domingo, 17 de abril de 2016

Alfarrábios do Melo

Chegou no jogo contra o Vasco.

O Flamengo cogitava contratá-lo desde que deu uma bicuda num câmera no Equador, num jogo que o Palmeiras perdeu pela Libertadores, e ficou sem clima lá no alviverde. Dividiu opiniões entre a diretoria, alguns preferiam a chegada de um meia-atacante, cogitou-se e se costurou a contratação de Amoroso, mas o talentoso jogador do Guarani arrebentou o joelho e ficou fora de combate.

Donde, tinha que ser mesmo ele. Montou-se a “Operação Animal”. O Palmeiras anunciou o preço. US$ 5 milhões. Flamengo e Botafogo se interessaram. Conversaram. Aliciaram. Atravessaram-se mutuamente. Mas o rubro-negro entrou com dinheiro vivo e levou o jogador. “Voltar ao Rio é um sonho. Lá me sinto em casa.”

Voltou, desfilou em carro aberto, em meio a macacos de circo.

E apareceu no jogo contra o Vasco.

Não para jogar. Não estava inscrito, o Estadual vinha na reta final. Mas para ser exibido. Um troféu. A arma de efeito moral. O artifício que quebra a espinha do adversário. Edmundo, prata da casa cruzmaltina, aparece em um Maracanã lotado, em um Flamengo x Vasco, dentro do campo, com a camisa do Flamengo, ouvindo, dessa vez do outro lado do estádio, o famoso coro “Ah, é Edmundo!”. 

Vai para as tribunas e torce fervorosamente para o rubro-negro (a presença de jornalistas reforça essa intensidade). O Flamengo goleia (4-2). O Vasco é eliminado. Eurico Miranda, pela primeira vez em sua trajetória, é ameaçado de afastamento. O Vasco sente o golpe, e parece destruído. Está destroçado.

Passa o tempo.

Agora o Flamengo vive sua pesada crise. A crise do abatimento gerado pela perda de um Estadual importante. Pelas rusgas dos agora desafetos Romário e Luxemburgo, que redunda na demissão do treinador. Pela necessidade de produzir resultados imediatos, troféus, títulos, nem que seja na marra. Comemorando seu primeiro centenário.

Chega o dia da estréia. É contra o Guarani, em Cuiabá.

Joga bem, marca o gol do empate (1-1). É aplaudido. Mas num momento de assédio mais intenso, morde o braço de uma torcedora mais assanhada. E tem seus pertences roubados no vestiário. Um sinal?

O Flamengo vai excursionar. Japão, China, Espanha. Os resultados são razoáveis (destaque negativo para os 0-3 contra o Deportivo La Coruña, em meio a algumas boas vitórias), mas o clima interno revela-se ruim. Há o controverso caso da suposta agressão de Romário a Sávio, que azeda o ambiente. Edmundo, obcecado pela história do “ataque dos sonhos”, exige da imprensa japonesa o mesmo tratamento dispensado a Romário. Cobra cachê por entrevistas, recusa-se a atender fãs. Um sinal amarelo se acende.

Inicia o Brasileiro. Na estréia contra o Bragantino, em São Januário, uma difícil vitória diante de um adversário com nove jogadores (2-1, gol de Romário nos descontos). Mas Edmundo marca um belo gol e se movimenta com desenvoltura. As dificuldades da partida parecem menores diante da vitória.

A realidade logo se revela, crua. O tal “ataque dos sonhos” esvazia o meio-campo que, sobrecarregado, não consegue proteger a defesa. Escalam-se três volantes (Pingo, Ueslei e Djair), transformando o meio em um deserto de talento, que não cria e deixa exposta a última linha, formada por dois laterais que marcam mal (Robson e Lira) e dois zagueiros lentos (Ronaldão e Claudio). Não há como dar certo. Nem a improvisação de um zagueiro na lateral-direita, fechando mais a linha, resolve o problema.

O Flamengo perde três seguidas (Palmeiras, Paysandu e Corinthians), demite o treinador Edinho, e Edmundo começa a espetar o funcionamento do time. “A gente cria, mas a defesa vacila”, declara, enfurecido, após a derrota para o Palmeiras, no Maracanã. É o início da consolidação do racha.

O pitoresco Washington Rodrigues (o Apolinho) é contratado para o comando da equipe, junto com o auxiliar Arthur Bernardes, que fica a cargo de “coisas chatas”, como treinar e armar o time. Edmundo reage positivamente, e, em sua melhor atuação pelo Flamengo, faz gol e comanda a equipe na espetacular vitória sobre o Velez Sarsfield, na Argentina (3-2, virada nos descontos).

Mas vai durar pouco.

Suspenso, não participa dos 2-0 sobre o Juventude, em Caxias do Sul. De volta, faz partida razoável, mas o Flamengo cede um inacreditável empate (2-2, vencia por dois gols) aos reservas do Grêmio, com dois a menos em campo, em Florianópolis. Nervoso com o vexame, dá entrevista bombástica, culpando abertamente o sistema defensivo pelos problemas da equipe. “Não adianta a gente se matar, lá atrás eles sempre entregam”. Com essa entrevista, torna-se definitivamente sem ambiente no elenco. Passa a ser apenas tolerado.

Os reveses começam a se suceder. Edmundo marca o gol de “honra” na acachapante derrota para o Botafogo (1-3) em Fortaleza, depois perde um gol inacreditável e não evita o tropeço diante do Vitória (0-1) em Cariacica. E, ainda em território capixaba, “assiste” ao passeio de um Cruzeiro que decreta a lanterna do “melhor ataque do mundo”, findo o primeiro turno do Brasileiro. O Flamengo, pela primeira vez em sua história, vê-se às voltas com o perigo do rebaixamento.

A partida de volta contra o Velez, em Uberlândia, poderia ser uma pausa na crise. O time argentino, também em péssima fase, até ameaça, mas não resiste ao “ataque dos sonhos” que, uma mísera, esporádica, rara, miraculosa vez, funciona em toda a sua plenitude e arrasa o adversário, com categóricos 3-0. Edmundo, tal como seus parceiros de ataque, marca um dos gols (seu último pelo Flamengo).

Mas não há boa atuação que resista a um inferno astral. Edmundo resolve provocar o zagueiro Zandona, alisa-lhe o rosto e recebe de volta uma bordoada que o põe a nocaute e inicia um sururu colossal. O resultado é a suspensão do jogador por duas partidas, tirando-o da fase seguinte. E a sucessão de piadas jocosas sobre a agressão.

O Flamengo, sem alarde, começa a demonstrar insatisfação com o desempenho de Edmundo. E autoriza seu empresário a negociá-lo com o futebol europeu. Recebe algumas sondagens, das quais a mais consistente vem da Inglaterra. Quando a negociação vaza, o Animal reage com irritação e certa resignação. “Se não estão contentes comigo, o que fazer?”

Atormentado e visivelmente tenso, Edmundo carrega sua infelicidade para o campo. Nos gramados, é opaco, pouco produz. Fora deles, exibe loquacidade e disposição para o confronto. Ao ver Romário criticar todo o time, inclusive o ataque, após o melancólico 0-0 contra o Fluminense, em Campina Grande-PB, rompe relações e se distancia do goleador.

O calvário segue. O Flamengo abre 2-0, mas cede o empate diante do Bahia, na Fonte Nova, no último lance da partida, em um frango cinematográfico do goleiro Paulo César (um dos desafetos de Edmundo). Mas o Animal vira sua metralhadora para o Apolinho, que o substituíra “sem qualquer motivo”. No entanto, o alvo indireto da reclamação é Romário, flagrado “pedindo” que Edmundo fosse sacado.

A seguir, o Flamengo vai enfrentar o Vasco. Joga mal, vê o adversário empilhar e perder várias chances (inclusive um pênalti), mas jogando com uma inesperada raça, o rubro-negro arranca um suado 1-1. Edmundo, irreconhecível como de costume, somente aparece quando, no intervalo, caminhando em direção ao vestiário, é hostilizado pela torcida vascaína, e responde com gestos ostensivamente obscenos. Ao final do jogo, ainda declara abertamente, “quero que o Vasco se f... Sou Flamengo”

Ao invés de atrair a simpatia dos flamengos (que, atônitos, não andam em condições de manifestar afeto por ninguém), Edmundo somente consegue chamar para si a fúria midiática dos auditores do STJD, que vêem no fragilizado jogador uma presa fácil. Marca-se o julgamento (ato obsceno, incitação à violência, entre outras acusações) para depois da partida contra o Internacional, no Beira-Rio.

E a carga extraordinariamente negativa não deixa de acossar o Animal.

Internacional e Flamengo vão praticando aquele 0-0 despudorado, indecente, sem rubor de expor suas vergonhas, quando, em um lance isolado, Edmundo fratura o tornozelo. Está fora da temporada. Alguns dias depois, é suspenso por quatro meses. Mesmo os mais céticos começam a se sensibilizar com a sucessão de eventos negativos que têm permeado a trajetória do jogador.

Com efeito, a lesão sepulta a negociação, que já vinha avançando, entre o Flamengo e os ingleses. As portas do futebol europeu se fecham.

Mas ainda vai piorar.

Sem Edmundo, o Flamengo ainda sofre derrotas contundentes, é (como previsto) eliminado do Brasileiro, mas as vitórias começam a aparecer com freqüência suficiente para afastar, até com certa tranquilidade, a ameaça do descenso. Além disso, o time engrena na Supercopa, consegue algumas vitórias heróicas, recupera a legendária raça flamenga e traz, ainda que timidamente, o torcedor para seu lado. Nas últimas semanas do ano, enfim parece estar aprendendo a jogar como Flamengo.


Madrugada, por volta das 3 e meia. Lagoa. Cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com a Rua Batista da Costa, próximo à Praça Almirante Custódio de Melo. Um Fiat Uno. Uma Cherokee, com Edmundo ao volante.

Colisão. Morte.



* * *

1996. Julho.

As atenções estão voltadas para os Jogos Olímpicos, onde o Brasil, moralmente anabolizado pelo tetra da Copa do Mundo, resolve que está na hora da conquista do primeiro ouro no futebol. E, enquanto Sávio, Bebeto e o ascendente Ronaldo vão construindo sua errática trajetória nos campos de Atlanta, dirigentes de Flamengo e Vasco vão intensificando nervosos telefonemas e reuniões para tratar de um vultoso negócio.

O Vasco quer Edmundo de volta.

No início do ano, o Flamengo emprestou o Animal ao Corinthians, por um ano, em uma transação que envolveu a vinda do apoiador Marques para a Gávea, nas mesmas condições. Mas a passagem de Edmundo pelo Parque São Jorge, apesar de alguns fugazes bons momentos (como sua atuação em um 5-0 sobre o São Paulo), também foi apagada, e o Corinthians demonstra aceitar devolver o jogador, desde que ressarcido (o Flamengo, ao contrário, está satisfeito com Marques e deseja inclusive comprar seus direitos em dezembro).

As condições são as seguintes: o Flamengo vende Edmundo por US$ 3.5 milhões, desde que o Vasco inclua o volante Leandro Ávila (em litígio com a diretoria cruzmaltina) na transação. A princípio os vascaínos aceitam, mas o vice-presidente Eurico Miranda recusa-se a ceder o talentoso jogador ao rival. Eurico prefere pagar US$ 5 milhões diretamente ao Flamengo, sem a cessão de qualquer de seus jogadores.

O Flamengo insiste em contar com Leandro e o negócio emperra, o que gera (mais) um mal-estar entre o presidente Calçada e Eurico. Edmundo é visto como o potencial catalisador de um ambicioso projeto de recuperação de imagem concebido pelo clube, que está fora das principais disputas, mesmo em âmbito regional, há mais de dois anos. Identificado e querido pela torcida, seria o elemento, o elo de reaproximação do time com sua torcida, e uma espécie de líder em campo.

O Flamengo, por sua vez, deseja a contratação de um volante de qualidade para atuar ao lado de Mancuso. Djair se foi, e o limitado Márcio Costa não é esse nome. Ademais, sabe que a manutenção de Edmundo poderá criar o risco de se repetir o fiasco da temporada anterior, quando a presença de três atacantes de peso inviabilizou a montagem de um time equilibrado.

As negociações avançam bastante durante um amistoso entre os dois clubes, em Manaus. A posição rubro-negra prevalece, e a conclusão do negócio, envolvendo Leandro Ávila, chega a ser noticiada. Marca-se inclusive a apresentação do jogador no Vasco, e Leandro despede-se dos colegas.

Mas acontece uma reviravolta importante. O Palmeiras oferece R$ 2 milhões à vista e sela a contratação de Leandro Ávila. Irritada, a diretoria do Flamengo cancela a negociação e declara encerradas as tratativas com o Vasco.

O fracasso do negócio estoura como uma bomba e repercute muito mal em São Januário. Algumas empresas, que acenavam com um bom aporte de recursos para contratar Edmundo e mesmo outros reforços, agora relutam em abrir os cofres. Para o início do Brasileiro, o clube, que sonhava com Edmundo e Bebeto (que preferiu reforçar o Flamengo), apresenta Alê e Macula. Enfurecido, o treinador Carlos Alberto Silva pede demissão.

A pressão interna leva o Vasco a procurar novamente o Flamengo, que agora deseja que o lateral Pimentel (que também está sem clima em São Januário) faça parte da troca. Mas Eurico segue irredutível, e insiste em contratar Edmundo diretamente, pagando US$ 5 milhões.

E a posição do cartola vascaíno prevalece. Em 13 de agosto, após mais de um mês de negociações, o Vasco anuncia a volta de Edmundo, contratado por US$ 5 milhões, parcelados em duas vezes, sem envolver nenhum outro jogador na transação. O Flamengo usará o dinheiro para quitar dívidas com Corinthians (US$ 500 mil pela devolução antecipada do jogador), Palmeiras (US$ 500 mil para quitar a transação de compra do ano anterior) e o próprio Edmundo (US$ 700 mil, referentes ao percentual de 15% sobre a negociação junto ao Palmeiras, no ano anterior).

No dia seguinte, Edmundo é apresentado de helicóptero no gramado de São Januário. Ao descer da aeronave, recebe o novo modelo da camisa vascaína, que também está sendo lançado no evento. É ovacionado, e recebido com status de “dono do time”.


E o ovo da serpente inicia a sua gestação.