quarta-feira, 22 de junho de 2016

Alfarrábios do Melo

O prejuízo parece incalculável.

Com o retorno de Zico, o Flamengo monta um dos mais caros elencos da América do Sul. Um plantel que, para se tornar viável, precisa de grandes jogos, grandes arrecadações, grandes conquistas.

No entanto, em vez de um Maracanã com 100 mil numa Semifinal de Brasileiro, o lodoso gramado da gelada Blumenau. Amistoso caça-níqueis catado de urgência.

Não sem responsáveis.

A culpa recai sobre o o treinador Zagalo, que teria subestimado os adversários de um grupo teoricamente fraco. O Bahia, único oponente razoavelmente respeitado, foi inapelavelmente batido no Maracanã (3-0), e se pensou que tudo estaria resolvido. Aí veio Pelotas. E a tragédia.

As vozes pela demissão do Lobo já são estridentes. Parte da diretoria não digeriu a hesitação do experiente treinador quando sondado para treinar a Seleção Brasileira. Outros já enxergam que o time não joga com a mesma motivação e alegria de outrora. A gota d'água é a eliminação do Brasileiro. Irritada, a diretoria transmite a Zagalo a exigência de montar e entrosar a equipe nos amistosos pelo Brasil. No entanto, um time desmotivado é derrotado em Blumenau (0-1). Zagalo é avisado que seu cargo está por um fio. Cria-se a bizarra obrigação de vencer o periférico Juventus de Rio do Sul para que o emprego de Zagalo seja mantido. O Flamengo joga bem, faz 5-0, mas Zagalo volta ao Rio e avisa ao Presidente George Helal que está fora. O Lobo, brioso e experiente, antecipa o inevitável e pede demissão.

A saída de Zagalo encerra uma contradição. Após a perda da vaga no Brasileiro, Helal chamara a imprensa para avisar, com todos os efes e erres, que estaria a partir de então assumindo a responsabilidade “única e indelegável” pelo futebol. “A partir de agora, sou o presidente, o vice e o diretor de futebol do Flamengo”. No entanto, o responsável “indelegável” declara ter sido “voto vencido” na demissão do Lobo. Os desavisados não entendem.

O Flamengo segue em seus delírios de fartura. Cogita contratar Éder, Renato Gaúcho, Marinho (Bangu). Negocia a troca de Serginho Chulapa pelo centroavante Chiquinho (que, apesar do mau desmpenho na Gávea, possui prestígio no futebol paulista). Transações que não são levadas adiante por falta de perspectivas financeiras. O segundo semestre acena com um Estadual provavelmente deficitário e mais nada. A realidade impõe se desfazer do caro e problemático Fillol (que falhou nos dois gols em Pelotas), vendido ao Atlético Madrid.

Para substituir Zagalo, o Flamengo vai atrás de Ênio Andrade, que acaba de ganhar o Brasileiro pelo Coritiba. Experiente e vencedor no futebol do Sul do país, Ênio é visto com reservas, pois costuma montar sólidos esquemas defensivos e atuar em contragolpes, um sistema de jogo com o qual o Flamengo não está habituado. Ainda assim, Ênio parece seduzido e sinaliza positivamente à sondagem do rubro-negro. Deixa-se fotografar e manifesta simpatia à ideia de dirigir o rubro-negro, “um caminho curto para uma Seleção Brasileira”. Já sinaliza a intenção de contratar o volante Renê, do Fluminense. A diretoria já dá a chegada de Ênio como certa. No entanto, após uma reunião com o Coritiba, Ênio Andrade desiste e recusa a proposta oficial que lhe chega. Vai permanecer em Curitiba. “Ele tem receio de trabalhar no eixo Rio-São Paulo, já fez isso com o Palmeiras outro dia”, resmunga um diretor flamengo.

Sem o campeão brasileiro, a diretoria age rápido e de imediato anuncia Edu Antunes. O “irmão de Zico” é o novo treinador do Flamengo.

Reduzir Edu à pecha de “irmão de Zico” soa simplista, raso, pela intensa luz própria de seu currículo. Como jogador, construiu uma carreira brilhante em um América que disputava títulos contra os melhores do país. Virou ídolo e um dos maiores atletas da história do clube rubro. Após parar, tornou-se treinador. Novamente no América, conquistou a Taça Rio de 1982, o último troféu de expressão da história americana. Revelou nomes como o lateral Jorginho. Montou um time veloz, compacto e de futebol vistoso, ofensivo. Chamou a atenção do Vasco, para onde se transferiu em 1984. Com um time leve, de um ataque devastador, chegou ao Vice Brasileiro, o que lhe abriu caminho para uma experiência na Seleção Brasileira onde, ainda imaturo, não foi bem. Agora, Edu chega ao Flamengo com o objetivo de implantar na Gávea o mesmo futebol bonito e alegre que pontuou sua carreira. E que “casa” de modo perfeito com o rubro-negro.

A confirmação do nome de Edu faz Helal, principal entusiasta da contratação, exultar. Em tom quase eufórico, chega a declarar: “foi até bom o Ênio não ter aceitado, acho que estamos melhor servidos agora”. Edu recebe a imprensa em sua casa e, visivelmente motivado, profere longas palestras expondo suas ideias, do que pretende fazer no time, da intenção de recuperar jogadores em má fase, como Adílio e Tita, de fixar de vez Bebeto no comando do ataque (aproveitando ideia inicial de Zagalo), “imaginem uma dupla com Zico e Bebeto”. O contrato é de seis meses, o que o motiva. “O bônus de desempenho é minha permanência aqui. Sinto-me desafiado, e isso me anima”.

Cai a tarde.
Vultos. Muros. Latas de spray. Pichações. Barulho, muito barulho. Fogos. Pedras na vidraça.

Os muros da Gávea estão emporcalhados e rabiscados com mensagens enfáticas. “EDU NÃO”. “FORA EDU”. “EDU É DERROTA”. “EDU VASCAÍNO”. “MARAJÁ”.

Com rapidez impressionante, surgem câmeras por todo lado. O protesto é fartamente documentado. Vai pro Jornal Nacional, que dá duas linhas sobre a contratação de Edu e longos minutos sobre o protesto. Torcedores são entrevistados falando mal de Edu. A Rádio Globo, em seus plantões, bombardeia a contratação de Edu. Mais torcedores aparecem criticando. “A diretoria insiste em trazer um treinador que é repelido pela torcida”.

A madrugada será o bálsamo de merecido repouso. Para alguns.

Manhãzinha. Telefones badalam estridentes. Reunião de emergência é marcada. Mais tumulto à vista.
Edu Antunes avisa ao Flamengo que desiste de ser seu treinador. Assusta-se com a repercussão negativa e resolve aceitar uma proposta, que já havia recusado mas ainda não fora retirada, para dirigir a Seleção do Iraque. Para o lugar do “irmão de Zico” assumirá o auxiliar Joubert Meira, que irá para sua terceira passagem no clube.

A recusa de Edu é uma derrota de Helal, que bancara e insistira na opção, apesar de seus evidentes riscos. Helal robustecera-se com a bem sucedida operação de repatriamento de Zico e vinha ganhando uma musculatura já tida como incômoda mesmo por seus pares. Muitos conselheiros e mesmo diretores não digerem bem o estilo personalista e impulsivo de Helal e se irritam quando o Presidente insiste na ideia de contratar um profissional tão ligado a Zico, seu principal trunfo político. Soltam muxoxos junto a jornalistas amigos, falando que Edu é uma “armação de Zico”, que “Zico vai mandar e desmandar na Gávea”, entre outras ilações. Atacando Zico, mina-se Helal.

E há um elemento relevante. A Globo, irritada por ter sido preterida pela Rede Manchete na cobertura do processo de retorno do Galinho, mantém linha editorial bastante crítica em relação ao jogador. Conseguiu emplacar o folclórico Jacozinho no amistoso festivo do Galinho, atrapalhando e ofuscando o evento. No dia da eliminação do Flamengo no Brasileiro, ostentou uma gigantesca foto no jornal mostrando um Zico cabisbaixo e de joelhos. No cotidiano, tem amplificado algumas declarações mais críticas do Galinho, elevando a manchetes que podem trazer potencial teor polêmico.

E a Globo dá especial atenção à reação contra a vinda de Edu. Reverbera em tom talvez desproporcional, em tevê, em rádio. Há uma ênfase em cravar que o “irmão de Zico” não serve para o Flamengo, que se tornará uma “bagunça” e “refém” de um jogador. Fala-se em “pisar na história do clube”.

No dia seguinte, os jornais afirmam que “a torcida não deixou Edu assumir”. Ironicamente, a mesma (a mesma?) torcida que, pouco mais de uma semana antes, havia brindado o Maracanã com o coro de “Eduuuu, Eduuu, Eduuu”, no final do jogo em que o Flamengo empatara com o Ceará (2-2) pelo Brasileiro. O que teria mudado desde então? Talvez o fato de que a manifestação do estádio tenha sido espontânea.

E assim Edu Antunes ganha o caminho do Oriente Médio. Irá assumir a Seleção do Iraque. Em um bom trabalho, logrará classificar os iraquianos para a Copa do Mundo de 1986, feito inédito na história do país. No entanto, durante a preparação para o Mundial, o Iraque virá ao Rio de Janeiro disputar um amistoso com o Flamengo (Fla 3-1, Maracanã). Em um dia de folga, alguns jogadores se renderão aos encantos da noite carioca, sem saber que estão sendo seguidos e fotografados. O escândalo disso decorrente derrubará toda a comissão técnica, Edu inclusive. Após a passagem pela Seleção iraquiana, Edu ainda seguirá sua carreira, mas jamais tornará a ser protagonista em nível nacional.

Joubert assumirá o Flamengo com um dos mais duros discursos registrados por um treinador recém-contratado. Defende que “a partir de agora, todos os onze precisam correr e marcar”, “futebol mudou, precisa de transpiração. Talento é dispensável”, “jogador precisa do corpo, não pode ir a teatro, restaurante. Não pode ter vida social”, entre outras posições, no mínimo, controversas.

Não durará muito.

É bem verdade que seu trabalho será prejudicado por sérias baixas. Zico será abatido a patadas já no segundo jogo da Taça Guanabara. Tita será negociado, reposto por Sócrates (derradeira extravagância da diretoria). Mas o Doutor sequer estreará. Adílio e Mozer também sofrerão com contusões. Mas o time, sem alegria, submetido a um regime quase marcial, irá se arrastar em campo em um futebol pobre e absolutamente sem imaginação. Joubert arrumará problemas com jogadores, imprensa e mesmo a torcida. E, após uma humilhante goleada para o Vasco, encerrará melancolicamente sua passagem pelo Flamengo, entregando o time na quarta posição do turno.

Tal como no episódio de Edu, a “torcida” terá papel relevante e mesmo decisivo como instrumento de pressão. A partir desses casos, a “torcida” perceberá que o uso de uma linguagem assertiva, agressiva e mesmo violenta poderá render dividendos. Será estimulada. Financiada. Crescerá.

E será uma personagem cada vez mais ativa na política do clube.


Talvez ativa demais.