quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Alfarrábios do Melo

Dia de decisão.

O Maracanã está lotado, engalanado. 70 mil almas se acomodam sobre o velho gigante de cimento, formando um vibrante mosaico em negro e rubro, pulsante, fervilhante, rico, em que braços, bandeiras, faixas e corpos fervem em sincronizada desarmonia, formando um só organismo vivo. O sol, escaldante, refulge sobre a massa de gente, revestindo-lhe de um ofuscante brilho escarlate, que cintila diante das retinas do espectador embevecido, que se vê entorpecidamente contemplando uma feérica aquarela de sensações. O cenário é idílico, festivo.

Menos para um.

Começa com o anúncio dos times. O Flamengo, mandante, tem seus heróis cantados, aplaudidos, festejados. O goleiro do adversário é recebido com vaias protocolares, nada de excepcional. No entanto, eis que o nome “dele” é proclamado, fazendo irromper um troar uníssono, que rebenta harmônico, compassado, numa estocada capaz de ferir de morte o mais indiferente dos cínicos.

“É ESSE, É ESSE!”

O Camisa 4 recebe a “homenagem” em silêncio. Está cabisbaixo. Tenta manter-se indiferente à multidão enquanto bate bola no aquecimento. Os mais atentos percebem-no arrepiado, crispado. Não há o mais remoto sinal de sorriso em sua face.

Começa o jogo. Como em toda final, os primeiros minutos são estudados e truncados, muito contato físico, correria, disciplina tática, força e raras chances de gol. A defesa troca passes, a bola chega ao Camisa 4. Sua primeira participação no jogo. O estádio urra de novo, inflamável.

“É ESSE, É ESSE!”

Seu pecado vem de alguns meses atrás quando, numa voadora ensandecida, destroçou as duas pernas do ídolo maior flamengo. Imolou o santo maior do altar de uma religião. Tirou de uma nação seu prazer maior. Transformou em trevas o que era, até então, amor e alegria. Agora irá pagar.

O Camisa 4 recebe, tenta um passe. Erra. Vai cobrir um companheiro, dá um bote num flamengo. Erra. Prepara-se para um desarme. Erra. Vai fazer um lançamento. Erra. E erra e erra. Erra repetida e sistematicamente. A cada erro, a cada tropicão, está lá a multidão, enfurecida, inexorável.

“É ESSE, É ESSE!”

É um jogador menos ruim do que a percepção que deixará para a posteridade. Lateral versátil, capaz de atuar dos dois lados do campo, também pode ser improvisado de zagueiro. Marca bem, possui boa mobilidade e passe razoável. Seu cruzamento é preciso, a despeito de sua pouca técnica. Um ponto fraco é o excesso de voluntarismo, que o torna vulnerável a determinadas circunstâncias de jogo. Mesmo assim, poderia ascender na carreira, chegou a disputar Final de Brasileiro. Aquele lance, naquela fatídica noite de quinta-feira, acabou com tudo.

Saída de bola. O camisa 4 tenta acionar o meio, erra. Na sequência, uma fulminante troca de passes, bola na área, gol. O Flamengo abre o placar.

Não é o primeiro reencontro com o Flamengo e sua torcida após a tragédia. Na primeira rodada do returno, já havia sentido vívida hostilidade, mas o jogo estava esvaziado, o rubro-negro em crise, o Maracanã com dez mil almas. Nada, absolutamente nada, comparado ao estádio agora em chamas, enlouquecido, dando as mãos e jogando junto com seus heróis, e apontando, inquisidor, implacável, sem alívio e sem perdão.

“É ESSE, É ESSE!”

Está visivelmente transtornado. A grama, afiada, perfura-lhe os pés, como facas. A camisa lhe sufoca, verga-lhe as costas. O suor mal escorre, denso, quente, pesado. O ar fica-lhe preso na garganta, apertando-lhe em torniquete. Os olhos ardem, incapazes de encontrar qualquer rabisco de refúgio. Nada naquele inferno se apresenta remotamente receptivo. Quer gritar, fugir, correr, sumir, acabar com aquele tormento. Tenta se acostumar, ambientar-se, mas os gritos parece que aumentam, roam em um rumoroso e insuportável eco, que vai consumindo, corroendo, estraçalhando suas vísceras.

“É ESSE, É ESSE!”

O primeiro tempo vai chegando ao seu final. O Flamengo segue mantendo a vantagem, continua pressionando, quase amplia. Mas o último apito é dado com o placar estacionado na contagem mínima. É o intervalo.

Pausa. Mas passa rápido.

Pode ter sido o esporro, pode ter sido o breve descanso, pode ter sido algum traço de brio, o Camisa 4 retorna mais ativo, menos letárgico, jogando algo parecido com seu futebol usual. Mas isso se esvai com desconcertante fugacidade. Não dura 5 minutos e voltam os passes errados, as caneladas, a perna presa. Combativa e nunca desatenta, a torcida retoma seu mantra, abandonando os pulmões a cada berro, incapaz de exercitar a clemência.

“É ESSE, É ESSE!”

Seu time agora tenta pressionar, mas também parece sentir o impacto do cenário. Seus companheiros estão nervosos, reclamam da arbitragem, erram jogadas fáceis. O Camisa 4, já embriagado e farto, começa a distribuir pontapés, a entrar mais forte. Parece agora querer desafiar 70 mil almas, como se tirasse as vestes e esmurrasse o peito, valente. Acerta uma entrada desclassificante no ponta-esquerda do Flamengo. O árbitro, de conversa, fala três ou quatro palavrões mas não dá o cartão. O Maracanã vai abaixo, possesso, na insana fúria dos que querem se fartar dos despojos de seu vilão. Exige retaliação. Clama por morte.

“É ESSE, É ESSE!”

Os jogadores do Flamengo, embora ainda magoados e irritados com a ausência de seu líder, até então têm evitado recorrer à porrada. Sabem que, diante do objetivo maior, diante da busca pela taça, precisam jogar bola e esquecer artifícios extracampo. No entanto, não alisam. Jamais vão de pé macio, sempre deixam a podre pro 4. Depois da voadora no ponta-esquerda, um flamengo dá em seu tornozelo. Põe dedo na cara. Na próxima, quebro. E o Maracanã parece gritar gol. 

Em outro momento, seria só mais uma intimidação normal de jogo. Mas não hoje. Hoje qualquer hostilidade abala, sufoca. E o Camisa 4 some. De vez. Vai fazer número ali na lateral, tocar bola pro lado.

O relógio vai escoando, o Flamengo entrincheira-se atrás, nega qualquer espaço a partir da linha central, acossa com contragolpes. O adversário vai esmorecendo, esvaindo-se, está sem forças para ameaçar a vitória e o título rubro-negro. Desarvorado, apavorado e transformado em uma caricatura que erra sem destino em campo, o Camisa 4 apenas roga para que aquele pesadelo se extinga. Já enfrentara outras vezes o Flamengo e sua torcida num Maracanã lotado, já estava acostumado àquela atmosfera. Entretanto, nunca se deparara com nada sequer parecido com o que está acontecendo hoje. Um estádio inteiro, o templo sagrado do futebol apontando-lhe os dedos, milhares de olhos e vozes unidos com o único intuito de hostilizá-lo, massacrá-lo, pisotear sua existência, sua dignidade. Está sozinho, moído e espicaçado por toda uma Nação.

“É ESSE, É ESSE!”

O jogo chega ao fim. O Flamengo vence por 1-0 e é campeão. Finalmente a torcida deixa-lhe em paz e vai cantar, feliz, sua taça. O Camisa 4, após sua pior atuação no ano, vai descendo as escadas, ganhando o rumo do vestiário. Anda devagar, melancólico, olhar distante, ainda tentando absorver o que acaba de presenciar. Liberta-se momentaneamente dos sufocantes grilhões que lhe asfixiaram o ímpeto, mas sabe que, dali pra frente, nunca mais será apenas um esforçado e razoável defensor.

A partir de agora, será um maldito. Para todo o sempre.