Segundo tempo.
A bola
lançada chega à cabeça de Arilson, que enxerga um companheiro
livre e vai escorar. Entretanto, o zagueiro português Malta percebe
o movimento e consegue alcançar o atacante. Os dois dividem pelo
alto. Trombam. Vão ao solo. Na queda, o corpulento Malta, com todo o
seu peso, desaba sobre o joelho do jogador flamengo. Arilson urra,
contorcendo-se em dores. O médico entra às pressas no campo e gira
os dois indicadores, no movimento típico de aviso de substituição.
Zagalo coça a cabeça, olha para os lados e chama um jogador. “Vai
lá garoto, dá dois piques aí e entra”.
Fio vai
entrar no gramado. E vai entrar para a história.
* * *
Ano novo,
vida nova.
Após uma
temporada difícil e conturbada, o Flamengo pensa em investir forte
para a temporada de 1972. O plantel é tido como bom, mas falta o
craque, aquele jogador que bota a bola debaixo do braço e resolve. E
a oportunidade surge quando o Botafogo resolve se livrar de Paulo
César Caju, responsabilizado diretamente pela traumática perda do
Campeonato Carioca do ano anterior.


A
diretoria ainda tenta reforçar a comissão técnica. Interessa-se
pelo Supervisor do Vasco, que tem sido elogiado pelo ótimo trabalho
no cruzmaltino. No entanto, apesar da melhor proposta salarial e da
forte crise vivida pelo clube da Colina, o profissional prefere
honrar seu contrato e permanecer em São Januário. Seu nome, Cláudio
Coutinho.

Zagalo
inicia seu trabalho pregando a montagem de uma equipe de alto nível.
“Futebol cauteloso sem ser defensivo”. Com efeito, o Flamengo tem
perdido muitas partidas pelo excesso de entusiasmo. Empurrado pela
torcida, avança o time em demasia e sofre com a defesa exposta. “Já
ganhei vários clássicos assim. Contra o Flamengo, basta esperar.
Agora, que estou aqui, vou resolver esse problema.”
Mas
Zagalo (que volta ao Flamengo, onde se revelou) ainda está diante de
outras questões. O elenco, com 40 jogadores, está inchado. Vários
atletas estão gordos e desmotivados. Outros simplesmente não
rendem. Nomes como Dionísio, Samarone, Arílson, Zanata e Paulo
Henrique, tidos como importantes, estão em baixa, por motivos
diversos. Zagalo, em sua primeira semana, chama um por um para
conversas individuais e avisa que dará chances a todos. Depois da
pré-temporada, resolverá quem permanece.
Com isso,
os jovens da base perdem espaço. Zico, Rondinelli, Cantarele, Jaime
e Vanderlei, entre outros, estão fora dos planos para a temporada
dos profissionais, e seguirão nos juniores.

O teste
seguinte é o Torneio Internacional de Verão, um triangular que
também conta com Vasco e Benfica-POR. Para a competição, Zagalo
pensa numa formação com Ubirajara, Aloísio, Fred, Reyes e Paulo
Henrique; Liminha, Rodrigues Neto e Paulo César; Rogério, Caio e
Arílson. Esse time ainda deverá contar, no futuro, com o retorno de
Zanata (que se recupera de uma cirurgia) e Doval, que retorna de um
“exílio forçado” na Argentina, decorrente de atritos com
Yustrich.
A partida
que abre o torneio é Flamengo x Benfica. O alvirrubro, campeão
português, líder da temporada e semifinalista da Copa dos Campeões
(futura Champions League), ostenta uma das principais equipes da
Europa. Ressente-se de alguns desfalques, como o atacante Artur Jorge
e Eusébio, a Pantera Negra, que vem ao Brasil mas ainda se recupera
de lesão. Seu treinador, o inglês Jimmy Hagan, com típica postura
arrogante, declara ser “obrigação impor-se a qualquer
adversário”.
Noite de
sábado, tempo bom, Maracanã, 45 mil.
A partida
é truncada, tática, daquelas que encantam os cronistas e entediam o
torcedor. O Benfica, sem seus principais atacantes, monta um esquema
defensivo, espera o Flamengo para contragolpes. Zagalo, com sua
costumeira cautela, não solta a cavalaria e prefere povoar o
meio-campo. O resultado é um jogo pesado, duro, com muitas divididas
fortes e poucas chances de gol. Os portugueses rendem melhor na
primeira etapa, e chegam a perder uma chance clara, barrada por uma
bela defesa de Ubirajara em chute forte de Jordão. O Flamengo apenas
ameaça com o ponta-direita Rogério, principal figura em campo.
Rogério vai mostrando o futebol que quase o levou para a Copa de
1970 (foi cortado por lesão) e enlouquece os marcadores. Mas não
consegue dar sequência aos lances.
O
primeiro tempo termina 0-0. Na volta do intervalo, o quadro geral não
se altera e a partida parece mesmo pender para um tristonho empate. É
quando acontece a disputa de bola que tira Arílson de campo.
* * *
Vai
entrar Fio. Entra o “Crioulo Doido”.
“E
novamente ele chegou, com inspiração...”

“Com
muito amor, com emoção, com explosão em gol...”
A entrada
de Fio incendeia a partida. Paulo César vai jogar na ponta-esquerda,
Caio recua para o meio e o “Crioulo Doido” vai para sua posição,
o meio da área. O Flamengo se torna mais leve, lépido, ofensivo.
Começa a pressionar mais. E a se expor. As chances de gol, antes
escassas, agora irrigam o amistoso. O gol, para qualquer lado, parece
próximo. Radialistas evocam, “está amadurecendo”
“Sacudindo
a torcida aos 33 minutos do segundo tempo...”
São
trinta e três minutos. Rogério recebe de Fio pela ponta-direita.
Costura pela intermediária e enxerga o próprio Fio, desmarcado. O
lançamento, na corrida, é perfeito. Fio se projeta e vai ao
encontro da bola, correndo para realizar a jogada de sua vida.
“Tabelou,
driblou dois zagueiros, deu um toque, driblou o goleiro...”
O
primeiro a dar combate é Messias. Fio, em altíssima velocidade,
ginga, reboleteia a cintura, num meneio põe o português ao chão.
Depois chega Artur, pronto para o choque. Com a ponta dos pés, o
“Crioulo Doido” dá um leve toque, deixando o zagueiro na
saudade. Agora está apenas diante do goleiro. Um corte seco. A
vítima, estendida. E as portas da plenitude, escancaradas à sua
frente.
Tudo se
passa em uma fração de pensamento. Não há tempo para raciocinar,
pensar, imaginar o que fazer. Há uma baliza, aberta, ampla,
arreganhada, oferecendo a felicidade. Fio apenas empurra, com
imponderável tranquilidade, consumando o desfecho celestial em gol.
O Maracanã vai abaixo, desaba em gritos de amor e paixão. Enfim, o
destrambelhado Fio vive seu momento mágico, seu instante de craque.
A carreira, os sacrifícios, o sofrimento, as chacotas, nada é
comparável à maravilhosa delícia de ter uma nação cantando seu
nome e seu feito. Fio, enfim, é um Herói Rubro-Negro.
“Nós gostamos de você...”
Depois do
gol, o Benfica vem com tudo em busca do empate. Mas é o Flamengo que
quase amplia, executando à perfeição a tática dos contragolpes de
Zagalo. Paulo César, enfim, faz uma grande partida, mostrando porque
foi contratado. Mais alguns episódios de luta, e a partida termina
mesmo com o placar marcando Flamengo 1-0 Benfica.

Mas o
grande legado daquela noite de sábado será logo revelado. Um jovem,
mas já famoso compositor, rubro-negro até o tronco da medula, que
estava nas arquibancadas daquela partida, mostra-se hipnotizado com o
gol que presenciara. Rabisca uma melodia aqui, uns versos ali.
Algumas sessões de ensaio, outros tantos rabiscos e correções, e a
música está pronta para gravar.
Vai
nascer o Fio Maravilha.
"O Flamengo derrota o Vasco por 1-0, gol de Paulo César, e conquista o Torneio de Verão de 1972, repetindo o feito de 1970. Poucas semanas mais tarde, o time de Zagalo conquista o Torneio do Povo (que conta com seis equipes), com um empate contra o Internacional (0-0). Ainda levantará a Taça Guanabara, após golear o Fluminense (5-2) na final, e enfim encerrará um incômodo jejum, faturando o Campeonato Estadual, ao vencer o mesmo Fluminense por 2-1."