quarta-feira, 25 de maio de 2016

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

A incerteza acerca da permanência de Muricy Ramalho no comando técnico da equipe (talvez já dirimida após a publicação deste texto) fez crescer um debate sobre o que se quer para dirigir o Flamengo no futuro. Mais do que nomes, começa-se a discutir perfis, o que julgo positivo.

Um perfil mais inovador ou conservador? Um medalhão ou um jovem talentoso? Um “da casa”, que “conhece o clube”, ou alguém com currículo fora?

Com base nisso, proponho trazer elementos de discussão, com base no relato de passagens marcantes de treinadores na história recente do Flamengo. Esta semana, treinadores “de dentro” ou com pouca experiência anterior. Que deram certo, ou não. A lista não é exaustiva, há outros exemplos, mas não houve espaço para listar todos.

Semana que vem, os “de fora”. Boa leitura e discussão.

* * *

OS “DE DENTRO” OU INICIANTES

QUANDO DÁ CERTO

CLÁUDIO COUTINHO (1976-1980, com interrupções)
Gaúcho, de origem militar, radicado no Rio de Janeiro, construiu carreira na comissão técnica da Seleção Brasileira, atuando como preparador físico e posteriormente auxiliar técnico nas Copas de 1970 e 1974. Assumiu o Flamengo por indicação da CBD, que desejava “dar cancha” a um provável candidato ao posto de treinador. Recebido inicialmente com desconfiança pelo elenco, soube cativar os jogadores com um perfil democrático e de diálogo, embora firme.
Estudioso, entusiasta e adepto das práticas mais modernas de fisiologia do desporto e preparação tática, possuía um perfil absolutamente distinto dos treinadores “paizões” e “boleirões” da época. O respaldo da CBD (lembrando que o país vivia um regime militar) foi importante para absorver os maus resultados iniciais. No entanto, ao ser indicado para dirigir a Seleção Brasileira para a preparação e disputa da Copa de 1978, trouxe um problema ao Flamengo, pois seu trabalho no clube sofreu interrupções. Apenas a partir do final de 1978, quando pôde se dedicar mais intensamente ao Flamengo, conseguiu imprimir mais rapidamente sua filosofia de trabalho, colhendo resultados relevantes.
No clube, soube integrar jovens valores a veteranos tidos como decadentes. Implantou um esquema de jogo atualizado, repleto de triangulações e movimentação em bloco. Introduziu a polivalência, com figuras como o “falso ponta” e o “falso nove”. Seu calcanhar de aquiles foi o sistema defensivo, problema que só conseguiu minimizar com a contratação do zagueiro Marinho e a volta do jovem Andrade. Conquistou um Tri Estadual e um Brasileiro.
Após o título nacional, não conseguiu manter o grupo motivado e, desgastado por atritos com o elenco, demitiu-se no início de 1981. Atribui-se a Coutinho o embrião do time que marcaria o que se convencionou chamar “Era Zico”.

PAULO CÉSAR CARPEGIANI (1981-1983)
Aposentou-se como jogador em maio de 81. Em julho, após passagem relâmpago como auxiliar de Dino Sani, assumiu o comando da equipe, após a recusa de Nelsinho Rosa (campeão estadual de 1980 pelo Fluminense, onde ainda estava empregado). Jogador de forte ascendência sobre o time, de quem era o capitão, sofreu com alguma desconfiança no início (cinco empates em seis jogos), mas a classificação às Semifinais da Libertadores lhe deu respaldo para seguir.
Seu mérito consistiu em retomar e aprimorar a metodologia de Coutinho, que havia sido deixada de lado pelo old-school Dino Sani. Encaixou o sistema defensivo com a ascensão de Mozer e Vítor (espécie de 12º titular) e com a efetivação de Lico, formando um time com dois “falsos-pontas”, algo sem similar no futebol do país na época. Conduziu com competência o processo que levou a equipe ao auge de sua performance, ganhando absolutamente tudo entre 1981 e 1982.
Seguiu a sistemática de dar chances a jovens valores, embora fosse adepto de uma utilização mais restrita do elenco (trabalhava com cerca de 13 a 14 jogadores, que eram mais usados nos jogos).
Também sofreu com o desgaste na relação com o elenco, não resistindo às perdas do Estadual e da Libertadores em 1982. Sua manutenção para o ano seguinte revelou-se um erro, que acabaria deflagrando uma séria crise, a custo debelada.

SEBASTIÃO LAZARONI (1985-1987)
Preparador físico de origem, ascendeu à condição de auxiliar técnico, posto que ocupava quando Joubert Meira foi demitido, após o fracasso na Taça GB de 1985. Indicado para comandar o time em uma excursão aos EUA, retornou com bons resultados e uma avaliação positiva da supervisão. Enquanto o clube procurava medalhões como Menotti e quetais, foi mantido para a estreia da Taça Rio, em que o Flamengo, desfalcado e desfigurado, arrancou um heroico empate contra o favorito Bangu, vice brasileiro (2-2). A atuação vibrante e aguerrida da equipe resultou em sua efetivação.
Lazaroni soube lidar com a necessidade de fazer a transição entre a geração da Era Zico, que, por problemas de lesão ou queda de rendimento, já não conseguia manter sequência, e uma ampla fornada de jovens de qualidade prontos para subir. Promoveu, ou efetivou, nomes como Aldair, Zé Carlos, Zé Carlos II, Guto, Valtinho, Ailton, Zinho, Vinicius, entre outros. Conquistou um Estadual.
Também era defensor da adoção de uma forma de jogo mais competitiva e veloz, mantendo o time atrás da linha da bola e saindo em velocidade em contragolpes fulminantes. Suas equipes transpiravam e jamais se rendiam em campo. Gostava de improvisar posições, herdando a “polivalência” de Coutinho. No entanto, padecia de certa falta de flexibilidade na forma de jogo.
Paradoxalmente, desgastou-se à medida que os melhores jogadores foram começando a reunir condições de jogo. Recusando-se a montar um time mais cadenciado e técnico, comprou briga com Adílio e Sócrates, acreditando ter força para confrontar o vestiário. Não foi o caso.

CARLINHOS (1987-1988, 1991-1993, 1999-2000)
Estão aqui listadas as três melhores passagens.
Cria da Gávea, onde fez carreira como jogador e como treinador, inicialmente trabalhando nas divisões de base, depois içado ao posto de auxiliar. Após passagem ruim em 1983, foi elogiado ao comandar o time como interino na Taça GB em 1987, entregando-o invicto a Antonio Lopes. Com o fracasso do “delegado”, tornou a ganhar chance de forma provisória no Brasileiro, mas os bons resultados contra Vasco (2-1) e Santos (0-0, fora de casa, jogando com 10 e melhor), aliados à dificuldade de contratação de um nome de ponta, o mantiveram no comando.
Em 1991, Carlinhos, como auxiliar, também herdou, de forma provisória, o comando da equipe, após a turbulenta passagem de Vanderlei Luxemburgo. E, em 1999, foi contratado para comandar um elenco ansioso por um “resgate” da identidade rubro-negra, tida como perdida nos anos de administração Kléber Leite.
Em síntese, Carlinhos caracterizou-se por uma visão intuitiva aguçada. Seu posto de auxiliar lhe permitiu observar atentamente o funcionamento das equipes e, ao ser promovido, realizar mudanças simples, pontuais, mas decisivas e capazes de alterar dramaticamente o seu funcionamento. Versátil, conseguiu trabalhar com elencos jovens, promovendo valores da base (especialmente em 1991 e 1999), e com grupos mais qualificados (1987). A exemplo de outros profissionais bem sucedidos, fez do diálogo e da abertura aos líderes do elenco sua marca. Com isso, tornou-se um dos mais vitoriosos treinadores da história do clube (dois Brasileiros, uma Mercosul, três Estaduais, entre outras conquistas).
No entanto, tinha dificuldades em momentos de turbulência. O perfil conciliador e de diálogo não se mostrou adequado para resolver conflitos. Nas três passagens citadas, perdeu o vestiário de forma inapelável, em decorrência de maus resultados em sequência.

ANDRADE (2009-2010)
Figura de controversas passagens anteriores, seguiu como auxiliar fixo de diversos treinadores, acompanhando alguns dos momentos mais difíceis da história do clube. Em 2009, após a demissão de Cuca, recebeu a incumbência de dirigir, em caráter interino, o time em duas partidas teoricamente difíceis (Santos F, Atlético-MG C). Venceu e convenceu em ambas, o que motivou sua efetivação.
Intuitivo, soube domar um elenco difícil, com jogadores de temperamento complicado. Capitalizou a motivação de atletas como Petkovic e Adriano, canalizando-as para dentro de campo. Montou um esquema simples, de fácil execução, e soube fazer o elenco comprar a briga de um título brasileiro que parecia improvável. O hexa veio, de forma histórica. Com ele, os problemas.
O elenco campeão de 2009 perdeu peças importantes, e Andrade não soube trabalhar com as peças de reposição. Também não conseguiu manter o elenco motivado e focado para a Libertadores, quase sendo eliminado precocemente na Primeira Fase. Sem comando, conviveu com episódios de indisciplina que beiraram o confrontamento direto. A perda do Estadual para o Botafogo foi-lhe fatal, e encerrou sua trajetória no clube.

QUANDO DÁ ERRADO

CARLINHOS (1983)
O Flamengo estava imerso em forte crise, jogadores desmotivados, arrastando-se em campo, jogando sob pesadas vaias. Carpegiani, visivelmente desgastado, foi demitido. Carlinhos, sem qualquer experiência no profissional, assumiu com a intenção de devolver uma vibração há muito perdida. Conseguiu apenas no primeiro jogo, um empate com o Palmeiras no Maracanã (1-1, em que o time perdeu inúmeras chances e cedeu a igualdade em lance isolado). Após algumas decisões confusas, como a barração de titulares importantes, perdeu o cargo nas desastrosas partidas do Flamengo na Bolívia pela Libertadores (0-0 Blooming e 1-3 Bolívar), que custaram a vaga à fase seguinte. Carlinhos, tido como muito “verde”, ainda teria que aguardar alguns anos.

JOSÉ ROBERTO FRANCALACCI (1983)
O Flamengo sangrava a saída de Zico. Uma aura de desânimo pairava sobre toda a instituição. Perdidos, os jogadores se ressentiam da falta de um líder (Raul, quase aposentado, não queria exercer esse papel e Júnior, ainda imaturo, não estava pronto). O treinador, Carlos Alberto Torres, somente bradava “raça, raça” pelos cantos. Foi demitido. Assumiu o preparador Francalacci, numa tentativa de repetir o sucesso de Coutinho. Mas o timing foi desastroso. Francalacci tentou inovar e aplicar sistemas de jogo requintados e complexos. Testou Leandro e Júnior na posição de Zico. Apenas trouxe mais confusão e desequilíbrio a um cenário devastado. Após algumas derrotas contundentes, foi devolvido à comissão técnica.

SEBASTIÃO ROCHA (1997)
Assumiu o time após a saída de Júnior, desgastado com a derrota para um time reserva do Botafogo na Taça GB. “Paizão”, “carinhoso”, inicialmente trouxe boas respostas, mostrando capacidade de trabalhar com um elenco jovem e de conciliar as necessidades da equipe ao temperamento de Romário. Conseguiu formar um time compacto e veloz, que foi avançando às fases finais da Copa do Brasil. No entanto, a hesitação mostrada na partida decisiva contra o Grêmio foi-lhe fatal. Demonstrando abatimento com as críticas, sucumbiu ao mau início do time no Brasileiro, quando chegou a beirar a ameaça de rebaixamento. Sua despedida, aos prantos, na goleada sobre o Atlético-MG (4-2 no Mineirão), revestiu-se de uma página particularmente constrangedora.

JÚLIO CÉSAR LEAL (2005)
Formado na Gávea, com experiência em Seleções Brasileiras de base e no Oriente Médio, enfim se julgou capaz de conduzir o time principal, especialmente diante de um elenco barato, onde seria necessário promover alguns jovens da base. No entanto, mostrou-se alheio e algo deslumbrado, parecendo desconectado da crise que assolava o clube. Em um elenco abatido pela péssima temporada anterior, com alguns reforços inexpressivos e torrados mesmo antes da apresentação, acenou com uma esdrúxula “cartilha” de conduta (onde figuravam “instruções”, como “bater faltas à la Zico”) e outras excentricidades, como o pedido de uniformes azuis de treino à fornecedora de material esportivo (“azul é a cor dos vencedores”). Não foi difícil prever o desfecho. Após uma humilhante estreia na Taça GB (0-3 Olaria no Maracanã, única vitória do adversário no campeonato), resistiu apenas por 6 jogos, sendo sumariamente demitido. Sua contratação, até hoje, é dolorosamente lembrada como um retumbante erro de avaliação.

ANDRADE (2005)
O momento caótico do Flamengo, afundado na Zona de Rebaixamento e com um dos mais deploráveis elencos de jogadores da sua história, requeria ações rápidas, enérgicas. Perdidos e sem dinheiro, os dirigentes não pareciam reunir muitas opções de ação. Optou-se pela efetivação de Andrade, que com um trabalho razoável no final do ano anterior havia salvo o time do descenso.
O início não foi ruim, dentro das circunstâncias. Andrade, com uma tática simples, “fechou a casinha” e tentou montar um time veloz e compacto. Conseguiu alguns resultados importantes e improváveis (0-0 contra os fortes Cruzeiro e Santos, ambos fora de casa, 2-0 sobre o São Caetano, entre outros). Mas, incapaz de conter uma forte guerra de egos e um elenco fragmentado em subgrupos, rapidamente sucumbiu à crise que parecia interminável. Após alguns resultados humilhantes, deixou o comando do Flamengo com a equipe na lanterna e com mais de 90% de chances de rebaixamento.

ROGÉRIO LOURENÇO (2010)
Assumiu o clube na esteira da perda do Estadual e de uma classificação quase inacreditável para a Segunda Fase da Libertadores. Conseguiu desfrutar do último sopro de motivação dos jogadores do hexa, o que foi suficiente para eliminar o Corinthians em duas partidas duríssimas. Poderia ter ido mais longe na competição continental, mas foi prejudicado por um erro primário de logística na partida de ida das Quartas de Final, contra a Universidad-CHI, que não foi revertido nem mesmo pela primorosa atuação da equipe no Chile.

Sua forma de jogo era simples, trazendo elementos da “tropa de elite” de Joel, montando um cinturão de zagueiros e volantes que trancavam a defesa e faziam o time jogar em função do talento de Adriano e Wagner Love. Com a eliminação da Libertadores e a saída dos dois atacantes, perdeu a referência ofensiva e não resistiu à aridez técnica do elenco remanescente. Seu temperamento difícil também não ajudou. Deixou o comando após o mau início no Brasileiro.