A melhor coisa de ser menino é jogar bola.

A bola,
quando aparecia, era chuveirinho, de borracha, que ficava legal
depois de amaciada por alguns dias. Tinha que jogar descalço pra
sentir. Pro goleiro era um problema, porque o chute quando carimbava
ardia. Assava, a gente dizia.

Podia ser
também no campinho de terra batida, as traves de gravetos, que
rebentavam a cada bomba. Baba de se melar todo de barro, de chutar
toco, de esfolar a unha no buraco.
Acho que
fui bater baba com trave de rede já maior um pouco.

Cada um
tinha seu jeito, seu estilo. A tática era de uma sofisticação sem
par: quem gostasse de atacar ia pra frente, quem fosse de defesa
jogava atrás. Quando perdia a bola, todo mundo tinha que voltar. Se
o baba fosse de goleiro, tinha que revezar cada vez que levasse gol.
O melhor do time era o que fazia mais gol e não se falava mais
nisso.
Nada de
fardamento, equipamento cheio de frufru. Quando era baba de pouca
gente, tinha que decorar quem era do time. E ai de quem errasse. Se o
baba fosse maior, aí fazia o esquema de “com-camisa” e
“sem-camisa”, o que às vezes era problema, porque a maioria
vinha jogar sem blusa. Mas no fim sempre dava certo. Tinha que saber
improvisar.

Um dia
apareceram uns pivetes no nosso baba. Vieram na paz, queriam bater
uma bola. E assim se fez. E, embasbacado, rebentei a caixa de cristal
da realidade do menino de apartamento, posto que fanático. Porque
aquilo que os moleques faziam com a bola não parecia de Deus. Era
futebol cru, no mais puro estado da arte. Não corriam, zuniam.
Sumiam na nossa frente. Escondiam a bola. Parecia que a bola era uma
extensão de seus pés. Competitivo, ficava contrariado de jogar
contra, a derrota certa. Mas extasiado. Coisa linda de ver. Um dia não apareceram mais.
Jogar
bola era mais legal que assistir na tevê, se o jogo que tivesse
passando não fosse do Flamengo ou do Brasil. Apareciam aquelas
conversas chatas de esquema tático, impedimento, volante, marcação
homem a homem ou por zona, jogador que tinha que derivar na ponta,
esse tipo de coisa que um garoto não tava muito a fim de entender.
Na cortante lógica infantil, bastava um time ser melhor que o outro,
atacar mais e fazer mais gols. O resto era teoria e papo furado.

Apenas se
divertia. Seu jogo gargalhava como o dos pivetes do nosso baba.
Quando tinha a bola, nada parecia ser importante, relevante. Apenas a
mais pura, a mais límpida, a mais cristalina essência do jogo de
bola. Brincar, iludir, driblar, fintar, tabelar, chutar, fazer gol. E
nisso nos espelhávamos. Nos enxergávamos. Nos identificávamos. Nos
sentíamos jogadores de bola. E, arrepiados, nos deixávamos
abandonar, olhos faiscantes, reluzentes, úmidos, pela encantadora e
lírica poesia do seu jogo. Um jogo feérico. Pulsante. Moleque.
Irreverente. Flamengo.
Obrigado,
Adílio. Muitos anos de vida.