Fiz anos domingo.
Não que isso se revista
de especial relevância. Aniversários costumam ser tão intensos quanto fugazes,
átimos de protagonismo em que tudo podemos, tudo queremos, tudo, subitamente,
parece girar-nos ao redor, qual monarcas existenciais. Mas passa, e a vida
segue, até o próximo hiato.
“Que o nosso Flamengo
lhe dê um belo presente”, não raro ouço quando cumprimentado por ocasião do
natalício. As recomendações são mais estridentes quando há uma confluência da
efeméride com o calendário esportivo, calhando de ter proporcionado o prazer
de, durante os festejos, ver o Mengão em campo. Vitória do Flamengo num
aniversário. É algo doce.
O Flamengo deve ter
jogado várias vezes, nesses meus 37 anos de futebol, nos dias 6, 7, 8 de
agosto. Da maioria não lembro, e, preguiçoso, não tenho a intenção de sair
procurando nas ferramentas de busca que tudo sabem. Deixo minha memória trabalhar, às vezes é bom
recorrermos apenas a nós mesmos, em busca das referências que realmente nos
imprimem marcas.
O primeiro foi logo em
1981. 07 de agosto, uma sexta-feira. Do alto dos 9 anos, minha mania era o
futebol de botão. Havia, poucos meses antes, ganho um campo, desses que se
chamava “Estrelão”. Dois times, que depois viraram cinco. Daqueles da Gulliver
mesmo. Tinha Atlético-MG, tinha Vitória, Santa Cruz, acho que Palmeiras. Mas o
sonho que fazia faiscar os olhos de criança era o Flamengo. Mas nunca achava o
Flamengo pra comprar. E mesmo que achasse, tinha que ser em data especial.
Chega o aniversário, mas nada de Flamengo nas lojas. De qualquer forma, ganhei
um da Seleção Brasileira. Arrepiado, dedos tremendo, a custo a caneta risca na
superfície do botão selecionado com rigor. O número 10, meio a garrancho. Meu
primeiro Zico.
À noite, Flamengo e
Atlético, jogo importante pela Libertadores, já na reta final do Grupo.
Flamengo estava em momento turbulento, tinha trocado o treinador. Vinha de dois
empates seguidos, partidas ruins. Mesmo assim, colocou 65 mil no Maracanã para
aquela que seria a virtual final da chave. Quem vencesse, passaria. Flamengo
começou mal, saiu perdendo, mas no segundo tempo voltou com um volume de jogo
impressionante e virou rapidamente a partida. Com o adversário nervoso e com um
a mais em campo (para variar, um atleticano pilhado em excesso ganhou o
vermelho), o Flamengo viu clarear à sua frente a vitória, a goleada. Empolgou-se,
descuidou-se atrás e numa falha da defesa cedeu o empate. Nada era fácil. Teria
que resolver em Assunção. Fiquei aborrecido, mas no dia seguinte gastei os dedos
com meu botão do Zico. Que, nas minhas mãos, enjoou de fazer gol. Ah, o botão
do Flamengo? Não demorou. Lindo, faiscante, de um vermelho reluzente, pequeno pacote
trazendo onze pedaços de acrílico e a plenitude de um garoto sonhador. Poucas vezes
fui tão feliz.
O segundo que me lembro
foi já em 2003. Trabalhava fora de Salvador, em regime de plantão, de forma que
não poderia assistir ao Flamengo de Oswaldo de Oliveira, que receberia o Bahia
de Evaristo de Macedo, no Maracanã. Ossos da vida profissional.
Não que estivesse
profundamente motivado. Flamengo estava em um momento complicado, tinha perdido
a Copa do Brasil e, com um time limitado onde seus principais jogadores
entravam e saíam do time, no mesmo ritmo oscilante dos dispêndios do esquálido
caixa do clube, cujo mês se completava com bem mais que trinta dias (“finge que
paga, finge que joga”), fazia uma campanha no Brasileiro apenas suficiente para
manter uma distância razoavelmente segura da zona do descenso, o que, dadas as
precárias condições administrativas da instituição, não deixava de ser certa
façanha.
07 de agosto, noite
gelada de quinta-feira no Maracanã, 8 mil. Todo mundo falava da morte, ocorrida
na véspera, de Roberto Marinho, que desencadeara uma torrente midiática de
proporções poucas vezes registrada. Tarjas pretas na tela, lágrimas (sinceras?)
de apresentadores, documentários, especiais, edições extras, enfim. Só se
falava no passamento do “Doutor Roberto”.
Lá da Sala de Controle
rebenta o grito: “Porra, Baêa tá tomando de cinco!”. É como um choque, um
chamado de volta à vida. Agora quero saber tudo. Ligo pra casa em busca de
informações, de detalhes. Um tricolor já me avisara, “vocês vão ganhar fácil, o
elenco quer derrubar o Evaristo”. Mais um pouco e já não é mais de cinco, agora
são 6. Flamengo 6-0 Bahia. Descubro que no dia seguinte tem VT completo. Não durmo
antes de assistir. Foi pouco mais que um treino, com o jovem Rafael (que marca
um gol de placa, de cobertura) e o malaco Edilson jogando muito. É o presente
de que precisava. Ao menos por alguns dias, a marra, a alegria, a festa nos
olhos e na língua voltam como nos velhos tempos. Até o vexame seguinte.
Passamos ao dia 06 de
agosto de 2011, um sábado, véspera do meu aniversário. Tal como agora. Flamengo
enfrentando um time paranaense. Tal como agora. Precisando vencer, para chegar
à liderança, mesmo que provisória. Tal como agora.
Jogo difícil no
Engenhão contra o Coritiba, 25 mil. O adversário sabe se defender, monta um
ferrolho quase intransponível, que o previsível Flamengo de Luxemburgo não
consegue transpor. Passam-se 45, 60, 70, 80 minutos e nada de gol, ou nada ao
menos próximo a isso. 81, 84, 86. Agora o Flamengo pressiona, cria chances,
manda na trave, há um bololô num escanteio. Sufoco. 87, 88. Chegamos aos 89.
Ronaldinho apanha uma bola vadia na esquerda. Olha e cruza. O improvável, o
imponderável, o Cruel Jael mete a testada, a cabeçada redentora, que define a
vitória flamenga, 1-0. O Flamengo assume a liderança do Campeonato Brasileiro. É
meu presente de aniversário. Sofri com o jogo. Pulei, gritei. Depois, fui
beber.
Cinco longos anos se
passam até que o Flamengo retome a liderança do Brasileiro. Cinco anos. E, de novo, tal como
naquela tarde-noite de sábado, é meu aniversário.
Não que isso seja
relevante.
* * *