Enfim, fazendo o certo.
Ao menos
esse é o julgamento da crônica e de parte da torcida, ao avaliar a
política de contratações do Flamengo para a temporada. Após um
ano em que o treinador Paulo Autuori “tirou leite de pedra”,
extraindo de um conjunto limitado um desempenho capaz de fazê-lo
ombrear com os melhores times do país, enfim o rubro-negro aporta
com reforços capazes de dar ao qualificado comandante opções para
a montagem de uma grande equipe.
No
entanto, ao invés de contratações festivas, midiáticas e pouco
produtivas, dessa vez a diretoria acerta ao reforçar posições
carentes e, com isso, construir um conjunto, um “onze” homogêneo
como um todo, ao invés de um time onde coabitam jogadores estelares
e medíocres.
A
primeira transação é vultosa. O Flamengo, enfim, cede ao assédio
do futebol europeu e negocia seu principal jogador, Sávio, para o
Real Madrid. No negócio, o clube espanhol repassa, por empréstimo,
o meia/lateral Zé Roberto e o atacante Rodrigo Fabbri. Rodrigo,
aliás, vem de um excepcional Campeonato Brasileiro e vive grande
fase. Além do empréstimo dos jogadores, os madrilenhos pagam US$
4.5 milhões, parte dos quais é utilizada para repatriar o velho
ídolo Romário que, por US$ 1.5 milhão, é contratado em definitivo
junto ao Valencia-ESP.
Dessa
forma, com a venda de Sávio, o Flamengo traz Zé Roberto, Rodrigo e
a estrela Romário, três jogadores da Seleção Brasileira de
Zagallo (dois deles titulares).
Não para
aí. O rubro-negro traz o meia Palhinha (ex-São Paulo e Cruzeiro) e
o volante/meia Cleisson, destaque no Cruzeiro Campeão da Copa do
Brasil/96 e da Libertadores/97. Além disso, busca no Atlético-PR o
lateral-direito Alberto, tido como um dos mais promissores do país.
Os
reforços se juntam a um elenco com boas peças. O zagueiro Júnior
Baiano, um dos melhores do Brasileiro que acaba de terminar, é
titular absoluto da Seleção Brasileira e vive, talvez, o auge de
sua carreira. O talentoso lateral-esquerdo Athirson, após início
conturbado em que conviveu com uma estranha lesão, parece enfim ter
se firmado. No gol está Clemer, um dos melhores arqueiros do país.
Na quarta-zaga, dois jovens irão brigar pela posição, os elogiados
Luís Alberto e Juan.
E há os
reservas. O irrequieto atacante Lúcio, o habilidoso meia Iranildo
(que disputou bom Brasileiro), o aplicado lateral Fábio Baiano, os
raçudos volantes Maurinho e Jorginho e ainda o veterano Renato
Gaúcho, que, embora não reúna condições de atuar em todos os
jogos, ainda é capaz de qualificar o ataque em momentos esporádicos.
Enfim, o
Flamengo de 1998 acena com um perfil completamente distinto da equipe
aguerrida mas inexperiente que viveu do “quase” na temporada
anterior, um time de garotos que viveu bons momentos, encarnou muitas
vezes o espírito rubro-negro, mas esbarrou nas suas próprias
limitações técnicas e psicológicas.
Agora há,
no mínimo, um bom jogador para cada posição. Paulo Autuori dispõe,
talvez, do mais qualificado elenco de sua carreira. Se foi capaz de
colocar um grupo coalhado de garotos (Lê, Chaveirinho, Bruno Quadros
etc) nas Semifinais do Brasileiro, certamente agora, com jogadores
consagrados em mãos (três titulares da Seleção), logrará montar
uma máquina. A Sele-Fla.
Clemer,
Fábio Baiano (Alberto), Júnior Baiano, Luís Alberto (Juan),
Athirson; Jamir; Cleisson, Zé Roberto; Palhinha, Romário e Rodrigo.
Este é o time-base com que Autuori inicia a temporada, montado numa
espécie de 4.1.2.3, com Jamir à frente da primeira linha da defesa
e Palhinha e Rodrigo atuando pelos lados do campo, mais adiantados
(mas com funções defensivas), para acionar Romário. É um esquema
ousado, que exigirá bastante aplicação tática dos jogadores.
Início
da pré-temporada, na Granja Comary, em Teresópolis. A imprensa,
sempre criativa, repercute, “Aqui não está treinando a Seleção
de Zagallo, mas há a Seleção de Autuori”. O treinador dá seu
primeiro coletivo. Grita, orienta, paralisa a atividade por vários
momentos, cobrando o melhor posicionamento dos atletas. Romário é
um destaque à parte. Dá passes de letra, de ombro. Em um dado
momento, recebe um lançamento e apara de peito para um companheiro.
No ato, acena para o amigo Renato Gaúcho, que está na beira do
campo realizando atividade física em separado: “hoje eu estou
demais, peixe!”. É repreendido por Autuori. “vamos nos
concentrar, é hora de seriedade.”
Vários
se entreolham. O ano promete.
* * *
Zanata,
Vítor Hugo, Fernando, Nelsinho, Bobô e Renato Gaúcho.
Do time
campeão da Copa do Brasil, nada menos que SEIS titulares não
permanecem para a temporada seguinte. Mais de meio time, entre eles o
craque, ídolo e principal jogador. Além disso, a diretoria, que
acaba de assumir o Flamengo, avisa que dificilmente conseguirá repor
todas as perdas.
O cenário
é sombrio.
Outra
baixa é o caro e badalado treinador Jair Pereira, que deixa o
rubro-negro. Em seu lugar, o Flamengo aposta em Vanderlei Luxemburgo,
treinador novato que assombrou o país ao levar o modesto Bragantino
ao título de Campeão Paulista e às Quartas-de Final do Brasileiro.
Luxemburgo, que é carioca e cria da Gávea (foi jogador do clube),
chega disposto a dar um “choque de competitividade” a um ambiente
considerado acomodado e pedante.
Não será
fácil. É verdade que há uma safra talentosa de jogadores da base,
que tem sido utilizada eventualmente nos profissionais desde 1988.
Nomes como Júnior Baiano, Rogério, Fabinho, Piá, Nélio,
Djalminha, Marcelinho e Paulo Nunes, vários dos quais lograram
conquistar, de forma inédita, o titulo da Copa SP. No entanto, a
avaliação interna converge para a conclusão de que a conquista em
gramados paulistas terá atrapalhado a evolução de alguns jovens,
que teriam apresentado sinais de “deslumbramento” e “sapato
alto”.
Além da
questão dos jovens, há ainda o problema com Júnior. O veterano
jogador, apesar de ainda apresentar um futebol de qualidade, parece
desmotivado e propenso a encerrar a carreira. Na temporada anterior,
Júnior conviveu com uma série de problemas com Jair Pereira, que
inclusive chegou a colocá-lo no banco de reservas em um jogo contra
o Bahia, pela Copa do Brasil. Atenta, a diretoria chama o jogador e,
junto com Luxemburgo, pede que ele seja o “guia”, a referência
para a safra de garotos que, inevitavelmente, terá que ser lançada
ao longo do ano. Cético e algo desconfiado, Júnior aceita a
empreitada. Será o regente, o capitão, o líder do novo Flamengo.
Uma espécie de “maestro”.
Mas há
as limitações do elenco, que apenas a qualidade de Júnior e o
talento dos garotos não será capaz de suprir. Há alguns bons
jogadores, como Zé Carlos (que anda gordo e levando frangos),
Uidemar, Zinho, Ailton e o surpreendente centroavante Gaúcho (que
ignorou a “maldição da 9” e atravessou o ano fazendo gols,
recebendo como prêmio a sua contratação em definitivo). Mas é
necessário, imperioso, crucial, contratar reforços, até porque o
Campeonato Brasileiro está às portas.
Luisinho
(volante titular do Botafogo), Carlos Alberto Dias, Nei (zagueiro
titular do Bragantino) e inclusive Bebeto (em baixa no Vasco) são
especulados. Mas, sem dinheiro, o Flamengo sequer esboça algo
concreto para a contratação de jogadores desse nível. A primeira
movimentação do clube no mercado acaba por se tornar a mais
controversa.
O
lateral/meia Leonardo, que estava emprestado ao São Paulo, é
negociado em definitivo com o clube paulista. Em troca, além do
pagamento de US$ 200 mil, chegam em definitivo o goleiro Gilmar e o
zagueiro Adilson. E, emprestado por doze meses, o jovem meia Paulo
César. A transação recebe críticas da imprensa e transtorna parte
da torcida. Trata-se de trocar Leonardo, titular absoluto e destaque
da equipe de Telê Santana, por três de seus RESERVAS, numa operação
praticamente sem custos para o tricolor paulista. Começa mal o
Flamengo.
Depois,
chegam o meia Toninho (Portuguesa), o volante Charles (Guarani) e o
decadente lateral-esquerdo Dida (Palmeiras). Nenhum deles é capaz de
causar o mínimo entusiasmo. Luxemburgo, preocupado com a péssima
repercussão da montagem do elenco, avisa: “teremos trabalho, mas
vamos montar um time competitivo.”
Avalia-se
que o treinador acerta em cheio na primeira metade da frase. Porque
trabalho, muito trabalho, um trabalho insano, será necessário para
fazer desse amontoado flamengo um time minimamente digno. Os mais
alarmistas receiam inclusive o pior, lembrando-se que o Fluminense,
com um elenco tido como superior, por pouco não fora rebaixado em
1990.
Zé
Carlos, Ailton, Adilson, Rogério, Piá; Uidemar (Charles), Júnior,
Toninho (Paulo César), Marcelinho; Gaúcho, Zinho
Muitos
suspiram. O ano promete.
* * *
A
temporada de 1998 revelou-se conturbada desde o início. O “supertime
homogêneo e equilibrado” de Autuori em nenhum momento deu liga e,
após algumas derrotas humilhantes decorrentes de atuações
excessivamente apáticas, Autuori acabou demitido para a chegada de
Joel Santana, que também não conseguiu acertar a equipe. Com os
resultados ruins se acumulando, o Flamengo seguiu em sua ciranda de
compra e venda de jogadores (Júnior Baiano, Zé Roberto e Palhinha foram
devolvidos/negociados, Athirson foi emprestado, chegaram Beto, Marcos
Assunção, Fabão, Ricardo Rocha, Jean, Caio e Pimentel, entre
outros menos cotados), mas, imerso em forte crise, só foi encaixar
um bom futebol quando o risco de rebaixamento já era real e
palpável. A contratação do treinador Evaristo de Macedo deu algum alento e,
enfim, o Flamengo conseguiu exibir algumas semanas de um bom jogo,
mas já era tarde para almejar a algo no Brasileiro. Com final
melancólico, foi um ano para ser esquecido.
Como
esperado, o início da temporada de 1991 não foi fácil. O time
demorou a dar respostas em campo sofreu goleadas humilhantes (chegou
a ser chamado de “pior time da história do Flamengo” nos
jornais) e, aos poucos, Luxemburgo percebeu que deveria encostar os
reforços e abrir espaço para a base. O Flamengo aproveitou um
lítigio entre Gotardo e o Botafogo e conseguiu contratar o zagueiro,
que se tornou um dos pilares da nova equipe, juntamente com Gilmar,
que barrou Zé Carlos. O volante Charles, agora Guerreiro, caiu nas
graças da torcida, exibindo um espírito de luta que passou a se
tornar uma das características da equipe. Mesclando uma base
talentosa, coadjuvantes de bom nível e alguns líderes respeitados,
o Flamengo foi crescendo ao longo da temporada e nem mesmo a
conturbada saída de Luxemburgo (envolto em uma polêmica sobre a
estrutura do clube) foi capaz de frear essa evolução. Em um final
de ano apoteótico, já sob comando de Carlinhos, o Flamengo
conquistou, de forma quase invicta (perdeu apenas um jogo), o
Estadual, que não ganhava há cinco anos. Em uma das vitórias sobre
o Vasco, um cronista estrangeiro chegou a qualificar a atuação
rubro-negra como “a mais perfeita exibição tática de 1991”. A
base estava montada, e “o pior time da história” conquistaria,
no ano seguinte, o Pentacampeonato Brasileiro.”