Tava
acabando.
Eu sabia,
você sabia, todos nós sabíamos que tava acabando.
As pernas
já pareciam pesadas, a mobilidade não era a mesma, sequer a camisa
9 era sua, perdida para um talentoso forasteiro. As taças, antes
fartas, tornaram-se escassas, a alegria de outrora dera lugar à
aridez, à desconfiança, às decepções.
E a
solução era mudar de ares.
Naquele
momento, já meio que se sabia de orelhada que você estava para sair
pra Itália, o próprio Flamengo já estava atrás de outro
forasteiro, começando outro desmonte no elenco, prática aliás
corriqueira naqueles tempos.
Mas não
ia ser assim, de qualquer jeito. Precisava de uma despedida. Você
não era um qualquer. Não ia sair pelos fundos, em silêncio,
apagando-se aos poucos, qual a tremeluzente chama de uma vela que se
esvai, morosa, até fenecer, quase anônima.
O
anonimato é para os coadjuvantes.
* * *
Você
apareceu em 1990, pouco menos de um ano após o Bebeto nos largar.
Tentamos Nando, Bujica, até o Borghi, que nem centroavante era.
Alguns até viveram bons momentos, mas todos fracassaram. Aí você
chegou. Veio no meio da semana e já foi pro jogo num domingo. Gávea,
sol no lombo, Cabofriense. Sono. Dizem que o centroavante só estreia
no dia que marca seu primeiro gol. Então você já estreou
estreando. De cabeça. Sempre de cabeça. Jogou bem, deu passe.
Termina o jogo, 3-1, os chacais dos microfones lhe seguem, vão atrás
de alguma declaração deslumbrada, já querendo lhe elevar a um Van
Basten, um Klinsmann da vida. Aí você desmonta os caras, “não
joguei nada, estou fora de forma, um jogo desses era pra meter dois
ou três”. A marra, a autoconfiança dos vencedores.
1990 foi
um ano ruim, triste. A Copa do Brasil e a dupla que você fez com seu
chapa Renato amenizaram aquela temporada. Ia melhorar no ano
seguinte, quando o Luxemburgo e principalmente o Carlinhos montaram
um time jovem, comandado pelo Júnior Maestro, cheio de garoto bom de
bola e com alguns elementos de apoio escolhidos a dedo. Você
encaixou magicamente naquele time... fazia gol a rodo...
Dizem que
você só sabia cabecear (como se fosse pouco). Não. Além de chutar
com a cabeça (me perdoe o clichê), você era veloz. Bom de
contragolpe. E tinha bom passe. Tudo bem, não era propriamente
íntimo da bola, mas se virava bem com ela. Sabia usar o corpo e
fazer um pivô. Era um “falso lento”. Ao invés de travar o time,
o acelerava. Aproveitava a bola parada do Júnior e os contragolpes
dos meninos. A peça perfeita.
Aquelas
tardes... as pilhas de vitórias sobre os rivais. Como você judiava
do Botafogo, do Vasco... teve um clássico com o Vasco. Jogo
pegadíssimo, pesado, rivalidade na flor. Time perdendo. Aí aparece
um pênalti. No auge da tensão, você dá uma porrada no meio e sai
com a bola na barriga, “vou pra galeeeera”. Êxtase. Depois o
Nélio virou. E você foi pro Chico Anysio...
E com o
Botafogo? Teve um jogo que o time fez dois, um seu, mas no final
cansou e deu o empate. Jogo-extra na quarta, a imprensa toda
animadinha, saudando a “ressurreição” alvinegra, lembrando
1989, uma conversa chata. Aí na quarta você cala a boca dos caras,
chute seco, no canto. Campeão. Na entrevista, “E o Botafogo?
Beijinho, beijinho, tchau, tchau. Que comprem uma TV pra nos
assistir”.
E as
comemorações? Cada gol era um trenzinho, um parquinho, uma
dancinha. Aquele time era alegre, nos fazia alegres. Felizes. Felizes
eram aquelas tardes de domingo, que se ia pro estádio só esperando
a vitória do Flamengo, os braços estendidos, batendo palmas ou
balançando as camisas em massa, enchente humana em preto e vermelho.
E o Flamengo não falhava. Você não falhava.
O auge.
As finais com o Fluminense. O lindo gol de cabeça, quase uma
homenagem ao Rei Dadá. Depois, o Brasileiro. Você começou voando,
gol a cacho, a gente começando a pedir você na seleção. O jogão
com o São Paulo no Maracanã, todo mundo vendo, Parreira no estádio.
E você meteu dois.
Veio a
lesão. A demora na volta. A dor. Dois meses fora. No retorno, dois
gols contra o Goiás. Parecia que tudo iria bem. Mas algo havia
mudado. Alguma coisa estava diferente. Os jogos em branco começaram
a se suceder, os gols repentinamente a sumir, como em uma maldição.
E nós sofríamos a cada revés seu. Passaram-se seis jogos. 45 dias.
Uma eternidade até que você, meio manquitolando, meio escorregando,
meio derrapando, acertasse uma varada no meio das redes do Santos,
nos colocando na Final do Brasileiro. O rádio no meu ouvido, joguei
longe. E dei um pulo, berrando: “Gaúúúúúúúúúúúúúúúúcho!!!”.
Como era legal ganhar com um gol seu...
A
imprensa, como sempre, dava o Botafogo como favorito. E, como sempre,
fomos os campeões. Com gol seu no primeiro jogo. E que gol... Uma
cabeçada que quase rebentou a rede. Segunda partida, você lá no
banco, copo de cerveja na mão, impaciente, querendo festejar. O
topo.
E o
começo do fim.
* * *
Faltavam
poucos jogos. A gente sabia.
Tava lá
na tabela: Fla-Flu. O Nilson tava vindo de lesão, voltando aos
poucos, você tinha retomado a posição. Era jogo grande. Valia
liderança da Taça Rio. O Fluminense vinha invicto e os jogadores
deles tinham falado umas bobagens. O clima estava armado. Tinha que
ser domingo. Mais uma vez. O último encontro. A despedida.
E o
Maracanã se encheu de gente em uma linda tarde de sol. Traje de
gala, dia de festa. E o torcedor lhe recebeu, braços estendidos,
palmas compassadas. E sonhou com a vitória. Com um gol seu.
E você
jogou muito... Você jogou o lindo jogo dos tempos felizes, correndo,
mordendo cada bola, dando passes açucarados, puxando contragolpes,
catimbando a zaga, finalizando. Uma atuação de gala, uma partida do
velho Gaúcho de guerra...
O time
deles abriu 2-0. Mas aquele dia era nosso. Podia fazer quatro, que o
dia era nosso. Fomos pra cima, o Paulo Nunes diminuiu. Depois do
intervalo, caímos pra dentro da área deles, encurralamos, acuamos,
esprememos. Fomos Flamengo. Aí, já perto dos trinta, cruzaram uma
bola. E você arrumou o corpo, saltou e mandou uma porrada. Uma
porrada com a cabeça. A bola foi na gaveta, ainda tilintou no
travessão. E o Maracanã foi abaixo. E você e seus Gaúcho's Boys
saíram em manada pra comemorar com a torcida. Mas não teve
dancinha, não teve rodinha. Foi na euforia de sentir a massa, de se
misturar, de se amalgamar, de se imiscuir com a gente flamenga uma
derradeira vez. De sentir a galera. O tempo poderia ter parado ali.
Mas não
parou, havia um jogo a ser vencido. Não demorou muito, lhe jogaram
outra bola na área. Você fez a parede e escorou pro Maestro mandar
a bomba. Ele também estava perto de ir embora. E viramos. E
vencemos. E pulamos, e cantamos. Pela última vez.
“Ê ô,
ê ô, o Gaúcho é um terror...”
E aí
você se foi.
Você nos
fez muito felizes, parceiro. Essa semana, você nos entristeceu. Uma
única vez. Uma derradeira vez. Assim são as coisas.
Vai com
Deus, mermão. Lá em cima, vai ter jogo. E vai ter gol do Gaúcho.
De cabeça.