Saudações flamengas a todos,
Têm sido
recorrentes as queixas contra um suposto “excesso de
profissionalização”, que estaria “matando a essência” do
verdadeiro futebol. Tal argumentação, a despeito de conter, muitas
vezes, vivo saudosismo, não é propriamente recente, e os mais
atentos talvez se recordarão de ouvir reiteradas vezes algo
semelhante, ao longo dos anos.
Isto
posto, trago hoje alguns “causos” de uma era romântica. Talvez
romântica demais. Histórias que talvez hoje soem divertidas, mas
que faziam parte do cotidiano do esporte nas priscas eras. Então,
boa leitura.
* * *
“BOLA
PRO MATO”
Fluminense
e Flamengo entram em campo para a última partida do Campeonato de
1916. O jogo possui caráter pouco mais que amistoso, se é que se
pode assim denominar um match entre os dois rivais. De qualquer
forma, a competição já está definida (o América é o campeão),
e os dois clubes mandam a campo formações mistas, com vários
titulares ausentes. O jogo é disputado em General Severiano, e a
assistência, na maioria composta por associados do Botafogo, esquece
sua antiga rivalidade com os fluminenses e prefere torcer contra o
Flamengo.
A partida
se prenuncia rija, disputada, férrea, já com poucos minutos. Com
efeito, algumas divididas mais duras são inevitáveis, bem como os
indefectíveis chutões para o alto. Num desses pouco edificantes
lances, a bola, despejada por um bico de chanca mais rústico, é
expelida para fora do perímetro da praça de esportes botafoguense,
ultrapassando-lhe a cerca e indo alojar-se em uma vala de difícil
acesso. O árbitro e o representante da Liga Metropolitana se
entreolham. Não há bolas reservas. Dá-se o impasse. Os jogadores,
mãos às cadeiras, desmobilizam-se, sentam-se ao gramado, alguns
bocejam. Um ou outro gaiato sugere um baralhinho para passar o tempo.
Enquanto o Botafogo e a Liga não chegam a um acordo acerca de como
ou por quem se dará a recuperação da foragida bola, o público
resolve se dedicar a uma longa, sonora, caudalosa e enérgica vaia.
Berra pelo dinheiro de volta, xinga os da Liga, do Botafogo, do
Flamengo e do Fluminense. Está indócil.
Quando a
possibilidade de remarcação do jogo por falta de bolas parece real,
eis que alguém aparece com um improvável trambolho. Uma trapizonga
que consiste de um longo, muito longo, pedaço de pau, ao qual está
presa uma corda com uma rede, dessas de pescar siri, em uma das
pontas. O treco paira baloiçando sobre a cabeça dos presentes,
assustando o público. Alguém irrompe com uma imensa escada,
encaixa-a precariamente sobre a cerca demarcatória e, de forma algo
desengonçada, maneja a joça até, de forma inverossímil, conseguir
capturar o balão de couro, sob apupos, assovios irreverentes,
tímidas palmas e mais vaias.
O jogo
recomeça e, sob ameaça de nova interrupção por falta de luz
natural, é vencido pelos das Laranjeiras por 3-1.
“O
TAPA, ESSA INTERFERÊNCIA INTERNA”
Tem sido
um ano frustrante para o Carioca FC.
A
simpática agremiação rubra da Gávea conquistara o Torneio Início
do Campeonato de 1919. E, com isso, apressadamente alguns elementos
da crônica esportiva haviam-na alçado ao posto de candidata ao
título de Campeã da Cidade. O inusitado galardão, como costuma
acontecer ao ser conferido a equipes de menor estrutura, revela-se um
peso demasiado alto para o modesto eleven.
O
Campeonato vai chegando ao final e o Carioca vai arrastando-se na
décima e última colocação. Recebe o Flamengo em seu campo, na
Estrada Dona Castorina, na Gávea. Como esperado, o Flamengo se impõe
e vai vencendo sem a menor dificuldade por 2-0, e pressionando para
ampliar o marcador. Eis que, nervosos e sem o controle emocional
adequado, os rubros começam a distribuir pontapés em quem lhes
aparece à frente. Em um dado momento, um dirigente do Carioca invade
o campo e desfere um chute no goleiro flamengo Laport, que revida,
dando início a um colossal sururu em que todos batem e apanham. A
duras penas, o árbitro consegue acalmar os ânimos, reiniciando o
prélio.
Ainda há
mais. Em uma boa trama, o Flamengo, como previsível, chega ao seu
terceiro gol. Mais confusão. Um zagueiro levanta o braço, o goleiro
reclama de algo. Os do Carioca cercam o indefeso árbitro, que, sem
pestanejar, aponta para o centro do campo. Até que o intrépido
Buíca, meia rubro com físico de guarda-roupas, corre célere,
imparável, bufante, olhos dardejantes, em direção ao juiz. Sem uma
palavra, sem um pio, sem sequer alterar a expressão colérica de seu
rosto, Buíca aproxima-se do referee e apresenta sua linha de
argumentação, desferindo-lhe um sonoro e estalado tapa na planta da
orelha e um “cachação” na testa do pobre juiz.
Diante de
tão persuasiva interferência externa, o árbitro tenta catar no
gramado os andrajos do que resta de sua dignidade e “desmarca” o
gol, assinalando bola ao chão. Ninguém entende nada. “Foi gol ou
não foi”? A confusão se manterá até o final da partida. O
Flamengo ainda marca outro tento, sacramentando a fácil vitória. No
dia seguinte, metade dos jornais do Rio cravará o placar de 3-0,
considerando anulado o gol. Outra metade defenderá o score de 4-0,
entendendo que, apesar da bolacha sofrida, o árbitro consignara o
tento. O imbróglio somente é resolvido dias depois, quando a Liga
Metropolitana homologa a vitória flamenga por 3-0, banindo o
valentão Buíca dos gramados.
“ESSAS
CORES SÃO NOSSAS”
Confusa é
a definição do formato do Campeonato de 1917. Uma rebelião dos
clubes menores quase leva à cisão a Liga Metropolitana. A questão
repousa na irreversível expansão e popularização do futebol na
capital federal, o que leva a uma grita por um maior número de vagas
no Campeonato da Cidade, restrito a apenas sete equipes. Os clubes
menores desejam um campeonato com pelo menos 14 participantes. Os
grandes batem o pé e não abrem mão do formato com sete membros,
que permite a realização de excursões e amistosos. Após
interminável impasse, reuniões, encontros, ameaças de ruptura,
tabelas divulgadas e depois canceladas, enfim se chega a um acordo. O
Campeonato terá dez equipes participantes por divisão, mantendo-se
o rebaixamento/promoção de um clube por temporada.
Quando a
paz parece reinar, eis que o SC Mangueira, um dos clubes içados à
elite pela canetada, envia um requerimento à Liga. Exige que o CR
Flamengo altere suas cores, alegando que, por ser rubro-negro e ser
filiado há mais tempo na Liga (o clube tijucano fora fundado em
1906), possui prioridade e precedência de escolha. E, no entender de
seus dirigentes, sua camisa confunde-se demasiadamente com o novo
Manto Flamengo (que recentemente eliminara os frisos brancos de seu
uniforme). O Flamengo, naturalmente, recusa-se frontalmente a sequer
discutir o assunto, não aceitando interferências externas na
definição de suas cores, um assunto íntimo da instituição.
A
questão, embora seja tratada como um “assunto menor” pela
imprensa (“não vemos motivo para tanta balbúrdia. Um clube joga
com listras verticais, outro as usa horizontais. É perfeitamente
possível distingui-las em campo”), já chama a atenção para um
debate mais amplo. No ano anterior, um incidente parecido numa
partida entre Andarahy e Botafogo (ambos os times usando camisas
brancas com listras escuras verticais) quase anulara o match. Vários
espectadores, especialmente os que se situam nos lugares mais
distantes dos estádios, têm registrado queixas sobre a distinção
dos uniformes. Em dias chuvosos e campos enlameados, o problema se
acentua.
A Liga
resolve a questão mostrando raro bom senso. Flexibiliza a regra do
uniforme único e institui que, em jogos onde houver choque de cores,
o time da casa deverá utilizar camisas brancas. E, assim, em 03 de
junho, o Flamengo alinha contra o SC Mangueira, na Rua Paysandu,
ostentando, pela primeira vez em sua história, um uniforme reserva
composto de camisas inteiramente brancas. A camisa “dá sorte”, e
o Flamengo vence o jogo (em que era franco favorito) por 2-1.
“PRECISA
TREINAR? ANUNCIE AQUI”
O futebol
amador dos anos 1910 é desprovido de departamentos, comissões e
outras estruturas permanentes. O eleven resta a cargo de um “ground
commitee”, e o capitão, eleito pelo grupo, torna-se o responsável
pela comunicação entre a diretoria e o plantel. Nesse contexto, os
treinamentos, após marcados, são anunciados nos jornais, qual
classificados.
Significa
que, caso deseje se inteirar da data, hora e local do próximo
treinamento de seu team, o sportsman precisará estar atento à
página de sports de algum jornal de grande circulação do Rio de
Janeiro. Lá constará a convocação para algum training ou
match-training (jogo-treino), com detalhes sobre a apresentação,
ponto de encontro e outros aspectos práticos.
Consta
que, em determinados momentos, o Flamengo tem enfrentado dificuldades
para reunir todo seu elenco para os treinamentos.
“O JUIZ
ANÔNIMO”
Flamengo
e Andarahy se preparam para iniciar a partida válida pela penúltima
rodada do Campeonato de 1916, já sem qualquer interesse e influência
para o desfecho da competição. As arquibancadas do Estádio da Rua
Paysandu estão quase vazias, denotando a baixa importância do
prélio.
Os times
vão realizando seu trabalho de aquecimento no gramado, quando alguém
sussurra aos seus respectivos capitães. “Não há juiz”. “Como
assim, não há juiz?”. “O juiz não veio. Nem o juiz, nem o
substituto”.
É um
problema, em que pese inusitado, relativamente previsível. Sem uma
estrutura de formação e prospecção de árbitros, a Liga se vale
do tradicional e já anacrônico modelo de nomear jogadores de
equipes terceiras para arbitrar as partidas de seu Campeonato. Ou
seja, um match entre Flamengo e América é dirigido por um jogador
do Botafogo, já uma partida entre Fluminense e São Cristóvão terá
arbitragem de um player do Andarahy, e assim sucessivamente. No
entanto, o futebol a cada dia se torna um esporte de competição,
onde os preceitos de “fair-play” e cavalheirismo em campo vão
sendo confinados a limites bastante estreitos. Nesse contexto, não é
raro um árbitro deixar o campo sob pontapés, pedradas, cusparadas
ou xingamentos de toda espécie. Ironicamente, acontecera exatamente
há poucos minutos, na preliminar dos segundos teams, onde o árbitro
encerrara prematuramente a partida, abatido a tapas pelos jogadores
do Andarahy, que acabaram inapelavelmente expulsos. Todos eles.
Agora, no
jogo principal, eis que rebenta o problema. Não há árbitro.
No
entanto, antes que a ausência do referee seja ecoada para todo o
ground e percebida pela assistência, eis que irrompe do firmamento
um rapaz mirrado, impecavelmente engalanado com um reluzente blazer
branco entremeado por retintos adornos em negro, cabelos
minuciosamente penteados e ostentando um brilho ofuscante, e banhado
em um perfume que se faz sentir em todos os recônditos do campo.
Adentra saltitante o gramado e, gestual excessivo mas firme, avisa,
solerte, voz em falsete.
“Eu
serei o referee!”
Os
jogadores se entreolham, mãos à boca, tentando em vão disfarçar o
riso. Dirigentes conferenciam à beira do campo. O captain do
Flamengo reúne os seus em roda, para discutir o caso. O homenzinho,
já esboçando alguma irritação, bola sob os braços, parece
apressado: “vamos, vamos, o tempo está se esvaindo!”
Alguém
se lembra de trazer a hilária situação à realidade. Indaga, “quem
é o senhor?”. O rapazinho se apresenta como jogador do River FC,
clube filiado e, portanto, apto a dirigir partidas. “possui
identificação, o cartão da Liga?”, referindo-se ao documento
distribuído pela Liga aos sportsmen aptos a atuar como referees.
“Er... bem... não está aqui comigo, não sabia que era
necessário”. Cria-se o impasse.
O que há
de concreto: dois times prontos para jogar, um público que, embora
pequeno, já demonstra impaciência, um árbitro que faltara e é
substituído por um estranho e desconhecido voluntário, e uma tabela
quase sem datas para remarcação de jogos.
Eis que
alguém, mais movido por um senso prático do que por algum juízo,
chama os captains e argumenta: “Olha, vamos ter o jogo. Estamos
todos aqui, então que haja o match. Deixa o rapazola apitar. Na pior
das hipóteses, se se comprovar tratar-se de um embusteiro, de um
charlatão, anulamos a partida na Liga e fazemos um rematch. Mas, se
ele estiver falando a verdade, já teremos cumprido o compromisso da
tabela.”
E assim,
o espevitado moço é autorizado a dar início à partida. Que,
sonolenta, termina em um aborrecido 0-0. O anônimo e suspeito
referee surpreende com uma atuação perfeita, sendo elogiado pelos
dois teams.
Mais
tarde, comprovará tratar-se do Sr. Veira, do River FC, e o resultado
será confirmado e mantido pela Liga.
Boa
semana a todos,