Saudações flamengas a todos,
1991.
Maracanã. 110 mil. Flamengo e Botafogo decidem, num domingo
incrivelmente chuvoso e ensolarado, a Taça Rio. O clima feérico
parece prever as alucinantes reviravoltas que estão por vir no
campo. O Flamengo, mais aguerrido e competitivo, entra pressionando,
acua o adversário e com 17 minutos já vence por 2-0, gols de Gaúcho
(numa belíssima cabeçada) e Zinho (num frango de cinema de Ricardo
Cruz). O Flamengo deixa o adversário grogue e roda a bola, para
delírio da maioria rubro-negra no estádio. Cria chances, mas não
mata o jogo. Isso será fatal mais tarde.
Segunda
etapa. O treinador botafogo, Ernesto Paulo, substitui o tímido
lateral Paulo Roberto pelo agressivo Odemílson. E “queima os
navios” ao trocar o volante Djair pelo irrequieto atacante Vivinho.
As alterações incendeiam a partida, e o Botafogo vem pra cima.
Diminui com Carlos Alberto Dias já aos 9', e começa a pressionar.
Mas, aos poucos, o Flamengo vai, ao menos, mantendo o Botafogo
distante de sua área, tentando reter a bola. A partida se torna
nervosa. Esgotado, o Botafogo parece no limite das forças, arrefece
a pressão e aos 30' a massa flamenga começa a pressentir a vitória,
cantando a plenos pulmões. Carlinhos, buscando dar mais
combatividade ao meio-campo, tira o cansado Maestro Júnior e coloca
o volante Zé Ricardo. Será seu erro.
A perda
da referência, do comando, da liderança, da qualidade e do toque de
bola do Flamengo mostra-se devastadora. O Botafogo se inflama e
avança todas as suas peças. Ao rubro-negro restam as bicudas e o
bumba meu boi. Começa a saraivada. Bola na trave, defesa de Gilmar,
o diabo. Ninguém respira. Passamos dos 40'. O empate não sai,
embora o jogo se concentre nos arredores da área flamenga. Até que
Júnior Baiano, talvez tentando emular Domingos, talvez se esquecendo
de que não está em uma pelada no chão batido de Feira de Santana,
resolve sair driblando em sua pequena área. Perde a bola e daí sai
o empate, novamente com Dias. O lado direito do Maracanã explode, o
Flamengo sai “derrotado”, Júnior reclama de ter saído e o clima
não parece nada bom para o jogo-extra da quinta-feira. Mas o
Flamengo conseguirá reverter a expectativa negativa e levará a
melhor no duelo seguinte, conquistando a taça.
2016.
Estádio Comendador Souza, Barra Funda, São Paulo-SP. Flamengo e Bahia se enfrentam pela Quarta Fase da Copa São Paulo de Futebol
Júnior. Apesar do caráter teoricamente eliminatório da partida, o
Flamengo já entra em campo classificado, por conta de peculiaridades
do regulamento e de sua boa campanha na Primeira Fase. No entanto, o
rubro-negro encara a partida com seriedade e como um teste
importante, uma vez que o Bahia é o primeiro adversário de certa
expressão que enfrenta no torneio.
O
Flamengo, solto, começa bem, envolvendo o adversário. Logo consegue
um pênalti, que Cafu desperdiça. Mas segue criando chances em
abundância e, em uma jogada de Paquetá, chega ao primeiro gol, com
Felipe Vizeu. Pouco depois, o mesmo Vizeu amplia para 2-0, após
cruzamento do lateral Thiago Ennes. Ainda antes do final da primeira
etapa, o Flamengo quase amplia, e as equipes vão para o intervalo
após ampla e cristalina vantagem rubro-negra.
Na
segunda etapa, o Bahia, precisando ao menos levar o jogo para os
pênaltis para sonhar com uma vaga extra, avança completamente suas
linhas. O Flamengo, aparentemente acomodado, tenta cozinhar em banho-maria, circulando a bola, mas perde o controle da partida.
As alterações, especialmente a saída do meia-atacante Matheus
Sávio, não ajudam, e o Bahia agora exerce uma pressão quase
insuportável. Manda bola na trave, marca um gol, que é anulado. O
goleiro flamengo Thiago vai tendo muito trabalho, mas o tempo vai
passando e sua meta não é vazada. O Bahia parece cansado, já cede
espaço para os contragolpes flamengos. Mas, aos 38', enfim os baianos conseguem diminuir, o que acende a sua torcida presente no pequeno
estádio. O Flamengo mal dá a saída de bola, e num passe errado
cede o empate ao adversário, um minuto depois. Antes dos 40', o jogo
já está empatado, tornando-se sensacional. Segue-se uma troca de
golpes e chances perdidas (o Flamengo se enche de brios e sai da
trincheira, mas agora é tarde). Entretanto o jogo termina mesmo nos
2-2, indo para os pênaltis. Mais inteiro fisicamente, o Flamengo é
mais eficiente e derrota o adversário, seguindo invicto no torneio
que acabará vencendo.
* * *
A
narrativa resumida das duas partidas acima merece alguma reflexão.
É bem
verdade que o empate-derrota no tablado da Ilha do Governador, sábado
passado, contra um adversário que pouco mais tinha a oferecer do que
correria e rancor, frustrou e irritou nossa torcida, que tinha como
certos os três pontos após Paolo Guerrero, novamente marcando gol
em um clássico, ter anotado o terceiro gol flamengo. Daí, as
reações espalharam-se em impropérios contra jogadores, diretoria,
treinador e outros atores menos cotados. Normal.
Flamengo
e Botafogo têm por característica realizarem jogos movimentados,
corridos e usualmente cheios de alternativas. A equipe que está
atrás no marcador dificilmente desiste da partida, pois não aceita,
não admite ser subjugada pelo adversário. Donde, não é raro
marcadores serem revertidos, empates heróicos buscados, derrotas já
contadas virarem empates, vitórias escoarem pelos dedos. Além do
exemplo citado, qual flamengo não lastimou os 3-3 na Taça Rio de
1989 (em que Gonçalves “ressuscitou um morto”)? Ou não ficou
apreensivo com os 2-2 na Final do Estadual de 2009, que quase
custaram o tri? Por outro lado, quem não comemorou o milagroso
empate arrancado na primeira final do Estadual de 2007? Ou o gol do
Imperador no lance final de um jogo em 2010? Ou o gol de Josiel, em jogada de Zé Roberto, quando o comentarista, nos descontos, falava da justiça da “vitória
alvinegra”? Ou os emocionantes 4-4 de um jogo pelo Rio-São Paulo de 1999, arrancados quando o adversário já cantava goleada?
São
peculiaridades de um jogo de alta rivalidade, em que qualquer
descuido se torna mortal.
Invocou-se
a “frouxidão” da equipe, ainda no rescaldo do pavoroso perfil
anímico demonstrado pelo elenco flamengo de 2015, do qual ainda
remanescem vários elementos, cuja presença no time traz um misto de
indignação e impotência de um torcedor ansioso por ver em campo
uma formação aguerrida, combativa, briosa e vencedora.
No
entanto, embora admita que o Flamengo de 2016 ainda não faz correr
em suas entranhas a flamejante e ardente seiva na qual se encharcou
forjando sua personalidade de protagonista, e em vários momentos
tenha trespassado uma postura apática, gélida, inerte e indiferente
aos apupos e apelos de sua gente, não reputo a este senão o revés
de sábado passado, em que pese o comportamento da equipe nos
primeiros 45 minutos, deixando-se intimidar por um “américa” em
negro e branco, tenha mesmo sido inaceitável.
Mas
entendo que a questão ali foi estratégica e talvez tática. E aí
entramos no segundo exemplo deste texto.
O
Flamengo do Zé Ricardo já demonstrou, em várias partidas deste
Campeonato Brasileiro, e mesmo em alguns momentos da Copa São Paulo
que, dispondo da vantagem sob o braço, prefere entregar a bola ao
adversário e tocaiá-lo em sua intermediária, buscando estocá-lo
em contragolpes, assim matando o jogo. É uma estratégia válida
quando se tem uma defesa intransponível e um meio-campo capaz de
picotar o jogo, truncar e travar as ações do adversário ainda na
origem, no terreno da linha central. Quando se cede espaços em
excesso, permitindo que o oponente troque passes e busque a criação
já na zona intermediária defensiva, ou mesmo, em casos extremos
(como na partida contra o Atlético-MG e no início do jogo contra o
Internacional), já nas franjas da grande área, o risco de uma
falha, um bote errado, uma falta inconveniente se torna altíssimo, e
não é raro haver o castigo numa das diversas bolas que ficam por
ali pererecando perto do gol. Foi o caso sábado, poderia ter
acontecido em Recife, ou mesmo domingo passado, em Brasília.
O
Flamengo do Zé Ricardo já demonstrou capacidade de reação em
outros momentos. É um time que está começando a aprender a jogar
em desvantagem. Não é raro empatar ou mesmo virar jogos em que sai
atrás do marcador, algo que até pouco tempo atrás soava
impensável. Não é mais aquela equipe que basta ser atacada para
que sofra um gol. Claro, ainda oscila durante alguns jogos,
especialmente pela falta de jogadores de ponta, do “chefe” a quem
os coadjuvantes recorrem para contornar dificuldades. O cara que
acalma e estabiliza.
Poderia
ser Diego esse cara? Ou Donatti?
O tempo
dirá. Donatti é o típico “xerifão”, o zagueiro-zagueiro, o
jogador dado a bicudas, esporros e mesmo àquela porrada marota, pra
intimidar. É possível que o Flamengo ganhe casca e caráter com sua
presença em campo, embora Réver e Juan também possam, cada um
dentro de seu estilo, exercer certa ascendência sobre o grupo. Até
porque, antes de mais nada, é preciso saber se o grandalhão
argentino será capaz de entregar respostas técnicas que o capacitem
a integrar a equipe titular. Um complicador é o excepcional
rendimento alcançado pela dupla Réver-Vaz e o bom aproveitamento de
Juan no primeiro semestre, o que o habilita a disputar uma das vagas
na zaga titular.
Quanto a
Diego, que vem para ser o Camisa 10 de fato (embora traje outro
número): que o Flamengo não cometa com o excepcional jogador o erro
de avaliação na abordagem a Paolo Guerrero. Que não exija de seu
contratado aquilo que está acima de suas possibilidades. Que o deixe
livre, à vontade, buscando se divertir em campo. Naturalmente, que
deixe claro o que espera em termos de resultados coletivos, de
patamar a ser alcançado, e qual a função de Diego, como jogador de
alto nível, grande capacidade técnica e experimentado em centros
mais avançados, nesse contexto. Protagonista em um clube
protagonista.
Mas que
não se busque um messias, um semideus, um Zico. Que se deixe Diego
jogar como Diego. Que ele resolva dentro do campo. Não fora.
Assim
sendo, iremos longe.
Muito
longe.