Senhor
Presidente,
É a
primeira vez que me dirijo ao senhor nesses três anos.
Antes,
permita-me uma apresentação rápida. Sou sócio, votei no senhor,
aliás me despenquei de Salvador até o Rio para votar. Sou adepto e
entusiasta da sua administração.
Sempre
bom frisar esse tipo de coisa para que não se me confira um inadequado
viés político, porque tudo hoje em dia parece ter conotação
eleitoral, manifesto, terceiro turno, blá. As linhas que seguem não refletem situação,
oposição e muito menos as palavras da mais nova praga digital, a do
“isentão”, que critica por criticar, para parecer
“independente”.
Acho que
basta de prolegômenos, Senhor Presidente.
Daí que
vim aqui para falar de um assunto chato. Incômodo.
O senhor,
decerto, acompanhou os acontecimentos do último domingo, lá naquele
estádio encravado nos arredores de São Cristóvão. Quero falar um
pouco daquilo. Do jogo, dos seus antecedentes e de seus efeitos.
Time
jogou mal, não é? Fez um primeiro tempo razoável, equilibrado, com
boa postura, revidando as pancadas, realmente deu a impressão de que
estávamos diante de um grupo com certa fome. Criou chances de gol,
essas coisas.
Mas tudo
ruiu no segundo tempo, Senhor Presidente. Fomos engolidos, mastigados
e cuspidos. Qual um olaria da vida, Senhor Presidente. Mal passamos
da intermediária. Eu contei, Senhor Presidente. Depois dos 25
minutos não ganhamos UMA bola dividida. UMA bola dividida num
clássico. Fomos encurralados como ratos, Senhor Presidente. Bola na
trave, defesa difícil do goleiro, o diabo, Senhor Presidente. Até o
esperado golpe final, já nos descontos.
Alguém
frisará, foi uma tarde ruim.
Todos
temos tardes ruins, Senhor Presidente, lá isso é verdade. Há dias
em que a coisa simplesmente não anda, que nada dá certo, que o
espírito coletivo é tomado por alguma apatia mesmo, e todo o
planejamento técnico, tático, arrisca afundar água abaixo. Não nego o fato.
Acontece,
Senhor Presidente, que essa foi a sétima “tarde ruim” seguida
contra o MESMO adversário. Repito, a sétima. Sétima, Senhor
Presidente.
Deixa eu
falar uma coisa pro senhor. 2013 era a tal terra arrasada, 2014 houve
aquele entusiasmo excessivo pela Libertadores que gerou uma ressaca
perigosa e 2015 foi comprometido pelos erros na montagem inicial do
elenco, além da questão da eleição (que não vou desenvolver
aqui). No entanto, de uma forma ou de outra, nós entendemos a
mensagem de reconstrução, tivemos uma paciência inusitada,
brigamos na defesa do modelo adotado, vislumbrando um trabalho de
reestruturação, de longo prazo, dessas coisas todas. Engolimos toda
uma plêiade de reveses (também houve esparsas alegrias), suportamos
toda uma miríade de humilhações e constrangimentos, esperando o
pote de ouro no fim da estrada de tijolos amarelos.
Mas isso
não é eterno, Senhor Presidente. A carência acabou. Tá na hora do
resultado.
Senhor
Presidente, a gente aceita perder. A derrota dói, incomoda, fere.
Mas a gente assimila, desde que tenha sido colhida apesar da luta, da
briga, do inconformismo, da postura altiva, da ATITUDE em campo.
Somos vencedores em essência, Senhor Presidente. Nascemos entre os
grandes, já surgimos alinhados ao escol do futebol nacional.
A fibra, o denodo, o élan, está em nosso sangue, do torcedor ao
ponta-esquerda, passando pelo médico, pelo roupeiro, por quem quer
que vista as sagradas cores negra e encarnada da nossa bandeira. São
valores, sinais de identidade, Senhor Presidente. Cada flamengo
carrega em suas entranhas a inextinguível e ardente chama que se
alimenta do sangue e do suor derramado nas encarniçadas batalhas
intrínsecas às grandes vitórias, às conquistas que se perpetuarão
gravadas nos anais da história.
Isso não
pode ser tirado de nós, Senhor Presidente.
Vou dar
um exemplo. Não, não quero citar decantados exemplos de Zico,
Zizinho, Dida. Retroagirei exatos 100 anos, aterrissando na temporada
de 1916. Não foi um bom ano, Senhor Presidente. O Flamengo começava
a viver uma fase de transição, a vitoriosa geração que forjou a
criação do Departamento de Esportes Terrestres começava a sair de
cena, e o time não logrou obter nada mais expressivo do que um opaco
quarto lugar no Campeonato da Cidade. Daí, Senhor Presidente, que
nesse ano, mais precisamente em 29 de outubro, enfrentamos o Botafogo
no nosso campo inaugurado poucos meses antes, na Rua Paysandu. O time
estava mal e foi dominado desde o início pelo rival, que não
demorou para abrir 3-1 no placar. Lutamos, brigamos, mas o Botafogo
sustentava a vantagem e quase nos goleou. O tempo escoava, mas nosso
torcedor não arredava pé do estádio. O time levando um baile, e o
torcedor lá, balançando seus chapéus e lenços, gritando
“Fla-men-goal”, Senhor Presidente. E então, a dois minutos do
fim, o Nery, nosso zagueiro e capitão, se aventurou ao ataque e
diminuiu. Viramos bichos, Senhor Presidente. E a seguir, na última bola do jogo, o
mesmo Nery meteu o gol de empate. As arquibancadas, tinta ainda
fresca, foram abaixo. “Fla-men-goal, Fla-men-goal!”, teve jogador
nosso quase desmaiando do esforço. 1916, Senhor Presidente. CEM anos
atrás, Senhor Presidente. Um time não tão forte, num momento ruim,
mas que honrava a camisa, jamais se entregava. Como praticamente todos os que se seguiram
desde então. Um Flamengo que, quando estava perdendo, suscitava a
máxima, “se diminuir, empata”, “se empatar, vira”.
Eu faço
acrobacias, dobro-me em verdadeiras cambalhotas mentais, entrego-me a
lisérgicos exercícios de imaginação, tentando transpor para o
nosso momento atual, com o nosso time atual, um cenário em que
estivéssemos perdendo um clássico por 2-0 e em que empatássemos
nos minutos finais. Só me ocorrem frouxos de riso, Senhor
Presidente. Risos frouxos. Frouxos.
Senhor
Presidente, nosso torcedor foi segregado a tapumes, qual gado, num
gueto de cimento quente, com sol na cara, sem água pra beber,
sujeito a porrada, a tiro, a mijo, a pedrada. Mesmo quem não se
dignou a expor sua integridade física e mental e se manteve em casa
estava sequioso, Senhor Presidente. Estava clamando por uma atuação
que mostrasse a todos do que somos feitos, qual nossa verdadeira
essência, nossa força. Queríamos que aqueles onze jogadores, de
alguma forma, nos representassem, Senhor Presidente. Que colocassem
em campo nossas cores. Nosso coração. Nossa alma.
E o que
se viu foi aquilo, Senhor Presidente. O nosso goleiro fazendo cera
pra segurar o “precioso” empate.
Senhor
Presidente, fomos jogar em São Januário para torcida única. Quem
conhece minimamente o espírito que move as rivalidades locais tem
ideia do que isso significa. Não me interessa o contexto, Senhor
Presidente. Aquiescemos, sem dizer UMA palavra em contrário, em
participar de uma situação que, por si só, feriu de morte nossa
dignidade institucional. Fomos tratados como camundongos, Senhor
Presidente. Chegamos ao estádio camuflados, quase escondidos em
ônibus de carreira. Nosso representante foi enxotado a pontapés da
Sala de Arrecadação. Quebraram lá uma ou outra louça, aceitamos
nos cobrarem o reparo do banheiro inteiro, Senhor Presidente. Fomos
achincalhados dentro e fora do campo. E o nosso goleiro fazendo cera,
Senhor Presidente.
Senhor
Presidente, o Flamengo não poderia colocar os pés naquele estádio,
diante daquelas circunstâncias. E, se tivesse falado minimamente
grosso, esse jogo não seria lá. Ministério Publico a favor,
imprensa doida para criar clima de guerra. Torcida única, Senhor
Presidente?
Não nos
iludamos, Senhor Presidente. A postura de uma equipe em campo reflete
a cultura de toda uma organização, de uma instituição. Por mais
competitiva que seja a mentalidade de um profissional da envergadura
de um Muricy Ramalho, ela somente permeará o espírito de um grupo
se ela estiver fundamentada nos mesmo pilares de cobrança e
exigência de toda a cúpula. Do Departamento de Futebol. Da
Administração. Vem de cima, Senhor Presidente.
Porque, a
partir do momento que o clube aceita jogar no estádio inimigo, sem
torcida, recebendo sua cota do inimigo como esmola, se esconde em
ônibus de carreira, é espezinhado em rede nacional na véspera do
jogo e responde com palavrinhas refinadas e sutis (aquilo do “falar
russo” é o tipo de ironia que eu fazia no meu tempo de
escola) em vez de apresentar atitudes firmes e convictas, a partir do
momento em que se escuda e se escora no raso e fácil argumento do
“somos minoria no Arbitral”, Senhor Presidente, isso tudo
transmite uma sensação de falta de firmeza, de cupidez, de
leniência, de bovina resignação à exposição e ao enlameamento
do nome da instituição. E isso transborda, mas transborda de forma
farta, ampla, caudalosa, no corpo funcional, no “chão de fábrica”.
Se a Diretoria não demonstra fome, os jogadores o farão?
Estou
terminando. Sei que o trabalho administrativo levado a cabo no
Flamengo nesses últimos três anos tem sido exemplar, modelo, prêmio
de gestão, enfim. É um trabalho sem precedentes para que o ranço
obsoleto e amadorista seja extirpado da Gávea e o clube passe a ser
gerido de forma compatível com sua envergadura. Nunca mais o atraso,
o amadorismo, as gestões predatórias. Mas ganhar do Vasco é coisa
anacrônica?
É só
isso, Senhor Presidente.