domingo, 21 de fevereiro de 2016

Alfarrábios do Melo

Senhor Presidente,

É a primeira vez que me dirijo ao senhor nesses três anos.

Antes, permita-me uma apresentação rápida. Sou sócio, votei no senhor, aliás me despenquei de Salvador até o Rio para votar. Sou adepto e entusiasta da sua administração.

Sempre bom frisar esse tipo de coisa para que não se me confira um inadequado viés político, porque tudo hoje em dia parece ter conotação eleitoral, manifesto, terceiro turno, blá. As linhas que seguem não refletem situação, oposição e muito menos as palavras da mais nova praga digital, a do “isentão”, que critica por criticar, para parecer “independente”.

Acho que basta de prolegômenos, Senhor Presidente.

Daí que vim aqui para falar de um assunto chato. Incômodo.

O senhor, decerto, acompanhou os acontecimentos do último domingo, lá naquele estádio encravado nos arredores de São Cristóvão. Quero falar um pouco daquilo. Do jogo, dos seus antecedentes e de seus efeitos.

Time jogou mal, não é? Fez um primeiro tempo razoável, equilibrado, com boa postura, revidando as pancadas, realmente deu a impressão de que estávamos diante de um grupo com certa fome. Criou chances de gol, essas coisas.

Mas tudo ruiu no segundo tempo, Senhor Presidente. Fomos engolidos, mastigados e cuspidos. Qual um olaria da vida, Senhor Presidente. Mal passamos da intermediária. Eu contei, Senhor Presidente. Depois dos 25 minutos não ganhamos UMA bola dividida. UMA bola dividida num clássico. Fomos encurralados como ratos, Senhor Presidente. Bola na trave, defesa difícil do goleiro, o diabo, Senhor Presidente. Até o esperado golpe final, já nos descontos.

Alguém frisará, foi uma tarde ruim.

Todos temos tardes ruins, Senhor Presidente, lá isso é verdade. Há dias em que a coisa simplesmente não anda, que nada dá certo, que o espírito coletivo é tomado por alguma apatia mesmo, e todo o planejamento técnico, tático, arrisca afundar água abaixo. Não nego o fato.

Acontece, Senhor Presidente, que essa foi a sétima “tarde ruim” seguida contra o MESMO adversário. Repito, a sétima. Sétima, Senhor Presidente.

Deixa eu falar uma coisa pro senhor. 2013 era a tal terra arrasada, 2014 houve aquele entusiasmo excessivo pela Libertadores que gerou uma ressaca perigosa e 2015 foi comprometido pelos erros na montagem inicial do elenco, além da questão da eleição (que não vou desenvolver aqui). No entanto, de uma forma ou de outra, nós entendemos a mensagem de reconstrução, tivemos uma paciência inusitada, brigamos na defesa do modelo adotado, vislumbrando um trabalho de reestruturação, de longo prazo, dessas coisas todas. Engolimos toda uma plêiade de reveses (também houve esparsas alegrias), suportamos toda uma miríade de humilhações e constrangimentos, esperando o pote de ouro no fim da estrada de tijolos amarelos.

Mas isso não é eterno, Senhor Presidente. A carência acabou. Tá na hora do resultado.

Senhor Presidente, a gente aceita perder. A derrota dói, incomoda, fere. Mas a gente assimila, desde que tenha sido colhida apesar da luta, da briga, do inconformismo, da postura altiva, da ATITUDE em campo. Somos vencedores em essência, Senhor Presidente. Nascemos entre os grandes, já surgimos alinhados ao escol do futebol nacional. A fibra, o denodo, o élan, está em nosso sangue, do torcedor ao ponta-esquerda, passando pelo médico, pelo roupeiro, por quem quer que vista as sagradas cores negra e encarnada da nossa bandeira. São valores, sinais de identidade, Senhor Presidente. Cada flamengo carrega em suas entranhas a inextinguível e ardente chama que se alimenta do sangue e do suor derramado nas encarniçadas batalhas intrínsecas às grandes vitórias, às conquistas que se perpetuarão gravadas nos anais da história.

Isso não pode ser tirado de nós, Senhor Presidente.

Vou dar um exemplo. Não, não quero citar decantados exemplos de Zico, Zizinho, Dida. Retroagirei exatos 100 anos, aterrissando na temporada de 1916. Não foi um bom ano, Senhor Presidente. O Flamengo começava a viver uma fase de transição, a vitoriosa geração que forjou a criação do Departamento de Esportes Terrestres começava a sair de cena, e o time não logrou obter nada mais expressivo do que um opaco quarto lugar no Campeonato da Cidade. Daí, Senhor Presidente, que nesse ano, mais precisamente em 29 de outubro, enfrentamos o Botafogo no nosso campo inaugurado poucos meses antes, na Rua Paysandu. O time estava mal e foi dominado desde o início pelo rival, que não demorou para abrir 3-1 no placar. Lutamos, brigamos, mas o Botafogo sustentava a vantagem e quase nos goleou. O tempo escoava, mas nosso torcedor não arredava pé do estádio. O time levando um baile, e o torcedor lá, balançando seus chapéus e lenços, gritando “Fla-men-goal”, Senhor Presidente. E então, a dois minutos do fim, o Nery, nosso zagueiro e capitão, se aventurou ao ataque e diminuiu. Viramos bichos, Senhor Presidente. E a seguir, na última bola do jogo, o mesmo Nery meteu o gol de empate. As arquibancadas, tinta ainda fresca, foram abaixo. “Fla-men-goal, Fla-men-goal!”, teve jogador nosso quase desmaiando do esforço. 1916, Senhor Presidente. CEM anos atrás, Senhor Presidente. Um time não tão forte, num momento ruim, mas que honrava a camisa, jamais se entregava. Como praticamente todos os que se seguiram desde então. Um Flamengo que, quando estava perdendo, suscitava a máxima, “se diminuir, empata”, “se empatar, vira”.

Eu faço acrobacias, dobro-me em verdadeiras cambalhotas mentais, entrego-me a lisérgicos exercícios de imaginação, tentando transpor para o nosso momento atual, com o nosso time atual, um cenário em que estivéssemos perdendo um clássico por 2-0 e em que empatássemos nos minutos finais. Só me ocorrem frouxos de riso, Senhor Presidente. Risos frouxos. Frouxos.

Senhor Presidente, nosso torcedor foi segregado a tapumes, qual gado, num gueto de cimento quente, com sol na cara, sem água pra beber, sujeito a porrada, a tiro, a mijo, a pedrada. Mesmo quem não se dignou a expor sua integridade física e mental e se manteve em casa estava sequioso, Senhor Presidente. Estava clamando por uma atuação que mostrasse a todos do que somos feitos, qual nossa verdadeira essência, nossa força. Queríamos que aqueles onze jogadores, de alguma forma, nos representassem, Senhor Presidente. Que colocassem em campo nossas cores. Nosso coração. Nossa alma.

E o que se viu foi aquilo, Senhor Presidente. O nosso goleiro fazendo cera pra segurar o “precioso” empate.

Senhor Presidente, fomos jogar em São Januário para torcida única. Quem conhece minimamente o espírito que move as rivalidades locais tem ideia do que isso significa. Não me interessa o contexto, Senhor Presidente. Aquiescemos, sem dizer UMA palavra em contrário, em participar de uma situação que, por si só, feriu de morte nossa dignidade institucional. Fomos tratados como camundongos, Senhor Presidente. Chegamos ao estádio camuflados, quase escondidos em ônibus de carreira. Nosso representante foi enxotado a pontapés da Sala de Arrecadação. Quebraram lá uma ou outra louça, aceitamos nos cobrarem o reparo do banheiro inteiro, Senhor Presidente. Fomos achincalhados dentro e fora do campo. E o nosso goleiro fazendo cera, Senhor Presidente.

Senhor Presidente, o Flamengo não poderia colocar os pés naquele estádio, diante daquelas circunstâncias. E, se tivesse falado minimamente grosso, esse jogo não seria lá. Ministério Publico a favor, imprensa doida para criar clima de guerra. Torcida única, Senhor Presidente?

Não nos iludamos, Senhor Presidente. A postura de uma equipe em campo reflete a cultura de toda uma organização, de uma instituição. Por mais competitiva que seja a mentalidade de um profissional da envergadura de um Muricy Ramalho, ela somente permeará o espírito de um grupo se ela estiver fundamentada nos mesmo pilares de cobrança e exigência de toda a cúpula. Do Departamento de Futebol. Da Administração. Vem de cima, Senhor Presidente.

Porque, a partir do momento que o clube aceita jogar no estádio inimigo, sem torcida, recebendo sua cota do inimigo como esmola, se esconde em ônibus de carreira, é espezinhado em rede nacional na véspera do jogo e responde com palavrinhas refinadas e sutis (aquilo do “falar russo” é o tipo de ironia que eu fazia no meu tempo de escola) em vez de apresentar atitudes firmes e convictas, a partir do momento em que se escuda e se escora no raso e fácil argumento do “somos minoria no Arbitral”, Senhor Presidente, isso tudo transmite uma sensação de falta de firmeza, de cupidez, de leniência, de bovina resignação à exposição e ao enlameamento do nome da instituição. E isso transborda, mas transborda de forma farta, ampla, caudalosa, no corpo funcional, no “chão de fábrica”. Se a Diretoria não demonstra fome, os jogadores o farão?

Estou terminando. Sei que o trabalho administrativo levado a cabo no Flamengo nesses últimos três anos tem sido exemplar, modelo, prêmio de gestão, enfim. É um trabalho sem precedentes para que o ranço obsoleto e amadorista seja extirpado da Gávea e o clube passe a ser gerido de forma compatível com sua envergadura. Nunca mais o atraso, o amadorismo, as gestões predatórias. Mas ganhar do Vasco é coisa anacrônica?


É só isso, Senhor Presidente.