O CENÁRIO
O
Flamengo patina em suas contradições.
Anda em
círculos, sem conseguir resolver a dicotomia entre sua índole
popular, irreverente, que agrada a personalidade do carioca, e um
perfil elitista, encastelado, de sua cúpula.
São
tempos de transformação. O profissionalismo, antes velado, torna-se
aberto, escancarado. Jogadores de qualidade não mais aceitam atuar,
treinar, dedicar parte de suas vidas à prática do esporte
não-remunerado. Ainda mais quando o esporte deixa de se constituir
mero folguedo e se torna algo sério, que demanda envolvimento
crescente. Dedicação quase exclusiva.
Enlodado
em suas dúvidas, alinhado, num primeiro momento, a um romântico e
obsoleto amadorismo, o clube não consegue mais reter jogadores de
primeira linha. Monta equipes fracas. Acumula participações
desastrosas nos Campeonatos Cariocas (quarto, oitavo, décimo, sexto,
nas últimas edições). Empilha goleadas sofridas para equipes de
médio/pequeno porte. Começa a se tornar preocupante objeto de
chacota do povo da cidade. Para piorar, o campo da Rua Paissandu será
devolvido, pois o clube não tem dinheiro para arrematar o terreno da
Família Guinle, que o quer de volta.
É quando
chega o presidente.
O
presidente é publicitário, conhece marketing, tem faro apurado,
visão de mercado e, principalmente, enxerga o Flamengo como uma
marca. Detentor de uma filosofia extraordinariamente avançada para a
época, expõe aquilo que pretende para o Flamengo. Estarrecidos,
abismados e incrédulos, os sócios compram a ideia do dirigente e o
apoiam. Vai começar. O clube será virado ao avesso.
O
presidente entende que o Flamengo é um clube muito grande para o Rio
de Janeiro. E para o Brasil.
AS IDEIAS
O
FLAMENGO E SUA GENTE
Uma das primeiras medidas é o estímulo à adesão de novos sócios. As condições para a aquisição de títulos são facilitadas. O torcedor é chamado a fazer parte do clube, a ser “dono” do Flamengo, a se sentir fazendo parte da rotina da instituição.
O clube
também se aproxima de setores da sociedade, especialmente ligados à
Educação e ao Fomento ao Esporte. Trabalha parcerias com escolas
públicas, criando escolinhas e centros de apoio de comunidades
carentes, o que angaria a simpatia do governo (que ganha poderosa
ferramenta de propaganda) e se constitui em uma estratégia de
captação de jovens valores (os mais talentosos, em seus respectivos
esportes, já se tornam atletas/jogadores do clube).
O
Flamengo também estimula iniciativas de massificação da marca.
Torna-se célebre um concurso, amplamente divulgado na imprensa,
entre as escolas do Rio de Janeiro, com o objetivo de mobilizar as
crianças para elaborarem frases enaltecendo o Flamengo, premiando as
melhores criações. A vencedora dá bem o tom do que pretende a
direção do clube: “O Flamengo ensina a amar o Brasil sobre todas
as coisas”. O concurso alcança tamanha repercussão que uma das
frases será eternizada anos mais tarde em seu hino extra-oficial:
“Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer.”
O
FLAMENGO NO CAMPO
“Flamengo
para o preto e para o pobre”. Uma das preocupações do presidente
é montar um plantel mais identificado com seus torcedores. Há muito
o futebol deixa de ser um esporte de elite e assume um caráter
completamente popular. A despeito de suas equipes de jogadores
universitários, de classe média, o rubro-negro sempre angariou
adeptos por sua postura aguerrida em campo. No entanto, é o momento
de criar um vínculo mais consistente de identificação. Não basta
ao torcedor simpatizar com o atleta que molha a camisa. O torcedor
precisa se enxergar dentro das quatro linhas.
A opção
pelo profissionalismo, embora tardia, é abraçada enfaticamente pelo
presidente que entende que o esporte remunerado assumirá um viés
ainda mais popular, visto que atrairá a gente simples para ganhar a
vida chutando bola. O Flamengo precisa se preparar e, mais do que
isso, precisa conduzir esse processo.
O clube
não está propriamente nadando em dinheiro. Mas surgem
inacreditáveis negócios de oportunidade. Primeiro, chega o
center-half (volante). A Maravilha. Jogador de refinada elegância,
destaque em Copa do Mundo, em aparente declínio físico após
passagem apagada no Uruguai, mas ainda ostentando enorme prestígio
junto ao público.
Depois, o
Divino. Zagueiro de técnica incontestável, um dos melhores do mundo
em sua posição. Campeão no Brasil, no Uruguai e na Argentina. Está
no Boca Juniors mas não pode atuar, por conta de uma suspensão
(brigou com um árbitro). O Flamengo consegue contratá-lo por
empréstimo. O Divino se encantará, e permanecerá no clube. Não
vai voltar mais pra Argentina.
Por fim,
a fagulha. O Diamante. Jogador mortífero, letal, venal, goleador.
Simplesmente o melhor do país. No entanto, irascível, encrenqueiro
e temperamental, costuma ter vida curta nos clubes por onde passa.
Andou arrumando confusão no Botafogo, que facilita sua saída. O
Flamengo vê a oportunidade e traz. Fará história.
A
Maravilha, o Divino e o Diamante. Todos craques. Todos negros. Todos
ídolos.
O
FLAMENGO DE VANGUARDA
Além da
formação de uma equipe por quem sua gente tenha vontade de torcer,
o presidente enxerga no Flamengo o potencial de internacionalização.
Um clube que pode ser um dos maiores do mundo. Quer ver um futebol
praticado como nos grandes centros. E traz o Gringo. A ideia é
promover uma revolução na forma de pensar e praticar o jogo no
País, criando uma consciência e uma aplicação tática, mudando a
mentalidade do brasileiro, que joga futebol quase como uma pelada.
Naturalmente isso irá gerar uma equipe mais competitiva. E
vencedora.
A
modernização chega ao nível de detalhe dos uniformes de jogo. O
Gringo propõe e o presidente abraça. As camisas do Flamengo são
escuras, o que dificulta a identificação dos jogadores nos jogos
noturnos, em campos precariamente iluminados. A ideia é fazer o time
atuar de camisas brancas à noite. E assim o Flamengo se torna uma
das primeiras equipes cariocas a dispor de dois uniformes oficiais,
com escudo e desenho específico (a ideia é tão bem recebida que o
Fluminense logo a adota).
A
vanguarda também se dá na relação com a imprensa. O presidente vê
na mídia um papel fundamental para a qualificação da marca.
Aproxima-se dos principais jornais, especialmente o Jornal dos Sports
(dirigido por seu cunhado), que se tornam portais de amplificação
das iniciativas e dos êxitos do clube. O Flamengo grande é
alardeado com estardalhaço e faz seu povo sorrir.
O
FLAMENGO E SUA CASA
Ao ser
forçado a devolver o terreno da Rua Paissandu, o Flamengo precisou
buscar alternativas mais baratas para erigir seu campo. Chegou-se a
cogitar a Praia Vermelha, na Urca, mas as conversas com a Prefeitura
e o Governo Federal fizeram convergir a decisão para a cessão de um
terreno na Gávea, área ainda erma e algo distante do centro da
cidade. O presidente, ao assumir, já dispunha do terreno na Gávea,
cedida alguns anos antes. O clube ainda hesitava em iniciar obras na
polêmica região, mas o presidente resolve arregaçar as mangas e dá
início, sob ampla publicidade, às obras que irão erguer o Estádio
da Gávea. O projeto prevê a construção de um estádio fechado,
totalmente em concreto, mas o clube somente dispõe de recursos para
erigir, em um primeiro momento, um lance de arquibancadas. E assim se
faz.
OS
RESULTADOS E AS CONTROVÉRSIAS
O
programa de emissão de novos títulos se revela um estrondoso
sucesso. O clube salta de 927 para 9.648 associados em um espaço de
cinco anos. A arrecadação gerada pela iniciativa é revertida para
a construção da Gávea. Mais do que isso, cria uma torrente de
torcedores ainda mais arraigada ao clube, carteirinha de sócio
exibida com orgulho a curiosos.
As
arrecadações nos jogos do Flamengo aumentam dramaticamente. Todos
querem ver seus ídolos, todos fazem fila para assistir ao Divino, ao
Diamante. Os craques flamengos assumem ares de estrela, viram
garotos-propaganda, anunciando pentes, chocolates, desfilam em carros
luxuosos, dão autógrafos. O Flamengo excursiona pelo Brasil,
mobilizando verdadeiras multidões que querem ver, tocar, estar perto
de seus “semideuses”. O Flamengo, definitivamente, reergue-se e
volta a assumir-se protagonista. Seu prestígio cresce
exponencialmente. Ninguém persiste indiferente ao Flamengo.
Mas há
os problemas.
A
polêmica em torno da construção da Gávea jamais cessa. Para
muitos, o rubro-negro está “enterrando dinheiro” em um “areal”
e se tornando um “clubeco de subúrbio”, distante de suas raízes
e de sua história. O presidente está “traindo os ideais que
fizeram nascer o Flamengo”.
Dentro de
campo as coisas também não caminham tão bem. O Flamengo volta a se
fazer respeitar nos gramados, passa a ocupar as principais posições
da tabela, luta por cada taça ponto a ponto, jogo a jogo. Mas o
título, a ansiada glória, não vem. Parece algo intangível,
inalcançável, que escorre pelos dedos.
O
trabalho do Gringo é muito bom. O Flamengo passa a jogar um futebol
bonito, moderno, compacto, vistoso. Mas os jogadores não compram a
briga. Não lhes apetece correr sem a bola, “olhar para o outro”,
pensar jogo. Os treinos soam demasiado estafantes, repetitivos, com
ênfase em preparação física, algo novo e desagradável.
E o
desgaste gerado pelos títulos que não chegam começa a se tornar
incômodo. Antes incensado, o Gringo começa a enfrentar focos
crescentes de resistência. A gota d'água é o deslocamento do
Maravilha para a posição de zagueiro. Vendo que o atleta não reúne
mais a mobilidade necessária para atuar no meio, recua o jogador
para a zaga. O Maravilha não gosta. Recusa-se. Protagoniza rumoroso
caso de indisciplina. É afastado pelo treinador. A torcida, a
imprensa e mesmo parte da diretoria, no entanto, posicionam-se a
favor do jogador. Que, mesmo assim, não atuará mais pelo Flamengo.
O maior
foco das contestações é a Boca Maldita, o grupo de conselheiros e
associados que se reúne para comentar e cornetar o cotidiano do
clube. A Boca defende a demissão do Gringo e o retorno do Alicate,
ex-jogador, agora técnico, que “entende a língua dos players”,
que sabe colocar boleiro na linha. O Alicate, aliás, é um dos
membros mais renitentes e estridentes da Boca. Talvez por ser
desafeto do presidente.
O
Flamengo vai para onze anos sem títulos. É o maior jejum de sua
história. O clube caminha para a próxima temporada sob uma pressão
talvez inédita no mandato do presidente. Apesar de desfrutar de
grande popularidade, o dirigente parece cansado, fustigado pelas
críticas que parecem jamais cessar. Não aceita mexer em uma linha
daquilo que pensou, que concebeu, para o time de futebol. Trocar o
Gringo não lhe passa sequer pela cabeça. No entanto, os sinais de
rebeldia do plantel começam a se tornar eloquentes. Os jogadores não
disfarçam a solidariedade ao Maravilha. No final da temporada,
alguns tropeços e mais um Carioca perdido por pouco. Clama-se por
mudanças.
O EPÍLOGO
Dezembro,
as festas de final de ano se aproximam. O presidente entra em seu
Gabinete, conversa com um ou outro dirigente. Entrega uma carta.
Nela, a renúncia. Está cansado, estafado. Precisa repousar,
recobrar a saúde. Foram cinco anos de dedicação total, exclusiva,
nem sempre reconhecida. Que se dê lugar a outro. O presidente
recebeu um Flamengo claudicante, entrega-o com um faturamento VINTE
vezes maior, dez vezes mais sócios, um estádio quase pronto, um
time que briga por qualquer título, ídolos e, principalmente, uma
instituição que sabe conversar e interagir com seu torcedor. Um
clube cujos heróis já são ouvidos e acompanhados por todo um país.
Um Flamengo que, definitivamente, já não pertence a uma cidade.
A
renúncia do presidente atrai para si uma aura de reconhecimento e
gratidão. Uma fantástica
gama de homenagens e manifestações de simpatia se alastra por todo
o mês de janeiro. O presidente já é uma das maiores personagens da
história do clube.
O Estádio
da Gávea será inaugurado com pompa e circunstância no final do ano
seguinte. Aos poucos, a Gávea irá se tornar o centro de
convergência dos assuntos afetos ao Flamengo, até a transferência
completa das operações do clube. O Flamengo utilizará o campo, tal
como construído, até os anos 1960. Depois o reformará algumas
vezes, sem jamais lograr aumentar sua capacidade, de forma
definitiva.
O futebol
ainda viverá turbulências, decorrentes da manutenção do Gringo no
comando da equipe. No entanto, o treinador não resistirá a uma
derradeira onda de boicote dos jogadores, que ocasionará duas
derrotas nos dois primeiros jogos do Flamengo em seu novo estádio,
tornando sua situação insustentável. Sairá. O time se
transformará. E, após mais algum tempo, enfim voltará a ser
campeão. Nos seis anos seguintes, ganhará quatro campeonatos.
Com o
Alicate de treinador.
Irônico
e triste será o desfecho da carreira do Maravilha. A limitação
física percebida pelo Gringo, que o fez escalá-lo na zaga, na
verdade já é a manifestação inicial da tuberculose que abreviará
a carreira do jogador. Fora do Flamengo, tentará retomar a vida
profissional, mas a saúde o impedirá. O Maravilha falecerá
precocemente, poucos anos após a briga com o Gringo.