Saudações flamengas a todos,
Outro dia
me chamava a atenção uma distorção recorrente que costuma ser
invocada pela torcida tricolor, com o intuito de enaltecer um
pretenso receio rubro-negro no choque com o rival, citando a passagem
no hino que diria “Nos Fla-Flus é um ai-jesus”, como que os
flamengos tremessem de expectativa a cada encontro com os de
Laranjeiras, já antevendo a pedreira.
Na
verdade não é bem assim. O hino do Lamartine quer dizer exatamente
o contrário.
Aproveitando
o gancho, será que nós flamengos sabemos entender, interpretar e
expressar o sentido do nosso hino? Seu contexto, sua índole?
É isso o
que essas rabiscadas linhas terão a pretensão de deslindar, mesmo
que de forma superficial.
Antes, um breve apanhado histórico.
O Hino
Oficial do Flamengo foi executado publicamente pela primeira vez em
novembro de 1920 (por ocasião do aniversário de 25 anos do clube),
tendo sido composto por Paulo Magalhães, goleiro do rubro-negro nos
anos 1918/19. Em que pese já existir uma miríade de canções,
poemas e outras manifestações artísticas, a composição de
Magalhães logo caiu nas graças e no gosto popular, pelo seu caráter
inovador. Ao contrário de rebuscadas narrativas épicas, tratava-se
de uma marchinha com uma linguagem simples e uma melodia alegre. O
Hino tornou-se um sucesso imediato e foi tornado Oficial pelo clube,
mantendo esse status até hoje. Seu verso mais conhecido apregoa:
“Flamengo, Flamengo/ Tua Glória é Lutar/ Flamengo, Flamengo/
Campeão de Terra e Mar”.
No
entanto, a música que passou a identificar o Flamengo para a
posteridade, e que se tornou consagrada como o Hino do clube, foi
composta por Lamartine Babo em 1942, sendo gravada pela primeira vez
em 1945, na esteira do tricampeonato conquistado no ano anterior. Seu
sucesso foi tão estrondoso que Lamartine acabaria instado a compor
“hinos populares” para os demais clubes da capital carioca, o que
efetivamente foi levado a cabo, com repercussão tão positiva que
até hoje os hinos mais conhecidos de Fluminense, Botafogo, Vasco e
América são as músicas do compositor. Como se oficiais fossem.
Igual com
o Flamengo. A música “Sempre Flamengo”, de Lamartine,
consolidou-se como o “Hino Popular” do clube, o hino
extraoficial, e é nela que este texto irá se debruçar a partir de
agora.
UMA VEZ
FLAMENGO, SEMPRE FLAMENGO
FLAMENGO
SEMPRE EU HEI DE SER
Desde o
início a composição já demarca qual será sua principal
característica. Uma declaração de amor de um torcedor. Nada de
sofisticadas construções falando de “glória insculpida por
triunfos arrancados com denodo e élan no ardor do prélio”, ou de
versos intrincados enaltecendo algo que paira em algum panteão
imortal. Trata-se de um caso de amor. “Eu fui, sou e sempre serei
Flamengo. Estou apaixonado. Nunca trairei minha paixão, meu amor”.
Simples assim. Esse é o escopo, que ditará o ritmo de toda a obra.
Porque o Flamengo é visceral, pulsante, não admite ponderações.
Ama-se o Flamengo com entrega plena, a ele doa-se uma existência. E
isso é o que basta.
É O MEU
MAIOR PRAZER, VÊ-LO BRILHAR
Não há
satisfação mais plena do que uma vitória do Flamengo. Quando o
Flamengo ganha o céu é mais azul, os pássaros cantam mais bonito,
o chefe é mais simpático, o pisão no pé arranca sorrisos, o
almoço é mais saboroso, enfim, o triunfo flamengo é a poética
consumação de um tórrido caso de amor.
SEJA NA
TERRA, SEJA NO MAR
Aqui se
remete ao epíteto que consagrou o Flamengo em seus primórdios, o de
“Campeão de Terra e Mar”, que descreve um clube vitorioso no
futebol e no remo. À guisa de curiosidade, o Flamengo era à época
o tricampeão carioca de futebol e tetracampeão carioca de remo.
Dominava os gramados e as regatas.
VENCER,
VENCER, VENCER
Um dos
mais felizes versos de toda a obra, desconcerta por sua simplicidade
e capacidade de síntese. Enquanto outros clubes tonitroam conquistas
empoladas, o Flamengo simplesmente vence. A essência do clube é
vencer. Isso se basta. O Flamengo se consubstancia, se resume, em
vencer. Não interessa, não importa a magnitude ou a dimensão da
vitória. Tudo está bem, desde que vença. Não há meio-termo para
o revés. Entrando o Flamengo em qualquer disputa, espera-se que
vença. Exige-se atitude vitoriosa, altiva, de perseguir o triunfo a
qualquer custo. Não se aceita resignação, retratação,
capitulação. O Flamengo deve brigar pela vitória mesmo que
soçobrem as suas chances. Vencer, vencer e vencer. A repetição
demonstra que aqui não há o que discutir. É um valor inegociável.
UMA VEZ
FLAMENGO,
FLAMENGO
ATÉ MORRER
Novamente
a paixão plena, febril, que seca a boca e arrepia a alma. O torcedor
apaixonado precisa repetir e repetir seu amor pelo clube. “Amo o
Flamengo, e serei Flamengo até a morte, até que me cessem as
forças”. É a verborragia daqueles que estão abandonados à sua
paixão.
NA REGATA
ELE ME MATA,
ME
MALTRATA,
ME
ARREBATA,
QUE EMOÇÃO NO CORAÇÃO
QUE EMOÇÃO NO CORAÇÃO
Aqui a
descrição de uma das mais caras peculiaridades flamengas. As
vitórias árduas, sofridas, encarniçadas. Um rubro-negro, desde
sempre, sabe que “nada pro Flamengo é fácil”, as conquistas
sempre virão após ensopar camisas de suor, deixar a existência no
palco de luta. Nessa sequência de versos, o torcedor “joga junto”,
sofre, pena, pulsa ao lado do Flamengo. O Flamengo mata, maltrata,
emociona. Mas arrebata-nos em uma paixão incontrolável, indomável,
difícil de exprimir.
CONSAGRADO
NO GRAMADO
SEMPRE
AMADO
MAIS
COTADO NOS FLA-FLUS
É O
AI-JESUS
A menção
ao gramado complementa a sequência anterior, que se refere às
regatas, reforçando o caráter de “Clube de Terra e Mar” do
Flamengo. “Sempre amado” reitera a condição de elemento
aglutinador de uma torcida que jamais o abandonará, seja qual for a
circunstância.
E então
chegamos à tal passagem controversa.
Ao
contrário do que um certo senso comum apressadamente tenta tornar
verossímil, a construção do verso de Lamartine faz menção aos
Fla-Flus para anunciar o Flamengo como o “mais cotado” no
clássico. Ou seja, “Nós não temos limites. Não tememos ninguém.
Somos os mais cotados contra qualquer adversário.”
E por que
Fla-Flu?
A
explicação encontra-se no auge da popularidade do clássico nos
anos 40. Com efeito, Flamengo e Fluminense dividiram TODOS os títulos
cariocas no período de nove anos entre 1936 e 1944. Um Fla-Flu,
mesmo que amistoso, era garantia de estádio abarrotado, com gente
pendurada na marquise. Relata-se que, na época da cisão do futebol
carioca em duas Ligas concorrentes, Fla-Flus amistosos eram marcados
em dia de jogos decisivos do campeonato rival, para esvaziá-los. Não
era raro temporadas contarem com oito, nove Fla-Flus, aproveitando-se
do fortíssimo apelo do clássico. Donde, a menção ao Fla-Flu, o
principal clássico da capital e do país, no hino, mostra a
auto-suficiência, a confiança, a altivez e mesmo a marra
rubro-negra, que faz questão de declarar-se favorito em qualquer
partida que dispute, contra qualquer adversário, mesmo o maior
rival.
E o
“ai-jesus”? O Fla-Flu é um ai-jesus, afinal de contas?
Não. Não
é esse o sentido do verso. Não é o Fla-Flu o ai-jesus. O ai-jesus
é o próprio Flamengo.
Ai-jesus
é uma expressão antiga, que caiu em desuso no português
brasileiro, mas ainda possui certo, posto que baixo, trânsito em
Portugal. Recorra-se a alguns dicionários e frases para explicar-lhe
o sentido:
Dicionário
Caudas Aulete
ai-jesus
s.m.
1. O
predileto, o mais querido. “O netinho era seu ai-jesus”
Dicionário
UNESP de Português Contemporâneo
AI-JESUS
s.m.
O
predileto; o queridinho; “Mariano era o ai-jesus das tias.”
Dicionário
MICHAELIS
ai-jesus
s.m.
Aquele
que é o predileto ou o queridinho: “Meu pai o castiga, mas a mãe
tem nele seu ai-jesus”
“Rosicky
é o ai-jesus da República Tcheca, o jogador à volta do qual tudo
gira; uma espécie de Cristiano Ronaldo tcheco” (Jornal Expresso,
20.06.2012);
“O
caminhoneiro é um bom vivant, não tem patrão nem horário, dorme
onde bem lhe apraz, seu teto é o céu cheio de estrelas, é o
ai-jesus das mulheres...” (Raquel de Queiroz, O Cruzeiro, 1950).
Ou seja,
tornando-se aos versos, o Flamengo é o mais cotado nos Fla-Flus, o
Flamengo é o ai-jesus. É o favorito, o mais querido, o mais amado,
aquele para o qual todos olham, aquele que todos amam amar.
EU TERIA
UM DESGOSTO PROFUNDO
Aqui se
tem uma interessante guinada na melodia, que deixa de ser triunfal,
alegre, ritmada, e se torna introspectiva, pensativa, quase
melancólica. O torcedor apaixonado simplesmente se desnorteia diante
da perspectiva de ausência de seu amor maior. É a manifestação
clássica, quase adolescente, pueril, de entrega, de paixão, “Sem
você não consigo viver”, “Não sou ninguém sem você”. O
torcedor simplesmente estanca-se, perde a referência ao ser
confrontado com tão desairosa ideia. E anuncia, triste,
verborrágico, passional: “Sem o Flamengo, minha alma calaria”.
ELE
VIBRA, ELE É FIBRA
Deixando
rapidamente de lado pensamentos desagradáveis, a música volta ao
seu ritmo febril, pulsante, compassado, enaltecendo que o Flamengo
vibra, é fibra, é alma, vida, fogo, transborda no calor da disputa.
Flamengo, tua glória é lutar, é brigar até o fim por cada naco de
glória. Jamais desistir, nunca perecer.
MUITA
LIBRA JÁ PESOU
O
Flamengo é popular, é querido, é apaixonante, é luta, é garra,
mas também é vitória, é taça, é conquista. E Lamartine encontra
uma forma extremamente elegante para exprimir essa característica
tão cara aos flamengos. Reto, direto, sem firulas, mas usando uma
construção extremamente inteligente. O Flamengo já “pesou muitas
libras”. Pesar libra era uma gíria antiga no remo, que significava
“vencer regatas”. Explicando:
Antes de
cada regata, todos os barcos competidores eram (e ainda hoje são)
submetidos a pesagens, para aferir se estavam dentro do limite mínimo
de peso inerente a cada categoria. Finda a competição, o barco
vencedor passava por nova vistoria. Esta nova pesagem (em libras,
medida inglesa usada na época) era requisito para a homologação do
resultado, da vitória. Ou seja, o Flamengo “já pesou muita
libra”, ou seja, já passou por muitas pesagens de homologação.
Logo, já ganhou muita regata. “Muita libra já pesou”. Já
experimentou muitas vezes o doce sabor das vitórias.
FLAMENGO
ATÉ MORRER
EU SOU
O final
da composição não poderia ser outro. A confirmação, a
ratificação, a repetição da declaração de amor eterno, intenso,
que já tomou conta de toda a existência do torcedor arrebatado,
apaixonado, enlouquecido em sua ardente paixão pelo Flamengo. Que
carregará consigo até a morte. Entregue. Feliz.
Portanto,
cada vez que entoamos o Hino Popular do Flamengo, cada momento que
cantamos “Uma Vez Flamengo, Sempre Flamengo”, estamos, mais do
que enaltecendo nosso clube querido, estamos tecendo loas à nossa
paixão, ao nosso amor. Anunciando ao mundo inteiro a alegria de ser
rubro-negro. Porque o Hino, o nosso Hino, não é a exaltação a uma
instituição, a uma personalidade, a uma história.
O nosso
Hino Flamengo é uma homenagem ao Amor.
Ao nosso
Amor.
Boa
semana a todos,