O
prejuízo parece incalculável.
Com o
retorno de Zico, o Flamengo monta um dos mais caros elencos da
América do Sul. Um plantel que, para se tornar viável, precisa de
grandes jogos, grandes arrecadações, grandes conquistas.
No
entanto, em vez de um Maracanã com 100 mil numa Semifinal de
Brasileiro, o lodoso gramado da gelada Blumenau. Amistoso
caça-níqueis catado de urgência.
Não sem
responsáveis.
A
culpa recai sobre o o treinador Zagalo, que teria
subestimado os adversários de um grupo teoricamente fraco. O Bahia,
único oponente razoavelmente respeitado, foi inapelavelmente batido
no Maracanã (3-0), e se pensou que tudo estaria resolvido. Aí veio
Pelotas. E a tragédia.
As vozes
pela demissão do Lobo já são estridentes. Parte da diretoria não
digeriu a hesitação do experiente treinador quando sondado para
treinar a Seleção Brasileira. Outros já enxergam que o time não
joga com a mesma motivação e alegria de outrora. A gota d'água é
a eliminação do Brasileiro. Irritada, a diretoria transmite a
Zagalo a exigência de montar e entrosar a equipe nos amistosos pelo
Brasil. No entanto, um time desmotivado é derrotado em Blumenau
(0-1). Zagalo é avisado que seu cargo está por um fio. Cria-se a
bizarra obrigação de vencer o periférico Juventus de Rio do Sul
para que o emprego de Zagalo seja mantido. O Flamengo joga bem, faz
5-0, mas Zagalo volta ao Rio e avisa ao Presidente George Helal que
está fora. O Lobo, brioso e experiente, antecipa o inevitável e
pede demissão.
A saída
de Zagalo encerra uma contradição. Após a perda da vaga no
Brasileiro, Helal chamara a imprensa para avisar, com todos os efes e
erres, que estaria a partir de então assumindo a responsabilidade
“única e indelegável” pelo futebol. “A partir de agora, sou o
presidente, o vice e o diretor de futebol do Flamengo”. No entanto,
o responsável “indelegável” declara ter sido “voto vencido”
na demissão do Lobo. Os desavisados não entendem.
O
Flamengo segue em seus delírios de fartura. Cogita contratar Éder,
Renato Gaúcho, Marinho (Bangu). Negocia a troca de Serginho Chulapa
pelo centroavante Chiquinho (que, apesar do mau desmpenho na Gávea,
possui prestígio no futebol paulista). Transações que não são
levadas adiante por falta de perspectivas financeiras. O segundo
semestre acena com um Estadual provavelmente deficitário e mais
nada. A realidade impõe se desfazer do caro e problemático Fillol
(que falhou nos dois gols em Pelotas), vendido ao Atlético Madrid.
Para
substituir Zagalo, o Flamengo vai atrás de Ênio Andrade, que acaba
de ganhar o Brasileiro pelo Coritiba. Experiente e vencedor no
futebol do Sul do país, Ênio é visto com reservas, pois costuma
montar sólidos esquemas defensivos e atuar em contragolpes, um
sistema de jogo com o qual o Flamengo não está habituado. Ainda
assim, Ênio parece seduzido e sinaliza positivamente à sondagem do
rubro-negro. Deixa-se fotografar e manifesta simpatia à ideia de
dirigir o rubro-negro, “um caminho curto para uma Seleção
Brasileira”. Já sinaliza a intenção de contratar o volante Renê,
do Fluminense. A diretoria já dá a chegada de Ênio como certa. No
entanto, após uma reunião com o Coritiba, Ênio Andrade desiste e
recusa a proposta oficial que lhe chega. Vai permanecer em Curitiba.
“Ele tem receio de trabalhar no eixo Rio-São Paulo, já fez isso
com o Palmeiras outro dia”, resmunga um diretor flamengo.
Sem o
campeão brasileiro, a diretoria age rápido e de imediato anuncia
Edu Antunes. O “irmão de Zico” é o novo treinador do Flamengo.
Reduzir
Edu à pecha de “irmão de Zico” soa simplista, raso, pela
intensa luz própria de seu currículo. Como jogador, construiu uma
carreira brilhante em um América que disputava títulos contra os
melhores do país. Virou ídolo e um dos maiores atletas da história
do clube rubro. Após parar, tornou-se treinador. Novamente no
América, conquistou a Taça Rio de 1982, o último troféu de
expressão da história americana. Revelou nomes como o lateral
Jorginho. Montou um time veloz, compacto e de futebol vistoso,
ofensivo. Chamou a atenção do Vasco, para onde se transferiu em
1984. Com um time leve, de um ataque devastador, chegou ao Vice
Brasileiro, o que lhe abriu caminho para uma experiência na Seleção
Brasileira onde, ainda imaturo, não foi bem. Agora, Edu chega ao
Flamengo com o objetivo de implantar na Gávea o mesmo futebol bonito
e alegre que pontuou sua carreira. E que “casa” de modo perfeito
com o rubro-negro.
A
confirmação do nome de Edu faz Helal, principal entusiasta da
contratação, exultar. Em tom quase eufórico, chega a declarar:
“foi até bom o Ênio não ter aceitado, acho que estamos melhor
servidos agora”. Edu recebe a imprensa em sua casa e, visivelmente
motivado, profere longas palestras expondo suas ideias, do que
pretende fazer no time, da intenção de recuperar jogadores em má
fase, como Adílio e Tita, de fixar de vez Bebeto no comando do
ataque (aproveitando ideia inicial de Zagalo), “imaginem uma dupla
com Zico e Bebeto”. O contrato é de seis meses, o que o motiva. “O
bônus de desempenho é minha permanência aqui. Sinto-me desafiado,
e isso me anima”.
Cai a
tarde.
Vultos.
Muros. Latas de spray. Pichações. Barulho, muito barulho. Fogos.
Pedras na vidraça.
Os muros
da Gávea estão emporcalhados e rabiscados com mensagens enfáticas.
“EDU NÃO”. “FORA EDU”. “EDU É DERROTA”. “EDU
VASCAÍNO”. “MARAJÁ”.
Com
rapidez impressionante, surgem câmeras por todo lado. O protesto é
fartamente documentado. Vai pro Jornal Nacional, que dá duas linhas
sobre a contratação de Edu e longos minutos sobre o protesto.
Torcedores são entrevistados falando mal de Edu. A Rádio Globo, em
seus plantões, bombardeia a contratação de Edu. Mais torcedores
aparecem criticando. “A diretoria insiste em trazer um treinador
que é repelido pela torcida”.
A
madrugada será o bálsamo de merecido repouso. Para alguns.
Manhãzinha.
Telefones badalam estridentes. Reunião de emergência é marcada.
Mais tumulto à vista.
Edu
Antunes avisa ao Flamengo que desiste de ser seu treinador.
Assusta-se com a repercussão negativa e resolve aceitar uma
proposta, que já havia recusado mas ainda não fora retirada, para
dirigir a Seleção do Iraque. Para o lugar do “irmão de Zico”
assumirá o auxiliar Joubert Meira, que irá para sua terceira
passagem no clube.
A recusa
de Edu é uma derrota de Helal, que bancara e insistira na opção,
apesar de seus evidentes riscos. Helal robustecera-se com a bem
sucedida operação de repatriamento de Zico e vinha ganhando uma
musculatura já tida como incômoda mesmo por seus pares. Muitos
conselheiros e mesmo diretores não digerem bem o estilo personalista
e impulsivo de Helal e se irritam quando o Presidente insiste na
ideia de contratar um profissional tão ligado a Zico, seu principal
trunfo político. Soltam muxoxos junto a jornalistas amigos, falando
que Edu é uma “armação de Zico”, que “Zico vai mandar e
desmandar na Gávea”, entre outras ilações. Atacando Zico,
mina-se Helal.
E há um
elemento relevante. A Globo, irritada por ter sido preterida pela
Rede Manchete na cobertura do processo de retorno do Galinho, mantém
linha editorial bastante crítica em relação ao jogador. Conseguiu
emplacar o folclórico Jacozinho no amistoso festivo do Galinho,
atrapalhando e ofuscando o evento. No dia da eliminação do Flamengo
no Brasileiro, ostentou uma gigantesca foto no jornal mostrando um
Zico cabisbaixo e de joelhos. No cotidiano, tem amplificado algumas
declarações mais críticas do Galinho, elevando a manchetes que
podem trazer potencial teor polêmico.
E a Globo
dá especial atenção à reação contra a vinda de Edu. Reverbera
em tom talvez desproporcional, em tevê, em rádio. Há uma ênfase
em cravar que o “irmão de Zico” não serve para o Flamengo, que
se tornará uma “bagunça” e “refém” de um jogador. Fala-se
em “pisar na história do clube”.
No dia
seguinte, os jornais afirmam que “a torcida não deixou Edu
assumir”. Ironicamente, a mesma (a mesma?) torcida que, pouco mais
de uma semana antes, havia brindado o Maracanã com o coro de
“Eduuuu, Eduuu, Eduuu”, no final do jogo em que o Flamengo
empatara com o Ceará (2-2) pelo Brasileiro. O que teria mudado desde
então? Talvez o fato de que a manifestação do estádio tenha sido
espontânea.
E assim
Edu Antunes ganha o caminho do Oriente Médio. Irá assumir a Seleção
do Iraque. Em um bom trabalho, logrará classificar os iraquianos
para a Copa do Mundo de 1986, feito inédito na história do país.
No entanto, durante a preparação para o Mundial, o Iraque virá ao
Rio de Janeiro disputar um amistoso com o Flamengo (Fla 3-1,
Maracanã). Em um dia de folga, alguns jogadores se renderão aos
encantos da noite carioca, sem saber que estão sendo seguidos e
fotografados. O escândalo disso decorrente derrubará toda a
comissão técnica, Edu inclusive. Após a passagem pela Seleção
iraquiana, Edu ainda seguirá sua carreira, mas jamais tornará a ser
protagonista em nível nacional.
Joubert
assumirá o Flamengo com um dos mais duros discursos registrados por
um treinador recém-contratado. Defende que “a partir de agora,
todos os onze precisam correr e marcar”, “futebol mudou, precisa
de transpiração. Talento é dispensável”, “jogador precisa do
corpo, não pode ir a teatro, restaurante. Não pode ter vida
social”, entre outras posições, no mínimo, controversas.
Não
durará muito.
É bem
verdade que seu trabalho será prejudicado por sérias baixas. Zico
será abatido a patadas já no segundo jogo da Taça Guanabara. Tita
será negociado, reposto por Sócrates (derradeira extravagância da diretoria). Mas o Doutor sequer estreará. Adílio e
Mozer também sofrerão com contusões. Mas o time, sem alegria,
submetido a um regime quase marcial, irá se arrastar em campo em um
futebol pobre e absolutamente sem imaginação. Joubert arrumará
problemas com jogadores, imprensa e mesmo a torcida. E, após uma
humilhante goleada para o Vasco, encerrará melancolicamente sua
passagem pelo Flamengo, entregando o time na quarta posição do
turno.
Tal como
no episódio de Edu, a “torcida” terá papel relevante e mesmo
decisivo como instrumento de pressão. A partir desses casos, a
“torcida” perceberá que o uso de uma linguagem assertiva,
agressiva e mesmo violenta poderá render dividendos. Será
estimulada. Financiada. Crescerá.
E será
uma personagem cada vez mais ativa na política do clube.
Talvez
ativa demais.