Há cerca de 100 anos...
Tarde linda.
Uma expressiva massa de gente,
tudo engalanado em seus paletós e vestidos, ostentando vistosos chapéus,
bengalas e lenços, entre outros adornos, aguarda pacientemente o momento de
entrar e se acomodar, enquanto se entretém com conversas sobre os mais distintos
temas ou, já que ninguém é de ferro, arrisca descompromissados “flirts” com
jovens do sexo oposto. Afinal, a tarde é de lazer. É dia de football.
O Flamengo está inaugurando seu
estádio.
Para a esquina da Rua Paissandu
com a Rua Guanabara (onde se localiza a sede do Fluminense FC) aflui neste
risonho domingo a mais elegante aristocracia carioca. Jovens que já demonstram
fervor na defesa das cores que escolheram para se alinhar, no pavilhão que
optaram por honrar. E hoje o já robusto contingente de adeptos do febril
rubro-negro do CR Flamengo converge para as instalações da novíssima praça de
esportes da Capital Federal. Orgulhosos, apontam para o peito. Nossa casa.
O terreno pertence à Família
Guinle. Era utilizado como campo de treinamentos do Paysandu Cricket Club,
clube de ingleses que encerrou as operações no futebol por conta da Primeira
Guerra Mundial (que lhes privou de seus atletas, convocados pelo Governo
Britânico para as escaramuças), e, posteriormente, pelo Guanabara FC, que não
possuía recursos nem a intenção de ali erguer nenhuma construção. A diretoria
do Flamengo, cansada de mandar jogos em General Severiano e percebendo a
oportunidade, conseguiu o arrendamento do terreno por 15 anos,
responsabilizando-se pela construção do que entendesse necessário para erguer
um estádio na área.
Os portões se abrem e não demora
se descortina um cenário absolutamente impressionante, capaz de chamar a
atenção mesmo dos mais céticos. O gramado possui dimensões descomunais,
situando-se no limite superior do estipulado pelas entidades que regem o jogo.
O piso é impecável, de um verde faiscante, minuciosamente plano, absolutamente
diverso das verdadeiras casas de pasto exibidas em outros centros. Na lateral
que faceia para a rua de elegantes e vistosas palmeiras, ergue-se,
cuidadosamente pintado em cinza-claro, o lance de arquibancadas, com seus nove
degraus de largura, o mais amplo do Rio de Janeiro. No centro de sua cobertura,
o dístico CRF irrompe altivo, orgulhoso, pleno. O estandarte onde se pendura o
pavilhão negro e rubro é cuidadosamente localizado, para que não atrapalhe a
visão dos espectadores. Há duas opções de acomodações, as arquibancadas e as
gerais, onde, pagando meia entrada, é possível acompanhar de pé, a descoberto,
praticamente à beira do gramado (deste separado por cercamento em ofuscante cor
branca), as peripécias dos footballers. Alguns assistentes mais entusiasmados
não se furtam a aplaudir delirantemente as instalações que se despem diante dos
seus olhos. O Flamengo realmente consegue impressionar a sociedade carioca.
Celebrado o contrato de
arrendamento, a administração flamenga correu para arranjar uma empreiteira
capaz de levar a cabo a construção do equipamento antes do início das partidas
da Liga, o Campeonato Carioca. Escolhida a empresa Moniz & Cia. e definido
o projeto, partiu-se para as obras (não sem um arrojado processo de captação de
recursos), que, infelizmente, não lograram conclusão no prazo inicialmente
desejado, por conta de uma temporada particularmente chuvosa. De qualquer forma,
antes da inauguração oficial o Flamengo realizou dois “eventos-teste” no campo.
O primeiro aconteceu na última partida do Campeonato do ano anterior, em que,
acomodados sobre improvisados blocos de compensado, os torcedores acompanharam
o rubro-negro se sagrar bicampeão ao golear o Bangu por 5-1. E o segundo, já na
temporada atual, com as obras concluídas, restando pendentes apenas acertos de
acabamento, no dia em que o Flamengo goleou o Fluminense por 4-1, em jogo
válido pela segunda rodada do Campeonato.
Mas a inauguração formal,
oficial, com o estádio rigorosamente pronto, é hoje.
As instalações do Estádio da Rua
Paissandu não se limitam ao campo de futebol. Sob as arquibancadas há um stand
de tiro, um salão de jogos, uma biblioteca, uma luxuosa sala onde se abriga a
secretaria do clube e um bar. Na outra lateral, estão construídas e entram em
operação três quadras de tênis de excelente padrão. Há planos para a construção
de uma área reservada para a prática do basquete. E está em conclusão a montagem
de um placar, onde será possível acompanhar o andamento da partida, equipamento
inédito no Rio de Janeiro. Tudo colocado à disposição dos sócios, que agora
possuem um equipamento diversificado e capaz de atender aos
mais variados anseios de entretenimento e lazer.
A preliminar, disputada entre os
“segundos teams” (espécie de aspirantes) de Flamengo e Botafogo, termina
empatada (2-2). Já não há mais lugar disponível no estádio, seja nas
arquibancadas, seja nas apinhadas gerais. Dentro de instantes adentrarão no
gramado, para se bater em um match amistoso, as formações do CR Flamengo e da
AA São Bento*, da capital paulista, seu atual campeão e mais forte team. E tido
pela crônica esportiva como o favorito do encontro.
Com efeito, o Flamengo vive
problemas. A geração que arrebentou as portas do Fluminense e fez nascer no 22
da Praia o Departamento de Esportes Terrestres já começa a encontrar problemas
na conciliação da prática do futebol (cuja demanda por jogadores preparados
física e tecnicamente já começa a se acentuar) com a sua vida acadêmica. Nomes
como Baena, Píndaro, Couriol e Borgerth aparecem esporadicamente no eleven
titular, que, da formação original, somente apresenta Nery, Gallo e Arnaldo
como integrantes assíduos. É verdade que há o perigoso atacante inglês Reid
(reforço recente), ou o mortífero forward Riemer, capaz de atuar no comando do
ataque ou na ponta-esquerda com o mesmo potencial goleador. Ou ainda o “crack”
da equipe, maestro e verdadeira alma do conjunto, o “center-half” Sidney
Pullen, o primeiro grande “camisa 10” da história do popular Clube de Regatas.
E que, afinal de contas, está-se falando do atual bicampeão da cidade, melhor e
mais aclamado team do nosso futebol. Mas, com as idas e vindas dos antigos
heróis, há a tendência a uma perigosa irregularidade, que já começa a se
refletir em campo. O mesmo Flamengo que surrou impiedosamente o Fluminense nos
já citados 4-1 foi, decorridos apenas quinze dias, fragorosamente derrotado
pelo modesto Bangu por inapeláveis 2-4 (marcando seus dois tentos nos minutos
finais). Esta falta de consistência começa a gerar viva desconfiança na crônica
esportiva carioca, que não hesita em embarcar nas caudalosas loas que seus
colegas paulistas tecem ao seu campeão, elegendo-o como o grande candidato à
vitória no match que está por iniciar.
O Flamengo ainda apresentará uma
importante novidade à cena futebolística carioca nesta festiva tarde. Enfim
chegaram da Inglaterra, encomendados da conceituada Casa Davidson & Cia,
onde foram fabricados com o mais moderno e refinado tecido (que reluz ao sol e
retém as cores por mais tempo), os novos uniformes de jogo, que substituirão as
(agora, por conta da semelhança com a bandeira alemã) controversas camisas
cobra-coral. Camisas em mangas longas, dividida em listras horizontais em
preto e vermelho, apresentando à altura do peito um monograma com as letras CRF
entrelaçadas em branco, emulando o estilo inglês de apresentar o símbolo da
agremiação. O uniforme deveria ter sido estreado em março, mas as agruras da
guerra ocasionaram o inesperado retardo no envio. Melhor assim, cria-se outro
elemento de atração para o grande evento de hoje.
Os times entram em campo,
recebidos com uma corbeille de flores. O Flamengo, pela primeira vez trajando
rubro-negro. O São Bento, em listras verticais em branco e anil. Uma bandinha
executa, pela primeira vez em público, a marcha “Flamengo, Flamengo, tua glória
é lutar”, que mais tarde se tornará o hino oficial do clube. Os capitães se
perfilam, respeitosa e elegantemente. É tirado o toss. Vai começar a partida.
Não é difícil imaginar o que se
segue. Quando se conjuga um Flamengo motivado, uma tarde festiva, uma torcida
particularmente eufórica e com ânsia de gritar a plenos pulmões o nome dos seus
heróis, isso tudo imerso em um contexto em que toda a crônica “especializada”
teima em desacreditar as cores rubro-negras e a insistir em relativizar sua
grandeza, elegendo outros favoritos e a eles reservando suas palavras mais
carinhosas, o desenlace soa até natural.
O único elemento de convergência
entre as previsões dos “notáveis” e a realidade dos fatos é a incidência de um
massacre em campo.
Com quatro minutos, a trave do
goleiro paulista Orlando é carimbada, o próprio arqueiro faz duas defesas
difíceis e Sidney, após uma jogada antológica em que se livra de três
oponentes, abre o placar com um tiro enviesado que conta com a ajuda do pobre
goleiro do São Bento. Passa-se algum tempo e o poderoso time de São Paulo ainda
não é apresentado à intermediária adversária. Aos 17 minutos, depois de um gol
(mal) anulado e de outra bola que rebentou na trave, o Flamengo amplia. Sidney,
que desfila seu talento em campo, é um verdadeiro motor. Vem buscar uma bola no
meio e vê o deslocamento do baixinho Gumercindo. Com rara precisão, lança primorosamente
a bola, que cai aos pés do atacante, que manda um tiro forte, cruzado. 2-0. O
Flamengo não para, segue criando e desperdiçando chances de gol. Orlando faz
quatro defesas dificílimas em um intervalo de poucos minutos. Tudo parece
apontar para uma goleada verborrágica, de grandes proporções. Apenas nos
minutos finais da primeira etapa, em um esparso momento de fadiga e distração,
a defesa rubro-negra afrouxa, permitindo que os paulistas respirem um pouco. É
o que basta para mostrarem sua força e diminuírem a contagem, em um bonito
chute do atacante Hopkins, que explode na trave e vai aos pés de Dias, que
emenda o rebote para o gol quase vazio, defendido apenas pelo caído Cazuza (que
substitui Baena). 2-1.
O curto intervalo (apenas cinco
minutos) é marcado por certa apreensão. Quase o clima de festa é rompido quando
um ajuntamento de botafoguenses se põe a gritar palavras de apoio ao São Bento
e é “convencido”, de forma relativamente coercitiva, a se manter em silêncio.
A segunda etapa se reinicia e o
Flamengo defende sua mínima vantagem da forma que melhor lhe apraz. Atacando. O
time emenda uma blitz insuportável, mas o goleiro Orlando segue em grande
tarde. A multidão parece ansiosa com o gol que não sai. O placar é mais
ameaçador que o São Bento, que já parece cansado. Somente aos 27', após uma
belíssima tabela entre Gumercindo, Arnaldo e Borgerth (que está de volta,
fazendo seu primeiro jogo no ano), a bola é rolada para o venenoso Riemer, que
enfim executa as redes de Orlando, cravando os números finais do encontro.
Flamengo 3, São Bento 1.
Os últimos minutos do match são
crivados de palmas, cantos, hurras e manifestações de calor, como só o Flamengo
já se mostra capaz de prover. Encerrada a partida, a enchente humana, num
aluvião, invade o gramado para ter com seus favoritos, que se imiscuem ao meio
daquela calda de gente. É um dia ímpar, especial, mágico, em que absolutamente
tudo parece ter dado certo. O Flamengo abre oficialmente seu estádio, derrota
de forma incontestável um forte adversário e eleva às alturas sua auto-estima
de campeão. É claro que hoje vai ter reco-reco na sede.
E o torcedor, agora, pode se
ufanar de ter seu estádio, sua casa, seu templo. Lá, o Flamengo construirá sua
história. Será vencedor, triunfará soberano, emergirá campeão. Criará laços de
identificação e afeto, confundir-se-á com as próprias instalações, fará sua
gente criar uma relação de pertencimento e intimidação aos oponentes que lá
aterrissarem. A Rua Paissandu será a casa do CR Flamengo. Seu lar. Seu recanto.
Vai ser intenso. Febril. Sanguíneo. Marcará uma época. Uma era. E, citando o
poeta, será absolutamente eterno.
Enquanto durar.
* Não confundir a AA São Bento da capital paulista (extinta em 1933),
equipe aqui mencionada, com o EC São Bento, de Sorocaba-SP, clube fundado em 1913 e atualmente em
atividade.