quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Alfarrábios do Melo

A pressão parece insuportável.

Quase setenta mil vozes berram enlouquecidas, quase como em mantra, buscando empurrar seus onze soldados em celeste, negro e branco em busca do gol. O gol que irá desfazer a incômoda, a sofrida, a doída desvantagem que lhes sangra na alma. Que lhe está tirando o troféu de campeão brasileiro.
E urram, em desespero.

O Flamengo resiste. Por enquanto, segundo os descrentes e a legião de curiosos que anseia pelo revés rubro-negro, mais esperado e comemorado até mesmo que alguma glória própria. O placar de 1-0, erigido ainda na aurora do cotejo, agora parece frágil e na iminência de ser desfeito. Valente, o time sente o mau momento e se entrincheira atrás. Enseba. Tenta rodar a bola, mas recorre às bicudas, se necessário. Põe dedo na cara. Não corre da porrada.

O Grêmio reside na intermediária flamenga. Expele uma saraivada de bolas na direção do gol de Raul, a maioria sem destino. Em um escanteio, dá-se um antológico batibufo no caterefofo, onde, em um lance de rugbi, jogadores gaúchos e cariocas se atracam dentro da pequena área, enquanto a bola, após pererecar em abandono, é enfim estapeada pelo sentado goleiro Raul, impedindo que o pior se consume. O estádio, agora em chamas, clama, roga, implora, e enfim exige o empate.

Súbito, no meio da mais brutal das pressões, Leandro, o titular da Seleção Brasileira, um dos melhores jogadores de um time de gênios, sente uma lesão. Tenta se manter em campo, mas não há como. Abriu tudo. Mal consegue ficar de pé. Xinga, esbraveja, dá um soco na grama. Mas terá que sair.

Encurralado em campo, o Flamengo perde seu lateral-direito.

Ironicamente, a lateral-direita era, até seis meses atrás uma posição farta de talentos, em que o habilidoso e irrequieto Carlos Alberto disputava a vaga com o correto e regular Nei Dias. Mas Leandro suplantou ambos, Carlos Alberto terminou por sofrer uma séria lesão, Nei Dias, sem espaço, foi parar no Fluminense, e a suplência do setor foi entregue ao jovem Antunes.

Antunes.

Filho do massagista Ferrugem, falecido meses antes, cria da Cruzada de São Sebastião (celeiro de craques como Adílio e Júlio César “Uri Geller”), foi utilizado em alguns jogos da campanha do tricampeonato de 78/79/79 Especial. Jogador habilidoso, técnico, mas com problemas na marcação e no combate direto, segue a linhagem de laterais ofensivos revelados na Gávea. Entretanto, dispersivo e com dificuldades de obediência tática, demorou a amadurecer e passou por um estágio no CSA, trocado pelo meia Peu. Agora, após o empréstimo, está de volta. Mas anda desmotivado.

Antunes não fez nenhum jogo esse ano. E terá que entrar na incandescente decisão. Vai jogar pouco menos de meia hora. E terá que fechar o lado direito da defesa. Substituir o insubstituível Leandro.

O coração flamengo se aperta.

Esperto, Ênio Andrade manda aquecer o ponta-esquerda Odair. Loiro, arisco, muito veloz e driblador, Odair foi um dos heróis do Brasileiro de 1981, conquistado pelos gaúchos. Com a opção de Ênio de montar um meio-campo mais forte, Odair perdeu espaço para o jovem Tonho, meia capaz de atuar aberto pela esquerda. Mas Odair segue sendo peça importante no elenco, para ser utilizado em momentos como este. “Entra e incendeia”, pede Ênio.

Flamengo tenta sair com a bola, é apertado, vai tocando apressado, Antunes, em sua primeira participação, é acionado, falha, perde. Odair se projeta nas costas, como uma flecha, recebe e fuzila o gol de Raul, mas a bola sobe, rascante, zunindo a trave. Antunes leva um esporro, depois é abraçado. “Calma, garoto”.

Menos emotivo e mais pragmático, Carpegiani percebe que isso pode acabar mal e prepara o antídoto. Saca Nunes e entra com o volante Vítor (espécie de 12º titular), que irá ajudar a fechar o lado direito. Zico ficará no comando do ataque. A alteração visa a criar um cinturão para evitar que Antunes seja envolvido pelo ataque gremista que, percebendo a hesitação do garoto, já começa a pender para aquela zona do campo.

Os segundos viram minutos, os minutos se transfiguram em horas, as horas viram uma existência. O tempo simplesmente se recusa a passar. O torcedor flamengo é levado ao limite da ansiedade e da tensão.

Mas eis que se dá o imponderável.

A alteração de Carpegiani funciona, e o Grêmio não consegue mais evoluir pelo seu lado esquerdo. Vítor, incansável, atua de forma perfeita na cobertura do jovem Antunes. Além disso, o próprio Antunes, mais protegido, começa a levar vantagem em alguns lances e ganha confiança. Odair já não consegue driblá-lo. Antunes passa a dar sequência à saída de bola, troca instruções e esporros com os mais velhos, deixa de ser um instável ponto fraco na defesa. A pressão do Grêmio vai arrefecendo, esmaecendo. É o Flamengo que passa, timidamente, a criar algumas chances.

O jogo parece sob controle, mas o nervosismo é insuportável.

O torcedor já não grita. O ar no Olímpico é denso, mas não há mais a confiança no empate, na virada dos locais. Uma bola é lançada para Odair. Antunes se antecipa. Dá um balãozinho no ponteiro e arremata com uma bicuda. Manda a bola, os sonhos e os anseios dos gremistas ao inferno. Bate a mão no peito. Aqui ninguém mais passa.

O Grêmio segue tentando forçar ataques pelo lado de Antunes. Inverte posições, agora é o também garoto Renato, que infernizou a vida de Júnior no primeiro tempo, que busca algo na esquerda, mas, já esgotado e no limite das forças, pouco produz. As perspectivas para os gremistas são sombrias. O jogo está, agora, à feição do Flamengo. Que, cauteloso, apenas toca, e toca, e toca a bola, sem agredir, embora os espaços sorriam à sua frente.

Não há mais o que acontecer. Trila o apito, o Flamengo é o Campeão Brasileiro. Pela primeira vez em sua história, o Grêmio perde uma decisão no Estádio Olímpico para uma equipe de fora de Porto Alegre. Festa, volta olímpica, as costumeiras declarações eufóricas ao microfone, um ritual a que o rubro-negro tem se habituado com impressionante regularidade desde que Rondinelli arrombara as redes de Leão há um cacho de anos atrás.

Já no vestiário, um jogador parece celebrar de forma solitária. Senta-se num banco. Está arrepiado, mas em silêncio. Agradece aos tapinhas, aos cumprimentos, “boa garoto”, “arrebentou, garoto”, “deu o recado, garoto”. Olhos esbugalhados, sente-se enfim parte daquilo tudo. Percebe que, em um elenco vencedor, todos são capazes de manter elevado o nível da produção coletiva. Porque, mais do que o talento ou as fragilidades de seus elementos, a estrutura, a engrenagem de uma equipe, se bem azeitada, é o que determina seu funcionamento efetivo. Um grupo vitorioso é um organismo com vida própria. E Antunes, mesmo sem ritmo, mesmo sem experiência, mesmo sem rodagem, é capaz de por ele ser abraçado e receber condições de produzir, mesmo nas mais severas circunstâncias.


Agora Antunes se lembra do pai. E chora.