Saudações
flamengas a todos,
A cada
partida do Flamengo, independente da competição (ou mesmo em
amistosos), costumo perceber um alto índice de reclamações acerca
de uma suposta parcialidade nas transmissões de tevê aberta e
fechada, por parte de narradores, comentaristas e mesmo repórteres.
Com
efeito, é impossível deixar de atentar para o fato, diante dos
trabalhos de profissionais como Luiz Carlos Jr, Roby Porto ou Paulo
César Vasconcellos, por exemplo, que, de forma deliberada ou não,
costumam, digamos, deslustrar com algum excesso a atuação flamenga
nos prélios que estão cobrindo, ou quando irrompem amostras do
ancestral bairrismo de outros centros (notadamente São Paulo e Rio
Grande do Sul).
Donde,
surge a indagação, primitiva, basilar: “sempre foi assim?”
Teria o
fenômeno da segmentação, decorrente do advento dos canais de
transmissão fechada e o posterior surgimento do “pay-per-view”,
trazido em seu bojo a praga do clubismo, redundando na adoção de
uma conduta forçosamente parcial da maior parte da crônica? Ou as
queixas apenas refletiriam o mau humor do torcedor que,
invariavelmente, seja de qual time for adepto, gosta de encarnar a
personagem que luta “contra tudo e todos”? Ou as mídias sociais
apenas estariam reverberando com mais ênfase críticas que, no
fundo, sempre existiram?
Tomando
emprestado uma expressão momentaneamente vulgarizada, não sei se
seria capaz de opinar, não com a profundidade que o tema merece. No
entanto, o que posso, e irei fazer, é traçar um painel com alguns
dos principais cronistas que compunham o ambiente midiático dos anos
80/90. Evidentemente, a lista não é exaustiva. E cada um, diante dos perfis aqui expostos, pode tentar tirar
suas próprias conclusões. Afinal, essa é a graça da coisa. A
diversidade.
Aos
nomes.
OS
“ANTAGONISTAS”
SÉRGIO
CABRAL
O pai do
atual Governador do RJ costumava comentar as transmissões de
carnaval da Globo. No entanto, com o início das operações do canal
fechado SporTV, foi um dos primeiros comentaristas da emissora, sendo
responsável pela cobertura dos jogos no Rio de Janeiro, temporadas
de 1993 e 1994. Cabral, vascaíno histórico, coalhava de ironias os
jogos flamengos, sempre buscando “eleger” um jogador mais
limitado e em cima dele utilizar à farta termos como “perna-de-pau”,
“medíocre”, o que inconscientemente era transferido para todo o
time. Como sói ao tipo de perfil, as derrotas rubro-negras eram
atribuídas à incontestável superioridade adversária, enquanto os
sucessos se deviam a fatores externos. Um caso clássico é a
histórica goleada de 5-2 aplicada pelo Flamengo sobre o Corinthians
em 1994 (jogo dos três gols do jovem Magno), que se deveu, segundo o
comentarista, basicamente à expulsão de Viola, ocorrida no final da
primeira etapa. Felizmente, sua trajetória no meio foi breve.
SÉRGIO
NORONHA
Egresso
da Rádio Globo, onde foi o comentarista titular no início dos anos
80, conseguiu manter certa neutralidade na TV, tendo inclusive sido
reputado, de forma errônea, por muita gente como rubro-negro. Mas
foi na rádio que sua veia vascaína saltou mais forte. Fazia a linha
“crítica”, na qual se escorava para atacar, muitas vezes acima
do tom, as peripécias de Zico & Cia, nível de exigência que
era mitigado quando estavam em campo os colegas de Roberto Dinamite.
Na televisão, denunciou-se ao reclamar exageradamente da defesa do
Vasco na Final do Estadual de 2000, após o gol de empate marcado por
Reinaldo. “não pode deixar o jogador livre assim, isso é
decisão!”.
PAULO
STEIN
A Rede
Manchete cobriu intensamente o futebol carioca na segunda metade da
década de 1980, assegurando os direitos exclusivos de transmissão
do Estadual e chegando a modificar o ancestral horário de 17 h dos
clássicos, levando-os (numa iniciativa bastante criticada) para as
18:30 dos domingos. Sua equipe fixa de transmissões era composta por
dois comentaristas botafoguenses (dentre os quais o, pasmem, mais
lúcido de todos, o irrequieto João Saldanha) e por dois narradores
tricolores. Um desses locutores, o risonho Paulo Stein, narrava as
partidas de forma extravagante, recheada de “cacos” e
interjeições, o que de certa forma ajudava a quebrar a tensão das
partidas. No entanto, Stein não era capaz de disfarçar a nítida
preferência pelos adversários do Flamengo, chegando a soltar alguns
“vai, fulano”, “que pena, beltrano”. Seu ápice ocorreu no
Fla-Flu da Taça Guanabara de 1989. Flamengo vencia por 3-0 e não
dava o menor sinal de diminuir o ritmo. Em dado momento, aplicou um
olé de quase dois minutos em cima do adversário apático e
desnorteado. Stein, em desespero, não resistiu e largou “MAS O QUE
QUE É ISSO? QUE COISA! E NINGUÉM PARA ISSO!”. E não parou mesmo.
O jogo terminou 4-0.
MÁRCIO
GUEDES
Era um
dos comentaristas da acima citada equipe da Rede Manchete. Trabalhou
ao lado de Galvão Bueno na Rede Bandeirantes nos anos 70 e na Globo,
entre 1981 e 1983. Mas foi na Manchete que se tornou mais espontâneo
e áspero. Botafoguense renitente e ferrenho, não economizava
“poréns” e “entretantos” às atuações do Flamengo. Somente
concedia algum tipo de elogio ao rubro-negro quando a vitória
atingia o status de irreversivel. Invariavelmente, em sua visão, o
Flamengo era inferior ao adversário, seja em tese, seja dentro do
campo. Gostava de alardear que alguns jogadores flamengos eram
superestimados. Um dia, antes de um clássico, deu a um Fluminense já
eliminado e no meio da tabela o favoritismo contra um Flamengo líder
e invicto (“é franco-atirador”, vai jogar mais à vontade, tem
tudo para surpreender). Uma passagem icônica vem da Final do
Brasileiro de 1980, quando cobriu a transmissão pela Bandeirantes,
junto com o narrador paulista Fernando Solera. Guedes conduziu seus
comentários no sentido de transmitir a luta do “Galo Vingador”,
valente em um ambiente hostil, sempre “entendendo” as reações
violentas de seus jogadores, que apenas “reagiam às pancadas”
dos flamengos. Quando o machucado Reinaldo empatou o jogo, quase foi
ao êxtase. Mas Nunes marcou o terceiro gol, e o repórter de campo,
provavelmente flamengo, após entrar descrevendo o gol, quebrou o
protocolo e, ao invés de devolver a palavra ao narrador, preferiu
berrar, “É O TERCEIRO GOL! É O GOL DO TÍTULO! GOL DO TÍTULO,
MÁRCIO GUEDES!!!”. Nos tempos de hoje, dir-se-ia “chupa...”
TELMO
ZANINI
Está
aqui por causa de um único jogo. A decisão da Taça Guanabara de
1995, entre Flamengo e Botafogo, transmitida pelo SporTV. Partida
recheada de bons jogadores, como Gotardo, Túlio, o ainda jovem Beto
(que atuava pelo Botafogo), Marquinhos, Nélio, Sávio e,
naturalmente, Romário, o melhor jogador do mundo, que iria atuar
mesmo com um braço preso a uma tipoia. Zanini, que comentou a
partida, não demorou a mostrar “os dentes”, quando, antes ainda
da bola rolar, elegeu o Botafogo o “favorito incontestável, porque
tem mais time e jogadores melhores”, além de insinuar que Romário
já iniciava um irreversível processo de “decadência”. No
entanto, os fatos não demoraram a contradizê-lo, quando o Flamengo,
em exibição soberba, abriu 2-0 e perdeu a oportunidade de
desenvolver uma goleada histórica no primeiro tempo. Romário, autor
dos dois gols, foi elogiado laconicamente no intervalo por Zanini,
que preferiu pontuar as chances desperdiçadas, “vão fazer falta”.
No início do segundo tempo, Romário tenta um passe mais plástico,
de letra. Zanini vê aquilo como “desprezo”, embora o jogo siga
normalmente, sem qualquer reação do adversário. O Botafogo acerta
uma substituição, consegue reagir e, após um pênalti esquisito,
empata. Zanini mal contém a vibração. Subitamente se torna loquaz,
não larga o microfone. “O Flamengo caminha para perder o jogo mais
fácil do ano, e o grande culpado será Romário”, “jornada
heroica do Botafogo. Sinto a virada iminente”, “Romário, com que
cara você vai voltar pra casa?”. Mas Márcio Teodoro erra, Romário
fatura o terceiro e definitivo gol. “Que bobeada lamentável desse
zagueiro”, “É muita sorte para um jogador só”. O Flamengo é
o campeão, e Zanini se torna figura raríssima nas transmissões do
clube.
OS
“NEUTROS” E OS “SIMPÁTICOS À CAUSA”
JANUÁRIO
DE OLIVEIRA
Tornou-se
conhecido nacionalmente quando passou a narrar jogos pela Rede
Bandeirantes na primeira metade dos anos 1990. Na Band, usou e abusou
de jargões e bordões que o tornaram um dos mais carismáticos
locutores em atividade na época (“cruel, muito cruel”,
“siniiiistro”, “super-ézio”, entre outros), mas mostrou seu
melhor mesmo nas partidas que cobriu pela TVE (cujos VTs completos
eram passados no final de semana). É bem verdade que Januário
(gaúcho, mas assumido simpatizante do Fluminense) não disfarçava
certo entusiasmo nas derrotas do Flamengo, mas a qualidade de suas
transmissões era tão retumbante que esse aspecto era relevado. Na
TV estatal, Januário desfrutava de maior liberdade criativa, e não
raro enriquecia os jogos com “crônicas”, elegendo determinadas
personagens, como o maqueiro, o gandula, o delegado do jogo, algum
geraldino, vendedor de bebidas, enfim, nele concentrando suas
atenções (olha lá, o geraldino tá dormindo... é, camarada, a
pelada tá difícil, hein?), o que transformava qualquer joguinho
periférico em um espetáculo interessantíssimo. São dessa época
(anos 80) as expressões “tá lá um corpo estendido no chão”,
“primeiro carreto da noite”, entre outras.
SÍLVIO
LUIZ
Foi “a
voz” do SBT/Record nos anos 80, imprimindo um estilo inconfundível
em suas transmissões, onde o humor era um elemento de coesão entre
as passagens dos jogos que narrava. O torcedor do Flamengo guarda com
carinho as suas narrações dos jogos flamengos da Primeira Fase da
Libertadores de 1981 (a rede de Silvio Santos transmitiu os dois
jogos contra o Atlético-MG e as partidas contra os paraguaios no
Maracanã. Somente quando o Flamengo foi jogar em Assunção a Globo
conseguiu assumir os direitos do evento). Sílvio sabia quando ser
neutro e quando torcer. Era irreverente, histriônico, mas nunca
afetado. Depois, transferiu-se para a Bandeirantes, passando a narrar
com frequência os jogos do Flamengo. Apesar de corintiano, sempre
deixou transparecer certa admiração pela torcida rubro-negra,
transpondo esse respeito para as suas narrações. Narrou com notável
correção vários jogos do vitorioso período 1991/92, especialmente
o jogo que deu ao Flamengo o Pentacampeonato Brasileiro.
LUCIANO
DO VALLE
Chegou à
Globo em meados dos anos 70, com a tarefa de protagonizar a cobertura
de todas as transmissões esportivas da emissora. Cativava pela
técnica precisa, cortante, com moderada e cuidadosa colocação de
adjetivos, transferindo aos jogadores e à torcida o protagonismo de
cada evento. Limitava-se a descrever as partidas, crescendo
suavemente a voz à medida que os lances ganhavam relevância. Não
havia intervenções desnecessárias ou repetição “ad nauseam”
de estatísticas inúteis. Luciano narrava, e pronto. Nisso residia
sua notável elegância. Um dos momentos mais emocionantes de sua
passagem pela Globo remete-se à Final do Brasileiro de 1982, quando
Zico empatou, na bacia das almas, o primeiro jogo contra o Grêmio,
no Maracanã. “Ele é um jogador que nasceu com o gol! Ele é
craque, é diferenciado!”. Mais tarde, após curtas passagens pelo
SBT/Record, assumiu um ambicioso projeto na Bandeirantes. No canal
paulista, reinventou sua forma de narrar, que se tornou mais solta,
estridente e (excessivamente) informal.
JOSÉ
CARLOS ARAÚJO
Trocou a
Rádio Nacional pela Rádio Globo no final de 1984, assumindo o
comando das transmissões do futebol. O “Garotinho”, como era
conhecido, imprimiu uma narrativa enérgica, feérica e com um traço
de irreverência, atraindo um público mais jovem. Jamais deixou sua
preferência pelo Fluminense transbordar para suas transmissões,
cobrindo as vitórias e títulos dos quatro cariocas com o mesmo
entusiasmo profissional. Uma frase que costumava repetir nos jogos do
Flamengo, particularmente simpática, falava em “o Mengão precisa
atacar, essa galera não pode sair sem o gol, essa galera quer gritar
o gol!”. A sua narração do gol de Leandro no Fla-Flu de 1985
jorrou como uma cachoeira, é um momento inesquecível, como aliás
foi o jogo.
GALVÃO
BUENO
O início
de sua trajetória na Globo decorre da retomada, por parte da Vênus
Platinada, dos direitos de transmissão da Fórmula 1 (a Globo havia
desistido da competição, pois não havia mais brasileiros na ponta,
mas a ascensão súbita do jovem Nelson Piquet a fez mudar de ideia).
Galvão, que havia sido elogiado ao cobrir, pela Bandeirantes, a
temporada das pistas em 1980, chegou à Globo já no segundo semestre
de 1981. No entanto, estrearia em corridas no ano seguinte, deixando
a cargo de Luciano do Valle o restante do campeonato corrente (que
seria vencido por Piquet). Enquanto isso, Galvão passou a transmitir
os jogos da Libertadores, em que o Flamengo avançava, e do Estadual
(estreou na vitória do Flamengo sobre o Wilstermann por 2-1, em
Cochabamba). Em grande forma, logo deixou sua marca, exibindo uma
técnica notável de colocação de voz e uma capacidade de tornar
qualquer partida em um espetáculo recheado de drama e emoção.
Assistir a um final de jogo qualquer, com o placar ainda indefinido,
na voz de Galvão Bueno se revestia de uma experiência ímpar,
inesquecível (quem acompanhou os minutos finais da Decisão do
Estadual de 1981, o “jogo do ladrilheiro”, sabe do que se está
falando aqui). Além de muito bom narrador, Galvão nunca disfarçou
sua torcida pelo Flamengo, que sempre ficou clara nas suas
transmissões. Foi “a voz da Globo” na Era Zico (o que se
consolidou após 1982, quando Luciano deixou a emissora), mantendo-se
como o principal e o melhor narrador em atividade até meados dos
anos 90, quando enveredou por uma linha mais verborrágica e
invasiva, o que o tornou mais popularesco e polêmico. Um momento
muito feliz de sua trajetória é a narração de Guarani 2-3
Flamengo, pela Semifinal do Brasileiro de 1982, quando cunhou a frase
“Quem tem Zico, tem tudo”, resumindo em pouquíssimos termos o
que foram aqueles anos inesquecíveis. Pertence a Galvão o
privilégio de ter narrado ao vivo a Final do Mundial de 1981, contra
o Liverpool.
JORGE
CURY
Felizes
aqueles que viram Zico jogar. É verdade. Porém, mais felizes são
aqueles que viram Zico jogar ouvindo Jorge Cury na Rádio Globo. A
química entre Cury e os jogos do Flamengo talvez só encontre
paralelo com as transmissões de Ary Barroso em tempos mais remotos.
Não que Cury torcesse abertamente, ou soprasse gaitinha nos gols.
Nada disso. A beleza, o lirismo, a poesia, das transmissões do
veterano narrador residia exatamente na forma como represava suas
emoções em uma narração crua, contida, descritiva, tudo em uma
voz rochosa, que se contrapunha ao delírio quase orgástico do
momento do gol. Jorge Cury não narrava gols do Flamengo. Cury os
gritava, berrava, urrava, tirando de dentro todo o alívio, o peso de
sua expectativa por um êxito flamengo. No momento do gol, Jorge Cury
se transmudava em menino, em criança, no garoto sem camisa, o calção
sujo de barro, o pé preto de correr atrás da bola, o olho brilhando
o sonho de ser Zico. Ouvindo Jorge Cury, cada flamengo se espelhava,
se identificava, se resumia embrasado, febril, ardente. Vencedor.
Mais que um narrador, era um amigo. Um chapa. Alguém que
transformava o radinho em alguém da família. Acima de tudo, um flamengo. Um de nós.
Boa semana a todos,