Chegou no jogo contra o
Vasco.
O Flamengo cogitava
contratá-lo desde que deu uma bicuda num câmera no Equador, num jogo que o
Palmeiras perdeu pela Libertadores, e ficou sem clima lá no alviverde. Dividiu opiniões
entre a diretoria, alguns preferiam a chegada de um meia-atacante, cogitou-se e
se costurou a contratação de Amoroso, mas o talentoso jogador do Guarani
arrebentou o joelho e ficou fora de combate.
Donde, tinha que ser
mesmo ele. Montou-se a “Operação Animal”. O Palmeiras anunciou o preço. US$ 5
milhões. Flamengo e Botafogo se interessaram. Conversaram. Aliciaram.
Atravessaram-se mutuamente. Mas o rubro-negro entrou com dinheiro vivo e levou
o jogador. “Voltar ao Rio é um sonho. Lá me sinto em casa.”
Voltou, desfilou em
carro aberto, em meio a macacos de circo.
E apareceu no jogo
contra o Vasco.
Não para jogar. Não
estava inscrito, o Estadual vinha na reta final. Mas para ser exibido. Um
troféu. A arma de efeito moral. O artifício que quebra a espinha do adversário.
Edmundo, prata da casa cruzmaltina, aparece em um Maracanã lotado, em um
Flamengo x Vasco, dentro do campo, com a camisa do Flamengo, ouvindo, dessa vez
do outro lado do estádio, o famoso coro “Ah, é Edmundo!”.
Vai para as tribunas
e torce fervorosamente para o rubro-negro (a presença de jornalistas reforça essa
intensidade). O Flamengo goleia (4-2). O Vasco é eliminado. Eurico Miranda,
pela primeira vez em sua trajetória, é ameaçado de afastamento. O Vasco sente o
golpe, e parece destruído. Está destroçado.
Passa o tempo.
Agora o Flamengo vive
sua pesada crise. A crise do abatimento gerado pela perda de um Estadual
importante. Pelas rusgas dos agora desafetos Romário e Luxemburgo, que redunda
na demissão do treinador. Pela necessidade de produzir resultados imediatos,
troféus, títulos, nem que seja na marra. Comemorando seu primeiro centenário.
Chega o dia da estréia.
É contra o Guarani, em Cuiabá.
Joga bem, marca o gol
do empate (1-1). É aplaudido. Mas num momento de assédio mais intenso, morde o
braço de uma torcedora mais assanhada. E tem seus pertences roubados no
vestiário. Um sinal?
O Flamengo vai
excursionar. Japão, China, Espanha. Os resultados são razoáveis (destaque
negativo para os 0-3 contra o Deportivo La Coruña, em meio a algumas boas
vitórias), mas o clima interno revela-se ruim. Há o controverso caso da suposta
agressão de Romário a Sávio, que azeda o ambiente. Edmundo, obcecado pela
história do “ataque dos sonhos”, exige da imprensa japonesa o mesmo tratamento
dispensado a Romário. Cobra cachê por entrevistas, recusa-se a atender fãs. Um
sinal amarelo se acende.
Inicia o Brasileiro. Na
estréia contra o Bragantino, em São Januário, uma difícil vitória diante de um
adversário com nove jogadores (2-1, gol de Romário nos descontos). Mas Edmundo
marca um belo gol e se movimenta com desenvoltura. As dificuldades da partida parecem
menores diante da vitória.
A realidade logo se
revela, crua. O tal “ataque dos sonhos” esvazia o meio-campo que,
sobrecarregado, não consegue proteger a defesa. Escalam-se três volantes
(Pingo, Ueslei e Djair), transformando o meio em um deserto de talento, que não
cria e deixa exposta a última linha, formada por dois laterais que marcam mal
(Robson e Lira) e dois zagueiros lentos (Ronaldão e Claudio). Não há como dar
certo. Nem a improvisação de um zagueiro na lateral-direita, fechando mais a
linha, resolve o problema.
O Flamengo perde três
seguidas (Palmeiras, Paysandu e Corinthians), demite o treinador Edinho, e
Edmundo começa a espetar o funcionamento do time. “A gente cria, mas a defesa vacila”,
declara, enfurecido, após a derrota para o Palmeiras, no Maracanã. É o início
da consolidação do racha.
O pitoresco Washington
Rodrigues (o Apolinho) é contratado para o comando da equipe, junto com o
auxiliar Arthur Bernardes, que fica a cargo de “coisas chatas”, como treinar e
armar o time. Edmundo reage positivamente, e, em sua melhor atuação pelo
Flamengo, faz gol e comanda a equipe na espetacular vitória sobre o Velez
Sarsfield, na Argentina (3-2, virada nos descontos).
Mas vai durar pouco.
Suspenso, não participa
dos 2-0 sobre o Juventude, em Caxias do Sul. De volta, faz partida razoável,
mas o Flamengo cede um inacreditável empate (2-2, vencia por dois gols) aos
reservas do Grêmio, com dois a menos em campo, em Florianópolis. Nervoso com o
vexame, dá entrevista bombástica, culpando abertamente o sistema defensivo
pelos problemas da equipe. “Não adianta a gente se matar, lá atrás eles sempre
entregam”. Com essa entrevista, torna-se definitivamente sem ambiente no elenco.
Passa a ser apenas tolerado.
Os reveses começam a se
suceder. Edmundo marca o gol de “honra” na acachapante derrota para o Botafogo
(1-3) em Fortaleza, depois perde um gol inacreditável e não evita o tropeço
diante do Vitória (0-1) em Cariacica. E, ainda em território capixaba, “assiste”
ao passeio de um Cruzeiro que decreta a lanterna do “melhor ataque do mundo”,
findo o primeiro turno do Brasileiro. O Flamengo, pela primeira vez em sua história,
vê-se às voltas com o perigo do rebaixamento.
A partida de volta
contra o Velez, em Uberlândia, poderia ser uma pausa na crise. O time
argentino, também em péssima fase, até ameaça, mas não resiste ao “ataque dos
sonhos” que, uma mísera, esporádica, rara, miraculosa vez, funciona em toda a
sua plenitude e arrasa o adversário, com categóricos 3-0. Edmundo, tal como
seus parceiros de ataque, marca um dos gols (seu último pelo Flamengo).
Mas não há boa atuação
que resista a um inferno astral. Edmundo resolve provocar o zagueiro Zandona,
alisa-lhe o rosto e recebe de volta uma bordoada que o põe a nocaute e inicia
um sururu colossal. O resultado é a suspensão do jogador por duas partidas, tirando-o
da fase seguinte. E a sucessão de piadas jocosas sobre a agressão.
O Flamengo, sem alarde,
começa a demonstrar insatisfação com o desempenho de Edmundo. E autoriza seu
empresário a negociá-lo com o futebol europeu. Recebe algumas sondagens, das
quais a mais consistente vem da Inglaterra. Quando a negociação vaza, o Animal
reage com irritação e certa resignação. “Se não estão contentes comigo, o que
fazer?”
Atormentado e
visivelmente tenso, Edmundo carrega sua infelicidade para o campo. Nos gramados,
é opaco, pouco produz. Fora deles, exibe loquacidade e disposição para o
confronto. Ao ver Romário criticar todo o time, inclusive o ataque, após o
melancólico 0-0 contra o Fluminense, em Campina Grande-PB, rompe relações e se
distancia do goleador.
O calvário segue. O
Flamengo abre 2-0, mas cede o empate diante do Bahia, na Fonte Nova, no último
lance da partida, em um frango cinematográfico do goleiro Paulo César (um dos
desafetos de Edmundo). Mas o Animal vira sua metralhadora para o Apolinho, que
o substituíra “sem qualquer motivo”. No entanto, o alvo indireto da reclamação
é Romário, flagrado “pedindo” que Edmundo fosse sacado.
A seguir, o Flamengo
vai enfrentar o Vasco. Joga mal, vê o adversário empilhar e perder várias chances
(inclusive um pênalti), mas jogando com uma inesperada raça, o rubro-negro
arranca um suado 1-1. Edmundo, irreconhecível como de costume, somente aparece
quando, no intervalo, caminhando em direção ao vestiário, é hostilizado pela
torcida vascaína, e responde com gestos ostensivamente obscenos. Ao final do
jogo, ainda declara abertamente, “quero que o Vasco se f... Sou Flamengo”
Ao invés de atrair a
simpatia dos flamengos (que, atônitos, não andam em condições de manifestar
afeto por ninguém), Edmundo somente consegue chamar para si a fúria midiática
dos auditores do STJD, que vêem no fragilizado jogador uma presa fácil.
Marca-se o julgamento (ato obsceno, incitação à violência, entre outras
acusações) para depois da partida contra o Internacional, no Beira-Rio.
E a carga
extraordinariamente negativa não deixa de acossar o Animal.
Internacional e
Flamengo vão praticando aquele 0-0 despudorado, indecente, sem rubor de expor
suas vergonhas, quando, em um lance isolado, Edmundo fratura o tornozelo. Está
fora da temporada. Alguns dias depois, é suspenso por quatro meses. Mesmo os
mais céticos começam a se sensibilizar com a sucessão de eventos negativos que
têm permeado a trajetória do jogador.
Com efeito, a lesão
sepulta a negociação, que já vinha avançando, entre o Flamengo e os ingleses. As
portas do futebol europeu se fecham.
Mas ainda vai piorar.
Sem Edmundo, o Flamengo
ainda sofre derrotas contundentes, é (como previsto) eliminado do Brasileiro,
mas as vitórias começam a aparecer com freqüência suficiente para afastar, até
com certa tranquilidade, a ameaça do descenso. Além disso, o time engrena na
Supercopa, consegue algumas vitórias heróicas, recupera a legendária raça
flamenga e traz, ainda que timidamente, o torcedor para seu lado. Nas últimas
semanas do ano, enfim parece estar aprendendo a jogar como Flamengo.
Madrugada, por volta
das 3 e meia. Lagoa. Cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com a Rua Batista
da Costa, próximo à Praça Almirante Custódio de Melo. Um Fiat Uno. Uma
Cherokee, com Edmundo ao volante.
Colisão. Morte.
*
* *
1996. Julho.
As atenções estão
voltadas para os Jogos Olímpicos, onde o Brasil, moralmente anabolizado pelo
tetra da Copa do Mundo, resolve que está na hora da conquista do primeiro ouro
no futebol. E, enquanto Sávio, Bebeto e o ascendente Ronaldo vão construindo
sua errática trajetória nos campos de Atlanta, dirigentes de Flamengo e Vasco
vão intensificando nervosos telefonemas e reuniões para tratar de um vultoso
negócio.
O Vasco quer Edmundo de
volta.
No início do ano, o
Flamengo emprestou o Animal ao Corinthians, por um ano, em uma transação que
envolveu a vinda do apoiador Marques para a Gávea, nas mesmas condições. Mas a
passagem de Edmundo pelo Parque São Jorge, apesar de alguns fugazes bons
momentos (como sua atuação em um 5-0 sobre o São Paulo), também foi apagada, e
o Corinthians demonstra aceitar devolver o jogador, desde que ressarcido (o Flamengo,
ao contrário, está satisfeito com Marques e deseja inclusive comprar seus
direitos em dezembro).
As condições são as
seguintes: o Flamengo vende Edmundo por US$ 3.5 milhões, desde que o Vasco
inclua o volante Leandro Ávila (em litígio com a diretoria cruzmaltina) na
transação. A princípio os vascaínos aceitam, mas o vice-presidente Eurico
Miranda recusa-se a ceder o talentoso jogador ao rival. Eurico prefere pagar
US$ 5 milhões diretamente ao Flamengo, sem a cessão de qualquer de seus
jogadores.
O Flamengo insiste em
contar com Leandro e o negócio emperra, o que gera (mais) um mal-estar entre o
presidente Calçada e Eurico. Edmundo é visto como o potencial catalisador de um
ambicioso projeto de recuperação de imagem concebido pelo clube, que está fora
das principais disputas, mesmo em âmbito regional, há mais de dois anos. Identificado
e querido pela torcida, seria o elemento, o elo de reaproximação do time com
sua torcida, e uma espécie de líder em campo.
O Flamengo, por sua
vez, deseja a contratação de um volante de qualidade para atuar ao lado de
Mancuso. Djair se foi, e o limitado Márcio Costa não é esse nome. Ademais, sabe
que a manutenção de Edmundo poderá criar o risco de se repetir o fiasco da
temporada anterior, quando a presença de três atacantes de peso inviabilizou a
montagem de um time equilibrado.
As negociações avançam
bastante durante um amistoso entre os dois clubes, em Manaus. A posição
rubro-negra prevalece, e a conclusão do negócio, envolvendo Leandro Ávila,
chega a ser noticiada. Marca-se inclusive a apresentação do jogador no Vasco, e
Leandro despede-se dos colegas.
Mas acontece uma
reviravolta importante. O Palmeiras oferece R$ 2 milhões à vista e sela a
contratação de Leandro Ávila. Irritada, a diretoria do Flamengo cancela a
negociação e declara encerradas as tratativas com o Vasco.
O fracasso do negócio
estoura como uma bomba e repercute muito mal em São Januário. Algumas empresas,
que acenavam com um bom aporte de recursos para contratar Edmundo e mesmo
outros reforços, agora relutam em abrir os cofres. Para o início do Brasileiro,
o clube, que sonhava com Edmundo e Bebeto (que preferiu reforçar o Flamengo),
apresenta Alê e Macula. Enfurecido, o treinador Carlos Alberto Silva pede
demissão.
A pressão interna leva
o Vasco a procurar novamente o Flamengo, que agora deseja que o lateral
Pimentel (que também está sem clima em São Januário) faça parte da troca. Mas Eurico
segue irredutível, e insiste em contratar Edmundo diretamente, pagando US$ 5
milhões.
E a posição do cartola
vascaíno prevalece. Em 13 de agosto, após mais de um mês de negociações, o
Vasco anuncia a volta de Edmundo, contratado por US$ 5 milhões, parcelados em
duas vezes, sem envolver nenhum outro jogador na transação. O Flamengo usará o
dinheiro para quitar dívidas com Corinthians (US$ 500 mil pela devolução
antecipada do jogador), Palmeiras (US$ 500 mil para quitar a transação de
compra do ano anterior) e o próprio Edmundo (US$ 700 mil, referentes ao
percentual de 15% sobre a negociação junto ao Palmeiras, no ano anterior).
No dia seguinte,
Edmundo é apresentado de helicóptero no gramado de São Januário. Ao descer da
aeronave, recebe o novo modelo da camisa vascaína, que também está sendo
lançado no evento. É ovacionado, e recebido com status de “dono do time”.
E o ovo da serpente
inicia a sua gestação.