A melhor coisa de ser menino é jogar bola.
Às vezes
nem precisa ser bola. No pátio da escola, a gente jogava com
coquinho seco, que caía das árvores e enfeitava o chão. A trave
era um portão de madeira, e aí eram uns vinte contra vinte. Já fiz
muito gol chutando coco. Na falta do coco, podia ser lata vazia de
guaraná, resto de copo de plástico, um pedregulho maiorzinho ou até
um sapato velho. Sim, chutava sapato velho quando não tinha bola.
A bola,
quando aparecia, era chuveirinho, de borracha, que ficava legal
depois de amaciada por alguns dias. Tinha que jogar descalço pra
sentir. Pro goleiro era um problema, porque o chute quando carimbava
ardia. Assava, a gente dizia.
Todo
lugar era lugar. Podia ser no meio da rua (era uma rua estreita,
passava pouco carro), um par de chinelo marcando cada trave, o pé
despido no meio do asfalto, chegando todo ralado em casa. Baba com
peão de obra, com zelador de prédio depois do trabalho, com playboy
de apartamento, com quem quisesse bater uma bolinha. Às vezes
aglomerava, tinha que organizar. Regra, regulamento? Era criado na
hora, na base da conversa e do grito.
Podia ser
também no campinho de terra batida, as traves de gravetos, que
rebentavam a cada bomba. Baba de se melar todo de barro, de chutar
toco, de esfolar a unha no buraco.
Acho que
fui bater baba com trave de rede já maior um pouco.
Não
tinha mistério nem complicação. Juntava a turma, escolhia dois,
que batiam par ou ímpar e iam puxando os melhores pros seus times.
Se não tivesse ninguém na “de fora”, sobrando, o baba ia a
tarde toda com o mesmo time. Do contrário, marcava tempo ou dois
gols, e os times iam se revezando. Simples.
Cada um
tinha seu jeito, seu estilo. A tática era de uma sofisticação sem
par: quem gostasse de atacar ia pra frente, quem fosse de defesa
jogava atrás. Quando perdia a bola, todo mundo tinha que voltar. Se
o baba fosse de goleiro, tinha que revezar cada vez que levasse gol.
O melhor do time era o que fazia mais gol e não se falava mais
nisso.
Nada de
fardamento, equipamento cheio de frufru. Quando era baba de pouca
gente, tinha que decorar quem era do time. E ai de quem errasse. Se o
baba fosse maior, aí fazia o esquema de “com-camisa” e
“sem-camisa”, o que às vezes era problema, porque a maioria
vinha jogar sem blusa. Mas no fim sempre dava certo. Tinha que saber
improvisar.
O baba de
golzinho era o mais divertido porque era o que dava mais confusão.
Quando a bola ia pro gol rasteira era beleza. Mas e se o chute fosse
alto? Era fora? “por cima do gol”? Ou se pensava numa linha
“imaginária”? Normalmente acabava numa ruma de menino batendo
boca. O que tinha de moleque mudando de ideia de acordo com o lado
que acontecia o lance era uma festa.
Um dia
apareceram uns pivetes no nosso baba. Vieram na paz, queriam bater
uma bola. E assim se fez. E, embasbacado, rebentei a caixa de cristal
da realidade do menino de apartamento, posto que fanático. Porque
aquilo que os moleques faziam com a bola não parecia de Deus. Era
futebol cru, no mais puro estado da arte. Não corriam, zuniam.
Sumiam na nossa frente. Escondiam a bola. Parecia que a bola era uma
extensão de seus pés. Competitivo, ficava contrariado de jogar
contra, a derrota certa. Mas extasiado. Coisa linda de ver. Um dia não apareceram mais.
Jogar
bola era mais legal que assistir na tevê, se o jogo que tivesse
passando não fosse do Flamengo ou do Brasil. Apareciam aquelas
conversas chatas de esquema tático, impedimento, volante, marcação
homem a homem ou por zona, jogador que tinha que derivar na ponta,
esse tipo de coisa que um garoto não tava muito a fim de entender.
Na cortante lógica infantil, bastava um time ser melhor que o outro,
atacar mais e fazer mais gols. O resto era teoria e papo furado.
Mas havia
um. Tinha um que jogava como guri. Que provocava risadas e alegria
quando a gente ligava a tevê. Que andava gingando, negaceando,
driblava até no caminhar. Que parecia que, a qualquer momento, ia
tirar a camisa e as chuteiras. Que fazia o diabo com a bola. Que
costurava, rabiscava, cerzia, perfurava sem pudor maciços blocos de
zagueiros. Que chamava um companheiro pra tabelinha, endoidecendo os
adversários e a torcida. Que parecia ter asas. Que era de borracha.
E que fazia tudo isso rindo. Feliz. Brincava de bola. Brincava como o
moleque que driblava jogadores, iludia complexos esquemas táticos,
ludibriava sistemas, enganava adversários poderosos. Fintava a vida.
Apenas se
divertia. Seu jogo gargalhava como o dos pivetes do nosso baba.
Quando tinha a bola, nada parecia ser importante, relevante. Apenas a
mais pura, a mais límpida, a mais cristalina essência do jogo de
bola. Brincar, iludir, driblar, fintar, tabelar, chutar, fazer gol. E
nisso nos espelhávamos. Nos enxergávamos. Nos identificávamos. Nos
sentíamos jogadores de bola. E, arrepiados, nos deixávamos
abandonar, olhos faiscantes, reluzentes, úmidos, pela encantadora e
lírica poesia do seu jogo. Um jogo feérico. Pulsante. Moleque.
Irreverente. Flamengo.
Obrigado,
Adílio. Muitos anos de vida.