com a questão física. O
plantel apresenta visíveis sinais de desgaste. Nunes está às
voltas com uma suspeita (depois não confirmada) de torção no
joelho. Andrade tem sentido cansaço muscular. Leandro anda
terminando as partidas com dores no joelho. Baroninho se queixa de um
problema na virilha. O ponta-direita Chiquinho também está
lesionado. Ademais, dois jogadores estão fora da temporada, o
lateral Carlos Alberto (lesão nos ligamentos do joelho) e o volante
Vítor (distensão na virilha). Para complicar, os principais
jogadores (Zico, Júnior e Leandro) são figuras certas nos amistosos
da Seleção de Telê, em franca preparação para a Copa do Mundo.
A
discussão acerca de escalar ou não uma equipe mista chega à
comissão técnica e aos jogadores. Zico e Raul são favoráveis à
priorização da Libertadores, entendendo que é uma conquista
inédita, ao contrário do Estadual, “que a gente ganha toda hora”.
Mas o Supervisor Domingos Bosco prefere a escalação dos titulares,
“para manter a torcida mobilizada”. E Carpegiani também repele a
ideia da equipe mista, pois teme perder ritmo de jogo e competição.
“Quem se desgastar mais a gente vai poupando”.
No início
ainda é possível conciliar, mesmo com esforço, as duas
competições. O Flamengo arranca uma vitória importantíssima na
“Batalha de Cali”, ao derrotar o Deportivo Cali por 1-0 (gol de
Nunes) num caldeirão lotado, feito comemorado com festa e champanhe
no voo de volta ao Rio. No Turno, as partidas iniciais, contra
adversários fracos, são vencidas com tranquilidade por titulares em
ritmo de treino (4-0 Olaria, 3-0 Madureira). Mas os problemas físicos
vão crescendo. Contra o Madureira, por exemplo, Carpegiani não tem
volantes para colocar em campo e acaba improvisando Tita na função.
“Em algum momento, vão estourar”, as vozes vão ganhando corpo.
Em outra
partida complicada, o Flamengo enfrenta os 2.600 m de altitude de
Cochabamba e o espevitado adversário. Desafia a escrita (o adversário, em 13 partidas em casa, venceu 11), arranca um suado 2-1 e
praticamente encaminha a vaga para a Final. O destaque nessa partida
é o meia Lico, que estava encostado mas, com as várias lesões do
elenco, ganha uma vaguinha no banco, entra no meio da partida e, com
ótima atuação, participa do lance que dá origem ao gol da vitória
flamenga.
Cinco
dias após enfrentar os bolivianos, o Flamengo está novamente em
campo, agora para o jogo contra o Bangu, no Maracanã. O time,
visivelmente esgotado, arrasta-se em campo, é controlado pelo
adversário e, não fosse o excesso de respeito dos de Moça Bonita,
teria saído de campo derrotado. O chocho 0-0 é crivado de vaias ao
apito final.
A péssima
atuação contra os banguenses logo tem consequências. A diretoria
se reúne com a comissão técnica e, após várias argumentações,
contrarrazões e ponderações, resolve-se. O time titular do
Flamengo está fora do Terceiro Turno do Estadual. O rubro-negro irá
para os jogos com uma equipe mista. Apenas Zico será escalado, para
garantir bom público e arrecadações. O restante do elenco titular
será preservado para a Libertadores.
Assim, o
Flamengo sacramenta de vez a vaga para a Final da competição
continental ao derrotar, sem dificuldades, o Deportivo Cali no
Maracanã (3-0), em ritmo lento, quase desinteressado, que chega a
provocar vaias do público de 28 mil pagantes. Mal parece que aquela
partida, em clima quase de amistoso, define a presença do
rubro-negro na mais importante, até aqui, decisão de sua história.
Menos de
48 horas após derrotar os colombianos, o Flamengo está em campo
novamente, agora no escaldante Ítalo del Cima, contra o Campo
Grande. Apenas quatro titulares estão escalados: Marinho, Andrade,
Tita. E, naturalmente, Zico.
A atuação
do “mistão” é desastrosa. O time é inteiramente dominado pelo
Campusca, sofre um gol, bola na trave e segue perdendo até os 30 da
segunda etapa. Somente após a entrada de Lico o Flamengo reage. Lico
está sem contrato e a diretoria não parece muito interessada na
renovação. Mas o jogador aceita atuar sob seguro. Entra no final do
jogo. Come a bola. Em pouco mais de quinze minutos, dá uma
assistência e marca o gol da virada (2-1), já a quatro minutos do
fim. Após o jogo, recebe um recado da diretoria: “precisamos
conversar sobre aquele contrato...”;
Assustado
com a deprimente atuação da equipe mista, Carpegiani volta a
questionar a iniciativa. Pede nova reunião com a diretoria.
Argumenta, expõe a necessidade de manter os titulares em atividade.
Os dirigentes, não muito satisfeitos com o que viram em Campo
Grande, acedem às argumentações. E o Flamengo anuncia o fim do
time misto.
O
Flamengo pensava em programar uma extravagante rodada dupla, com os
reservas atuando na preliminar contra o Americano e os titulares no
jogo principal, contra o Wilstermann, pela Libertadores. No entanto,
com a decisão de abolir o “mistão”, a ideia é descartada e o
jogo contra o Americano, adiado.
Enquanto
o Flamengo segue discutindo o que fazer com o elenco, uma bomba
estoura na Federação. O presidente do Botafogo vai aos jornais
“denunciar” um “complô” destinado exclusivamente a
prejudicar o seu time. “O Botafogo está sendo perseguido
acintosamente pelas arbitragens”. O efeito prático da presepada é
a deflagração de uma greve dos árbitros cariocas, que não mais
aceitam apitar os jogos do Estadual (serão substituídos por goianos
e mineiros). A diretoria do Flamengo tenta aproveitar o factoide para
paralisar o Estadual, dando assim tempo para o time descansar. Mas
não logra êxito, até porque, interpelado judicialmente pelo
Sindicato de Árbitros, o dirigente botafoguense, em juízo, nega as
declarações, “não foi bem assim”, o que esfria o caso.
Os
dirigentes do Flamengo seguem agindo nos bastidores. Na outra chave
das Semifinais, o Cobreloa-CHI impõe-se sobre os favoritos uruguaios
Nacional e Peñarol e conquista a outra vaga para a Final da
Libertadores. Os chilenos pretendem mandar seu jogo no apertado
alçapão de Calama, onde há registros de intimidações, pedradas e
invasões de campo. O Flamengo bate o pé e exige que os chilenos
atuem em Santiago. “Se o jogo for em Calama, aqui vão jogar na
Gávea”. Não é uma bravata ao todo vazia. A Gávea acaba de ser
reformada e o clube avisa que pode colocar arquibancadas tubulares em
tempo recorde, para suprir a capacidade mínima. Após muita
polêmica, a CSF (Confederação Sul-Americana) confirma as finais
para Maracanã e Nacional de Santiago, minimizando assim mais uma
fonte de desgaste físico para a equipe.
Enquanto
isso, a roda segue girando. Sem Zico e Leandro (que atuaram na
véspera pela Seleção), mas com Júnior (que também jogou, mas
teve que entrar em campo por não haver reservas a serem escalados),
o Flamengo derrota o Wilstermann por 4-1, finalizando as Semifinais
com 100% de aproveitamento. A seguir, o time titular, já mais
descansado, atropela o América (4-0) e arranca um penoso empate
(1-1) contra o Serrano, no acanhado Atílio Marotti (de lembranças
sombrias).
Agora, a
porca irá apertar de vez. É novembro. A tabela marca: Botafogo (dia
08), Americano (10), Final com o Cobreloa (13), Fla-Flu (15), Final
com o Cobreloa (20). Cinco jogos em 12 dias, sendo dois clássicos e
duas finais de Libertadores. Um “match schedule” quase desumano,
praticamente intransponível para os mortais.
O
primeiro embate vai começar. Flamengo x Botafogo.