“DOSIS SOLA FACIT VENENUM”
Saudações
flamengas a todos,
Os
péssimos resultados colhidos nos últimos 18 meses, e as
circunstâncias que os ensejaram, motivaram uma miríade de
discussões acerca dos mais distintos sintomas de falta de
competitividade do elenco como um todo. Identificou-se e debateu-se
intensamente a carência de “alma” rubro-negra no jeito de jogar
do time, o que gerou a produção de variados textos e conversas, com
interessante riqueza de ponderações e argumentos, alinhados ou não
ao diagnóstico. Uma vez que o tema soa exaurido (até porque a
equipe tem esboçado um rascunho de entrega e concentração nas
partidas mais recentes), pergunta-se:
E quando
a instituição se nega a vencer?
Flamengo
e Palmeiras, dois dos elencos mais caros do futebol brasileiro (e,
portanto, em tese adversários DIRETOS pelo título ou vaga na
Libertadores), próximos na tabela de classificação, fariam aquele
que se convencionou denominar, pelo jargão convencional, “jogo de
seis pontos”. O Flamengo, com classificação melhor, detendo o
mando de campo e em ascensão anímica, decorrente de dois bons
resultados recentes, reunia uma série de elementos positivos,
capazes de transformar essa partida em um interessante marco inicial
para um salto rumo ao protagonismo ansiado há vários cachos de
anos.
Entretanto,
o time do Palmeiras, treinado por um dos profissionais mais
respeitados e qualificados do país (ao menos em termos táticos),
composto por alguns jogadores de qualidade técnica interessante, com
uma equipe trabalhada há algum tempo, e portanto um oponente
qualificado, seria um adversário duro, árduo, especialmente diante
de um Flamengo ainda buscando encontrar seu caminho, explorar o
potencial de um elenco ainda desajustado.
Era o
tipo de ocasião para o torcedor jogar junto.
Como em
2005, quando Jônatas, China, Rodrigo Arroz e Da Silva derrotaram o
estrelado Santos de Robinho, Deivid e Ricardinho. Ou emulando o ano
anterior, em que Douglas Silva, Gauchinho, Whelliton e Dimba venceram
o favoritíssimo São Paulo de Lugano, Cicinho, César Sampaio e Luís
Fabiano em Volta Redonda. Ou 2012, em que o Engenhão viu um
combalido e manco Flamengo passar por cima de Ronaldinho Gaúcho. Ou
1982, que, com dez jogadores e atuando muito mal, o rubro-negro virou
de forma espetacular um jogo que perdia para um Atlético-MG, em
poucos minutos, ao som do samba do Império (“bumbum paticumbum
prugurundum”). Ou em outras e outras e mais outras ocasiões em
que, com um time inferior ou em situação de inferioridade, a
vitória foi perseguida e sorriu para o rubro-negro.
Porque a
torcida deu a mão. E ajudou a inflamar o time. Que ganhou na marra.
Esse é o
ponto. O Flamengo erige-se gigantesco, vencedor, dotado de uma força
descomunal, quando traz sua torcida para o campo de jogo. Quando se
dão as mãos. Quando se cria o amálgama que o transfunde com sua
gente, formando uma e uma só entidade, um só espírito, que joga,
pulsa, ferve, briga. E vence. Não importa se no Maracanã, na Ilha
do Governador, na Gávea ou na Rua Paissandu.
Decerto,
esse fenômeno, que fez da torcida do Flamengo algo referencial,
deveria ser estimulado, à guisa de elemento intrínseco à grandeza
do clube, norteador inclusive de sua identidade.
Tornemos
ao domingo. Debrucemo-nos sobre o acontecido:
Flamengo
e Palmeiras, dois adversários diretos, enfrentaram-se no Estádio
Mané Garrincha, em Brasília-DF, num jogo que daria ao vencedor uma
das vagas no tal G4. Eis que o Flamengo, cuja equipe encontra-se,
pelas circunstâncias já mencionadas, em um patamar inferior, ABRE
MÃO de uma vantagem competitiva importante, ao CONCEDER a área
mista do estádio ao acesso de torcedores de qualquer clube. O
Palmeiras não atuava na cidade há muitos anos, o que evidentemente
criou um contexto de demanda reprimida, com potencial de captação
de vários torcedores do clube.
O
Flamengo SABIA desses detalhes. E não contente em aceder, ESTIMULOU
a enchente verde, pelo que se depreende das vozes de seus dirigentes
e pela prática já tornada recorrente em seu histórico recente,
mesmo em jogos no Maracanã.
O estádio
recebeu cerca de 55 mil torcedores. Paulistas mais renitentes falam
em meio a meio. A diretoria do Flamengo menciona 30% de palmeirenses.
Seja com quem esteja a verdade, TRINTA por cento representam
DEZESSETE mil torcedores adversários ocupando assentos que poderiam
E DEVERIAM ter outra destinação.
O
Flamengo entrou em campo VAIADO, segundo relatos de cronistas que
cobriam a partida. Um time em formação, que precisava se afirmar,
começando a demonstrar sinais de espírito de luta (e, portanto,
capacidade de atrair o torcedor), que poderia ser pego no colo por
uma torcida ávida de vitórias, subiu no gramado sob APUPOS do
inimigo. Isso naquela que deveria ser sua casa.
O
desfecho foi previsível. Atuando inteiramente à vontade, o
adversário apenas em poucos momentos perdeu o controle do jogo, e
chegou a uma merecida e justa vitória. Naturalmente, não foi o
estádio rachado que decidiu o jogo para o lado verde. Mas a falta da
torcida flamenga certamente tirou da partida um elemento que poderia
ser um diferencial ao nosso favor.
Daí,
torno à pergunta do início do texto: O Flamengo quer vencer?
Não
precisa ser um PhD, MBA etc em Gestão de Negócios, ostentar
sofisticadas experiências em capacitação profissional, ter
estudado em Harvard ou na Sorbonne. Basta ter acesso a qualquer um
desses livrinhos de auto-ajuda que se vende em bancas de jornal,
desses que ensinam a “encontrar o caminho na vida”, ou a “ficar
rico em 15 passos”. Ou, reunindo um mínimo de perspicácia, nem
isso. Pois um átimo de bom senso indica que, quando algo não é
prioritário, tudo, absolutamente TUDO, se revestirá em um óbice
intransponível, um obstáculo inarredável, um subterfúgio
construído com palavras bonitas. Tudo será assunto para NÃO fazer.
Donde,
futebol, hoje, NÃO é prioridade para o Flamengo. O clube NÃO quer
vencer. Não pensa em pagar o preço.
Então
entramos na principal competição nacional sem zagueiros, porque
tudo é muito caro. Estamos há DOIS anos sem uma alternativa
razoável para a falta do Maracanã/Engenhão porque o clube é
“perseguido” politicamente. Anunciamos uma reformulação
“profunda” no Departamento de Futebol e, decorridos VINTE dias da
humilhante eliminação da Copa do Brasil a única mudança é a
saída do treinador adoentado, cujo sucessor, após dois interinatos,
ainda é desconhecido. Perdemos quase UM MÊS para contratar o tal
Gerente de Campo, porque... sabe-se lá porque.
Tudo é a
questão da prioridade.
O célebre
cientista Paracelsus, lá nos idos do Século XVI, cunhou uma frase
lapidar: “O que diferencia o remédio do veneno é a dose.”
Devolver
a viabilidade ao Flamengo foi o foco, o objetivo, a missão e a
hercúlea tarefa à qual se envolveu todo o clube no período
2013-15. Em prol da transformação do rubro-negro em uma entidade de
referência e capaz de assumir, em termos administrativos, seu papel
de potência, desfrutou-se de inédita paciência e certa serenidade
para assimilar alguns reveses sobremaneira incômodos. Passados três
anos há um clube que repousa em um patamar dramaticamente distinto
ao da alegada “terra arrasada” de 2012. No entanto, aparentemente
certas premissas draconianas ainda insistem em seguir como tônica
inegociável e indissociável da atual linha administrativa adotada.
Nosso
futebol é farto de exemplos de reestruturação semelhantes que
começaram a render frutos em muito menos tempo. Um Grêmio quebrado
saiu da Série B em 2005 para uma Final de Libertadores apenas DOIS
anos depois. O Corinthians foi rebaixado e em DOIS anos já ganhava
Copa do Brasil, ponto de partida para voos maiores. O próprio
Flamengo montou um dos melhores times do país TRÊS anos após uma
das piores crises de sua história (“acabou o dinheiro”).
Em todas
essas histórias citadas, havia o genuíno senso de recuperação a
curto prazo, de retomada rápida da grandeza perdida.
Não
vemos demonstração dessa sede, dessa ânsia, nos tempos atuais.
Assim,
não chegou zagueiro porque “dá pra levar com o que tem” sem
comprometer o cashflow. Não importa que “sumidades” como César
Martins e Wallace empilhem lambanças jogo sim, jogo também, o que
interessa é equacionar a relação dívida/faturamento (aliás, se o
jogador for jovem, promissor, barato ou de graça e tiver valor de
mercado, vira alvo preferencial, mesmo que mal chute uma bola). Isso
de gerente que conheça de campo e de bola não está alinhado à
filosofia do clube, que quer alguém que saiba correlacionar o teor
de nitratos no suor do atleta com a tendência estatística indicada
pela umidade relativa do ar. Atuar no Rio está fora de questão,
porque o aporte será insuficiente para equilibrar o budget.
Enquanto
isso, o Flamengo abre as portas, estende tapete, arreganha cadeiras e
mais cadeiras para os visitantes, toca hino, tira foto, enfim, cria
um lindo, edificante e romântico ambiente destinado a fazer dos
jogos em SUA CASA uma experiência inesquecível para o torcedor e o
jogador paulista. Naturalmente, o time apanha, o torcedor apanha, a
instituição apanha. Apanha dentro de campo, fora dele e no
tribunal. Mas o que importa é que a meta de arrecadação foi
alcançada e o clube foi elogiado na tevê, olha que legal. Somos
pioneiros.
Talvez
seja o caso de, doravante, propor mandar o jogo contra o Corinthians
no Itaquerão. Lá lota e dá dinheiro. A torcida deles enche o
estádio e a gente fica com a renda. Vanguarda.
O time?
Não interessa. Estão sendo pagos em dia e há um Executivo tomando
conta. Trocar dá trabalho, deixa ele lá. E vai ficando, ficando.
Resultado? Irrelevante, nas palavras do próprio. E, daqui a uns dez
jogos, quando pipocar alguma derrota mais forte, troca-se de novo o
treinador. E vamos seguindo a nossa marcha rumo a mais um honroso
oitavo, nono lugar enquanto batemos palmas para que os de sempre
sigam erguendo taças, enquanto a nós resta apenas praguejar e troar
contra os favorecimentos e os invariáveis “erros” de arbitragem
de praxe. Oras, ganhar assim é feio.
É feio.
O Flamengo “não pode ter práticas ruins só porque outros
praticam”.
Talvez
ganhar jogos e campeonatos, então, seja uma prática ruim.
Encerra-se
aqui somente com uma ponderação: houve uma eleição. Dois grupos,
de mesma origem e pensamento semelhante, digladiaram-se com uma
mensagem, no fundo, bem parecida. Falou-se ostensivamente em
“recuperar o futebol”, “dar atenção ao futebol”, “futebol
vai ser prioridade”.
Futebol,
senhores, não deve ser concessão de “prioridade” do Flamengo.
Futebol é sua ALMA.
Entendam
isso, ou perecerão.
Boa
semana a todos,