1978.
Tudo
parte de um vexame.
Com
efeito, a desmoralizante derrota sofrida em Porto Alegre, diante do
Grêmio (2-5), acentua a percepção de que o Flamengo precisa rever
seu elenco. Uma das posições mais questionadas é a de goleiro.
Cantarele, que vem falhando ultimamente, acaba tido como um dos
responsáveis pela derrota.
O
veterano Raul, do Cruzeiro, não quer mais jogar bola.

Raul
chega com status de titular. Já estreia na excursão que o Flamengo
faz à Europa. Mesmo ainda visivelmente fora de forma, agrada, faz
defesas importantes e é peça decisiva na conquista do Torneio de
Mallorca, contra o Real Madrid (2-1). Retorna ao Rio com a posição
de titular debaixo do braço.
O
Flamengo, sempre com Raul em campo, parece enfim ter encontrado um
conjunto. O time vai passando por cima de todos os adversários no
Estadual e conquista por antecipação a Taça Guanabara, que
corresponde ao Primeiro Turno. Nas palavras de alguns membros da
comissão técnica, Raul impressiona pela sua liderança e
ascendência sobre os jogadores do elenco, injetando doses de
tranquilidade, pragmatismo e crua competitividade com as quais
definitivamente o Flamengo não estava acostumado.
No
entanto, Raul será traído pelo seu principal ponto fraco.
No início
do Segundo Turno, o Flamengo vai se preparando para o encontro diante
do Madureira. No recreativo da véspera da partida, Raul é “coagido”
pelo elenco a participar do recreativo, atividade que detesta e da
qual nunca fez parte (aliás, a aversão do goleiro aos treinamentos
é notória e tolerada por Coutinho que, no entanto, exige do goleiro
um desempenho de alto nível em campo). Deslocado para a linha, Raul
vai disputar uma bola, estica demais a perna (movimento com o qual
está desacostumado) e arrebenta a coxa. Distensão muscular.
Raul está
fora da temporada.
O
Flamengo atravessa o resto do ano com o instável Cantarele no gol.
Mas Cantarele dessa vez agarra sua chance e corresponde, atuando de
forma convincente nos jogos que darão ao rubro-negro o importante e
ansiado Título Estadual, por antecipação (graças ao gol de
Rondinelli).
1979 se
inicia com Cantarele mantendo a condição de titular. Com efeito,
Coutinho tem como prática somente trocar goleiro por motivo de lesão
(desde que esteja atuando bem). Se o reserva entrar e corresponder, o
antigo titular terá que aguardar sua vez.

A
excepcional fase de Cantarele é contrastada pela acomodação de
Raul. Visivelmente gordo e desmotivado, Raul parece farto da
entediante rotina de treinos a que agora precisa se submeter. Atua em
jogos esporádicos, oficiais ou amistosos. Sua postura passiva e
aparentemente resignada acende na Gávea a sensação de que talvez
seja o momento de descartá-lo, pois, ao final das contas, é um
reserva recebendo salário de titular.
E com
essa percepção termina a temporada. Mas a reviravolta não tardará.
Cantarele
se apresenta para a pré-temporada de 1980 com um estiramento
muscular. Está, desde já, fora da primeira partida do ano, um
amistoso contra o São Paulo no Morumbi, jogo festivo que marcará a
despedida do tricolor Bezerra. Estádio lotado e transmissão para
todo o Brasil.
O
Flamengo vive um momento de incertezas. A devastadora eliminação
diante do Palmeiras (1-4) trouxe uma série de questionamentos
internos quanto à real capacidade do elenco.
Na semana
do amistoso, as diretorias de Flamengo e Grêmio iniciam
entendimentos para uma transação envolvendo a venda de Raul para o
time gaúcho. As bases para a negociação são praticamente
fechadas, restando pendentes alguns pontos secundários.

Acontece
que Raul, contrariando sua natureza, resolvera se preparar como um
garoto para essa partida. Treinara como se amanhã não houvesse. A
pecha de “velho decadente” ferira de morte seus vaidosos brios.
Não, não iria terminar assim.
Ao final
do jogo, Raul é coberto de microfones, e declara “eu estou de
volta. Para quem me quiser, naturalmente”.

Mantendo
a coerência, Coutinho confirma Raul como titular da equipe que irá
iniciar o Brasileiro. Cantarele, já recuperado, resmunga a perda do
posto, o que gera um certo atrito. “Eu aguardei a minha chance,
agora ele que espere a dele”, responde um irritado Raul a um
repórter.

O
Flamengo é Campeão Brasileiro e Raul segue intocável na condição
de titular. Por enquanto.

Com
Cantarele no gol e Dino no banco, o Flamengo conquista a Taça
Guanabara, válida pelo Primeiro Turno do Estadual. No entanto,
Cantarele falha estrepitosamente no segundo gol de Éder, na estreia
da Libertadores, contra o Atlético-MG, no Mineirão (2-2). Mas é
mantido, numa rara demonstração de paciência de Dino Sani.
Após
mais uma turbulência ocasionada por uma reação intempestiva de
Dino (mandou multar o jovem Mozer em 40% do salário porque o
zagueiro tentou driblar um atacante do Serrano na frente da área, em
lance que quase terminou em gol), a diretoria, farta das confusões,
demite o treinador, num desfecho até certo ponto esperado. Assume o
auxiliar Carpegiani, que em princípio mantém Cantarele no gol. Mas
Cantarele falha novamente pela Libertadores, agora no empate contra o
Olimpia (1-1), no Maracanã. O goleiro (junto com o resto do time)
sai vaiado, e volta a mostrar a velha e decantada irregularidade.

Raul
permanecerá cerca de um ano como titular. Nesse período,
conquistará rigorosamente tudo o que entrar em disputa, tornando-se
um dos mais vitoriosos jogadores da história do futebol brasileiro.
Mais do que titular, Raul é, juntamente com Zico e Júnior, uma
referência de voz ativa no elenco.
O
Flamengo disputa alguns amistosos durante a Copa de 1982. Raul atua
com dores nas costas, que se tornam mais intensas, até comprometer
sua permanência em campo. Após bateria de exames, conclui-se que
uma cirurgia é necessária. “Opero, volto e paro”, decide o
veterano goleiro.
Assim,
Cantarele está de volta ao time.

Na reta
final da temporada, Raul volta aos treinamentos. Mas Cantarele é
mantido, em função do nível de suas atuações. No entanto, o
goleiro é criticado no gol que elimina o Flamengo da Libertadores
(não pulou na cobrança de falta de Jair), partida que faz nascer um
princípio de crise na Gávea. Cansado, desmotivado e vivendo alguns
problemas de relacionamento, o Flamengo arrasta-se em campo e começa
a acumular derrotas inesperadas. Carpegiani, demonstrando estar
sentindo a pressão do mau momento, começa a tomar decisões
precipitadas. Uma das mais polêmicas é a escalação de Raul,
completamente fora de ritmo, para a Final do Estadual contra o Vasco,
sacando Cantarele, que sentira uma lesão leve mas treinara
normalmente na véspera da partida.
Pela
primeira vez, Cantarele demonstra, de forma incisiva, insatisfação
e o desejo de trocar de clube.
Mas isso
não acontece, ao menos por enquanto. Em 1983, Raul avisa que esta
será a sua última temporada. Carpegiani, apesar da pesada crise, é
“prestigiado” e mantido, mesmo com os reiterados sinais de que
perdera o vestiário. Não durará muito.
Após uma
frustrada experiência com o ainda inexperiente Carlinhos, o “capita”
Carlos Alberto Torres assume o comando do time. Uma de suas primeiras
providências é uma conversa com os líderes do elenco (Zico, Júnior
e Raul) para discutir detalhes do funcionamento da equipe. Raul,
naturalmente, segue como titular, e se torna peça importante, com
excepcionais atuações nas partidas da reta final do Campeonato
Brasileiro, que o Flamengo conquista pela terceira vez.
Ao final
da competição, o Flamengo empresta Cantarele ao Náutico. O goleiro
agrada, mas em dezembro retornará à Gávea, insatisfeito com os
atrasos salariais no clube pernambucano que, por sua vez, desiste da
compra por considerar o jogador caro em excesso.
O segundo
semestre é violentamente turbulento. A venda de Zico acende uma das
mais fortes crises da história do Flamengo. O time simplesmente
entra em colapso. Perde quatro dos cinco clássicos da Taça
Guanabara. Sofre derrotas contundentes. Escapa de goleadas
humilhantes. Um, e apenas um jogador, escapa incólume às pesadas
críticas despejadas sobre o elenco: Raul, que com atuações
verdadeiramente antológicas impede que o quadro se torne ainda mais
grave. O goleiro está obcecado em uma despedida “em alto estilo”
e efetivamente vai empilhando uma grande atuação atrás da outra. É
figura fácil no quadro “O Goleiro do Fantástico”, que premia a
melhor exibição de um arqueiro no domingo. Defende pênalti contra
o América, fecha o gol contra o Bonsucesso, faz o diabo. Um dia, não
pode jogar, contra o Bangu. Entra Abelha, jovem que se destacou no
Brasileiro pela Ferroviária-SP, que o Flamengo trouxe para a
reserva. O time leva de seis. E Abelha falha em pelo menos dois gols.
A
situação melhora no Segundo Turno, em que o Flamengo aproveita a
pausa para a Copa América e refaz parte da equipe. As vitórias
voltam (o Flamengo vence todos os cinco clássicos), Raul segue
mantendo grandes atuações e conquista seu último troféu, a Taça
Rio (Segundo Turno). Durante o percurso, o Flamengo anuncia a
contratação, para o ano seguinte, de Ubaldo Fillol, tido como um
dos melhores goleiros do mundo. Raul, ao saber do nome que irá
substituí-lo, rende-se e, numa rara manifestação de emoção,
emenda:
“É a
maior demonstração de reconhecimento que o Flamengo pode me dar.
Não serei substituído por qualquer um. Estou sensibilizado.”
Cantarele
permaneceu no Flamengo até 1989, quando encerrou a carreira. Nesse
percurso, ocupou a reserva de Fillol, assumindo a condição de
titular em 1985, com a venda do goleiro argentino. Manteve-se à
frente do gol rubro-negro até a reta final do Estadual de 1986,
quando torceu o joelho e perdeu a posição, que não mais
recuperaria, para Zé Carlos. Seguiu, até o final, alternando
grandes atuações com falhas grosseiras.
Raul
largou o futebol em dezembro de 1983, como prometera. Seu jogo
de despedida reuniu praticamente todos os grandes jogadores
brasileiros em atividade, inclusive atuando no exterior, como Zico,
Edinho e Falcão. O amistoso, entre Flamengo e “Amigos de Raul”
(terminado com o placar de 3-2 para o combinado), foi realizado no
Maracanã, para 41 mil pagantes. Daquele que foi o melhor time da
história do Flamengo, apenas Zico também logrou despedir-se do
futebol em um grande jogo no Maracanã.