domingo, 28 de fevereiro de 2016

Alfarrábios do Melo

Há cerca de 100 anos...

Tarde linda.

Uma expressiva massa de gente, tudo engalanado em seus paletós e vestidos, ostentando vistosos chapéus, bengalas e lenços, entre outros adornos, aguarda pacientemente o momento de entrar e se acomodar, enquanto se entretém com conversas sobre os mais distintos temas ou, já que ninguém é de ferro, arrisca descompromissados “flirts” com jovens do sexo oposto. Afinal, a tarde é de lazer. É dia de football.

O Flamengo está inaugurando seu estádio.

Para a esquina da Rua Paissandu com a Rua Guanabara (onde se localiza a sede do Fluminense FC) aflui neste risonho domingo a mais elegante aristocracia carioca. Jovens que já demonstram fervor na defesa das cores que escolheram para se alinhar, no pavilhão que optaram por honrar. E hoje o já robusto contingente de adeptos do febril rubro-negro do CR Flamengo converge para as instalações da novíssima praça de esportes da Capital Federal. Orgulhosos, apontam para o peito. Nossa casa.

O terreno pertence à Família Guinle. Era utilizado como campo de treinamentos do Paysandu Cricket Club, clube de ingleses que encerrou as operações no futebol por conta da Primeira Guerra Mundial (que lhes privou de seus atletas, convocados pelo Governo Britânico para as escaramuças), e, posteriormente, pelo Guanabara FC, que não possuía recursos nem a intenção de ali erguer nenhuma construção. A diretoria do Flamengo, cansada de mandar jogos em General Severiano e percebendo a oportunidade, conseguiu o arrendamento do terreno por 15 anos, responsabilizando-se pela construção do que entendesse necessário para erguer um estádio na área.

Os portões se abrem e não demora se descortina um cenário absolutamente impressionante, capaz de chamar a atenção mesmo dos mais céticos. O gramado possui dimensões descomunais, situando-se no limite superior do estipulado pelas entidades que regem o jogo. O piso é impecável, de um verde faiscante, minuciosamente plano, absolutamente diverso das verdadeiras casas de pasto exibidas em outros centros. Na lateral que faceia para a rua de elegantes e vistosas palmeiras, ergue-se, cuidadosamente pintado em cinza-claro, o lance de arquibancadas, com seus nove degraus de largura, o mais amplo do Rio de Janeiro. No centro de sua cobertura, o dístico CRF irrompe altivo, orgulhoso, pleno. O estandarte onde se pendura o pavilhão negro e rubro é cuidadosamente localizado, para que não atrapalhe a visão dos espectadores. Há duas opções de acomodações, as arquibancadas e as gerais, onde, pagando meia entrada, é possível acompanhar de pé, a descoberto, praticamente à beira do gramado (deste separado por cercamento em ofuscante cor branca), as peripécias dos footballers. Alguns assistentes mais entusiasmados não se furtam a aplaudir delirantemente as instalações que se despem diante dos seus olhos. O Flamengo realmente consegue impressionar a sociedade carioca.

Celebrado o contrato de arrendamento, a administração flamenga correu para arranjar uma empreiteira capaz de levar a cabo a construção do equipamento antes do início das partidas da Liga, o Campeonato Carioca. Escolhida a empresa Moniz & Cia. e definido o projeto, partiu-se para as obras (não sem um arrojado processo de captação de recursos), que, infelizmente, não lograram conclusão no prazo inicialmente desejado, por conta de uma temporada particularmente chuvosa. De qualquer forma, antes da inauguração oficial o Flamengo realizou dois “eventos-teste” no campo. O primeiro aconteceu na última partida do Campeonato do ano anterior, em que, acomodados sobre improvisados blocos de compensado, os torcedores acompanharam o rubro-negro se sagrar bicampeão ao golear o Bangu por 5-1. E o segundo, já na temporada atual, com as obras concluídas, restando pendentes apenas acertos de acabamento, no dia em que o Flamengo goleou o Fluminense por 4-1, em jogo válido pela segunda rodada do Campeonato.

Mas a inauguração formal, oficial, com o estádio rigorosamente pronto, é hoje.

As instalações do Estádio da Rua Paissandu não se limitam ao campo de futebol. Sob as arquibancadas há um stand de tiro, um salão de jogos, uma biblioteca, uma luxuosa sala onde se abriga a secretaria do clube e um bar. Na outra lateral, estão construídas e entram em operação três quadras de tênis de excelente padrão. Há planos para a construção de uma área reservada para a prática do basquete. E está em conclusão a montagem de um placar, onde será possível acompanhar o andamento da partida, equipamento inédito no Rio de Janeiro. Tudo colocado à disposição dos sócios, que agora possuem um equipamento diversificado e capaz de atender aos mais variados anseios de entretenimento e lazer.

A preliminar, disputada entre os “segundos teams” (espécie de aspirantes) de Flamengo e Botafogo, termina empatada (2-2). Já não há mais lugar disponível no estádio, seja nas arquibancadas, seja nas apinhadas gerais. Dentro de instantes adentrarão no gramado, para se bater em um match amistoso, as formações do CR Flamengo e da AA São Bento*, da capital paulista, seu atual campeão e mais forte team. E tido pela crônica esportiva como o favorito do encontro.

Com efeito, o Flamengo vive problemas. A geração que arrebentou as portas do Fluminense e fez nascer no 22 da Praia o Departamento de Esportes Terrestres já começa a encontrar problemas na conciliação da prática do futebol (cuja demanda por jogadores preparados física e tecnicamente já começa a se acentuar) com a sua vida acadêmica. Nomes como Baena, Píndaro, Couriol e Borgerth aparecem esporadicamente no eleven titular, que, da formação original, somente apresenta Nery, Gallo e Arnaldo como integrantes assíduos. É verdade que há o perigoso atacante inglês Reid (reforço recente), ou o mortífero forward Riemer, capaz de atuar no comando do ataque ou na ponta-esquerda com o mesmo potencial goleador. Ou ainda o “crack” da equipe, maestro e verdadeira alma do conjunto, o “center-half” Sidney Pullen, o primeiro grande “camisa 10” da história do popular Clube de Regatas. E que, afinal de contas, está-se falando do atual bicampeão da cidade, melhor e mais aclamado team do nosso futebol. Mas, com as idas e vindas dos antigos heróis, há a tendência a uma perigosa irregularidade, que já começa a se refletir em campo. O mesmo Flamengo que surrou impiedosamente o Fluminense nos já citados 4-1 foi, decorridos apenas quinze dias, fragorosamente derrotado pelo modesto Bangu por inapeláveis 2-4 (marcando seus dois tentos nos minutos finais). Esta falta de consistência começa a gerar viva desconfiança na crônica esportiva carioca, que não hesita em embarcar nas caudalosas loas que seus colegas paulistas tecem ao seu campeão, elegendo-o como o grande candidato à vitória no match que está por iniciar.

O Flamengo ainda apresentará uma importante novidade à cena futebolística carioca nesta festiva tarde. Enfim chegaram da Inglaterra, encomendados da conceituada Casa Davidson & Cia, onde foram fabricados com o mais moderno e refinado tecido (que reluz ao sol e retém as cores por mais tempo), os novos uniformes de jogo, que substituirão as (agora, por conta da semelhança com a bandeira alemã) controversas camisas cobra-coral. Camisas em mangas longas, dividida em listras horizontais em preto e vermelho, apresentando à altura do peito um monograma com as letras CRF entrelaçadas em branco, emulando o estilo inglês de apresentar o símbolo da agremiação. O uniforme deveria ter sido estreado em março, mas as agruras da guerra ocasionaram o inesperado retardo no envio. Melhor assim, cria-se outro elemento de atração para o grande evento de hoje.

Os times entram em campo, recebidos com uma corbeille de flores. O Flamengo, pela primeira vez trajando rubro-negro. O São Bento, em listras verticais em branco e anil. Uma bandinha executa, pela primeira vez em público, a marcha “Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar”, que mais tarde se tornará o hino oficial do clube. Os capitães se perfilam, respeitosa e elegantemente. É tirado o toss. Vai começar a partida.

Não é difícil imaginar o que se segue. Quando se conjuga um Flamengo motivado, uma tarde festiva, uma torcida particularmente eufórica e com ânsia de gritar a plenos pulmões o nome dos seus heróis, isso tudo imerso em um contexto em que toda a crônica “especializada” teima em desacreditar as cores rubro-negras e a insistir em relativizar sua grandeza, elegendo outros favoritos e a eles reservando suas palavras mais carinhosas, o desenlace soa até natural.

O único elemento de convergência entre as previsões dos “notáveis” e a realidade dos fatos é a incidência de um massacre em campo.

Com quatro minutos, a trave do goleiro paulista Orlando é carimbada, o próprio arqueiro faz duas defesas difíceis e Sidney, após uma jogada antológica em que se livra de três oponentes, abre o placar com um tiro enviesado que conta com a ajuda do pobre goleiro do São Bento. Passa-se algum tempo e o poderoso time de São Paulo ainda não é apresentado à intermediária adversária. Aos 17 minutos, depois de um gol (mal) anulado e de outra bola que rebentou na trave, o Flamengo amplia. Sidney, que desfila seu talento em campo, é um verdadeiro motor. Vem buscar uma bola no meio e vê o deslocamento do baixinho Gumercindo. Com rara precisão, lança primorosamente a bola, que cai aos pés do atacante, que manda um tiro forte, cruzado. 2-0. O Flamengo não para, segue criando e desperdiçando chances de gol. Orlando faz quatro defesas dificílimas em um intervalo de poucos minutos. Tudo parece apontar para uma goleada verborrágica, de grandes proporções. Apenas nos minutos finais da primeira etapa, em um esparso momento de fadiga e distração, a defesa rubro-negra afrouxa, permitindo que os paulistas respirem um pouco. É o que basta para mostrarem sua força e diminuírem a contagem, em um bonito chute do atacante Hopkins, que explode na trave e vai aos pés de Dias, que emenda o rebote para o gol quase vazio, defendido apenas pelo caído Cazuza (que substitui Baena). 2-1.

O curto intervalo (apenas cinco minutos) é marcado por certa apreensão. Quase o clima de festa é rompido quando um ajuntamento de botafoguenses se põe a gritar palavras de apoio ao São Bento e é “convencido”, de forma relativamente coercitiva, a se manter em silêncio.

A segunda etapa se reinicia e o Flamengo defende sua mínima vantagem da forma que melhor lhe apraz. Atacando. O time emenda uma blitz insuportável, mas o goleiro Orlando segue em grande tarde. A multidão parece ansiosa com o gol que não sai. O placar é mais ameaçador que o São Bento, que já parece cansado. Somente aos 27', após uma belíssima tabela entre Gumercindo, Arnaldo e Borgerth (que está de volta, fazendo seu primeiro jogo no ano), a bola é rolada para o venenoso Riemer, que enfim executa as redes de Orlando, cravando os números finais do encontro. Flamengo 3, São Bento 1.

Os últimos minutos do match são crivados de palmas, cantos, hurras e manifestações de calor, como só o Flamengo já se mostra capaz de prover. Encerrada a partida, a enchente humana, num aluvião, invade o gramado para ter com seus favoritos, que se imiscuem ao meio daquela calda de gente. É um dia ímpar, especial, mágico, em que absolutamente tudo parece ter dado certo. O Flamengo abre oficialmente seu estádio, derrota de forma incontestável um forte adversário e eleva às alturas sua auto-estima de campeão. É claro que hoje vai ter reco-reco na sede.

E o torcedor, agora, pode se ufanar de ter seu estádio, sua casa, seu templo. Lá, o Flamengo construirá sua história. Será vencedor, triunfará soberano, emergirá campeão. Criará laços de identificação e afeto, confundir-se-á com as próprias instalações, fará sua gente criar uma relação de pertencimento e intimidação aos oponentes que lá aterrissarem. A Rua Paissandu será a casa do CR Flamengo. Seu lar. Seu recanto. Vai ser intenso. Febril. Sanguíneo. Marcará uma época. Uma era. E, citando o poeta, será absolutamente eterno.


Enquanto durar.


* Não confundir a AA São Bento da capital paulista (extinta em 1933), equipe aqui mencionada, com o EC São Bento, de Sorocaba-SP, clube fundado em 1913 e atualmente em atividade.