Daí que o Moreira está no Rio.
Chegou hoje de viagem.
Vai ficar na casa do irmão, coisa
de uma semana. Pequeno recesso, à guisa de férias. Vida nômade de representante
comercial, enfim. Simpático, boa praça, Moreira sabe ser agradável, embora não
nutra o gosto pela loquacidade. Seduz pela colocação perfeita de seus
argumentos. “Falar bem traz resultados muito melhores que falar muito”, costuma
repetir.
Almoço em família, conversa sobre
os rumos do Governo Figueiredo, pragas em cima do impopular Ministro Delfim,
discussões sobre a agressiva política de Reagan nos EUA, o atentado ao Papa,
enquanto as respectivas esposas tratam, aflitas, dos desencontros dos gêmeos
João Victor e Quinzinho em Baila Comigo, a novela das oito.
Um jovem, entre uma e outra
bocada de strogonoff, vai ouvindo toda aquela conversa, meio enfadado. Não
demonstra a menor atração por Reagan, Brejnev ou Margaret Thatcher, muito menos
por novelas. É que Marcos, do alto de seus vinte e poucos anos, possui outros
interesses mais afetos à sua realidade, tais como a(s) namorada(s), a faculdade,
o rock. E o Flamengo.
Marcos nutre pelo Flamengo uma
paixão febril, pulsante, animal, que sente irromper-lhe do mais profundo
recôndito. Mas está irritado, nervoso, aborrecido com o time, que insiste em se
manter em uma má fase que nunca passa. Quer extravasar, soltar-se, xingar, e o
tio recém-chegado sempre traz ótimas conversas. Gosta dos contrapontos de
Moreira, que equilibra sua veia passional. Donde, parece meio ansioso para
catar uma oportunidade para falar de Flamengo com o tio, livre do risco de ter
que dividi-lo com as últimas ações do Ministro Mário Andreazza.
Pouco mais tarde, Moreira levanta
de um providencial cochilo e é literalmente emboscado por Marcos, que o pega
pelo braço. “Hum..., quer me falar de Flamengo”, conclui sem pensar muito.
“E aí, Marquinhos, como vão as
coisas? E o nosso Mengão?”
Detesta ser chamado de Marquinhos
(o tio sabe disso, esse escroto). Suspira. Respira. E começa a enxurrar as
palavras:
“Tio, assim não dá. Tá uma merda.
Tá tudo errado. Tudo errado. Estamos sem goleiro, sem zaga, o armador se
aposentou, não temos pontas, o time é fraco e está cheio de buracos. Perdemos
do Democrata! Do Democrata, tio! Sabe o que é perder pro Democrata? Viu o
vexame no Brasileiro? Eu tava lá, tio! Pro Botafogo. Até pro Botafogo voltamos
a perder. Eu acho é que tem que mudar tudo. O Raul não quer mais nada com nada
e o Cantarele é frangueiro. Tem que contratar. Os laterais quebram um galho mas
a zaga tem que trocar toda. Traz dois zagueiros. O Carpegiani saiu, tem que vir
alguém para reposição. O Adílio e o Tita toda hora arrumam confusão, troca,
vende, porque estão jogando bolinha. O Zico, essa renovação... Cabeça na
Europa. E cadê os pontas? Os pontas? Não tem ponta nesse time! Aí a diretoria
me vem com chiquinhos e baroninhos. Pô, isso tá uma bagunça! Eu quero meu
Flamengo de volta! Você não acha, tio? O que você acha?”
E termina a arenga com um ar
confiante. Agora o tio irá concordar com ele. Os argumentos são muito fortes, a
realidade está aí, batendo na cara. Com efeito, a eliminação pro Botafogo no
Brasileiro criou algumas fissuras no relacionamento com a torcida, que começa a
contestar a qualidade da equipe. A derrota (nos pênaltis) para o Democrata de
Valadares em um amistoso não ajudou muito. E domingo passado o time escapou por
muito, mas muito pouco, de perder pro Bangu no Maracanã. Desde o título
brasileiro no ano anterior, tudo parece dar errado. O tio há de concordar. Há
de se render.
“O time é bom. O que falta ali é
alegria e paz.”
“Só isso? Você não está
indignado? Furioso, não quer mudanças?”
“Façamos o seguinte. Vamos hoje à
noite ao Maracanã. E durante o jogo iremos conversando.”
A capacidade de desarme de
Moreira é sempre desconcertante. Marcos abandona o ímpeto de seguir discutindo,
diante da perspectiva de ir ao Maracanã. Estava desanimado desde a derrota no
Brasileiro, mas a oportunidade de acompanhar o tio em uma jornada esportiva o
assanha. O Tio Moreira, com seus sessenta e poucos, que viu Zizinho, viu
Leônidas, viu Dida, Gerson, Doval, viu todo mundo...
O Maracanã parece meio gelado, um
oceano de concreto em que respingam gotas de gente, coisa de sete, oito mil. O
placar eletrônico, gutural, reluz Flamengo sobre Americano. Moreira acende
impávido um Minister, também parece saudoso de todo aquele ambiente. Mas não
demonstra. A idade ensina a reter determinadas reações. Marcos, ao contrário,
parece pinto no lixo. Bebe cerveja, come podrão, lê tudo o que é folheto, está
visivelmente animado.
“Tio, então você realmente acha
que o time é bom?”
“Esse time foi campeão
brasileiro, não foi? De lá pra cá, o que mudou? Saíram o Toninho, o Uri Geller
e agora o Carpegiani. Temos o Carlos Alberto, que é bom, e esse garoto, o
Leandro, que tem muito futebol. Então, lateral-direita está ok. Pro meio o
Adílio já vinha jogando. E na esquerda chegou esse rapaz do Palmeiras, que todo
mundo diz que joga bola. O resto é o mesmo time. Time é bom.”
“Sim, mas tá jogando uma bolinha
de nada. Qual foi o último jogo realmente bom desse time? Que deixou a torcida
feliz? Tem tempo isso. Acho que tá tudo errado, tudo um lixo e...”
“Falta paz. Paz. Precisa é o
presidente e esse treinador pararem de criar caso com o plantel. Deixar os
caras se soltarem. Jogarem com alegria. E tudo fluirá.”
O jogo começa. O Flamengo
pressiona, mas tem dificuldades para transpor o bloqueio da defesa do
Americano. O time também parece lento, cozinhando, tentando criar naturalmente
as chances de gol. Parece mais um daqueles monótonos jogos entre o Flamengo e
os pequenos, em que todo mundo sabe que o gol vai sair em alguma hora, e depois
disso mais um ou dois se seguirão até que o trile o apito final e torcedores e
jogadores, com a estéril satisfação de quem acaba de traçar um fast-food,
ganharão bocejantes o rumo de casa.
Mas algo parece fugir do roteiro.
Não demora e o zagueiro do Americano começa a se destacar com entradas, coices
e patadas vários pontos acima do tom. O alvo principal é Zico, que a cada lance
se vê fustigado pelo sujeito. Até que, em determinado momento, o Galinho
arranca reto pro gol, chega perto da área e se desvia do bode resfolegante com
um gingado, mas o bicho ainda consegue, sentado ao chão, dar um bico em um dos
joelhos do craque, que desaba ao solo. Doeu.
“Filho da puta, cadê o juiz? Bota
pra fora! Estão quebrando nosso time! Ladrão, ladrão!”
Marcos grita, esbraveja,
pragueia. Moreira acende outro Minister. “Hum...”
“O que foi, tio?”
“Domingo tem clássico, né?
Flamengo x Vasco...”
“E daí?”
“Liga os pontos, Marquinhos.
Pensa.”
“Você acha isso mesmo? Mas isso é
sujo!”
O alto da idade ensinou Moreira a
exercer o cinismo, o pragmatismo e o faro. Aquela distribuição gratuita de
porrada, sempre em tornozelo e joelho, não parece ser algo espontâneo. Ainda
mais partindo apenas de um jogador. Tratativas individuais são menos complexas
que arranjos coletivos. Pode, veja bem, pode ter algo aí, sim.
“Já te falei pra largar o
idealismo de lado, Marquinhos. Futebol não é conto de fadas.”
Zico, inteligente, recua e vai
fazer saída de bola. Manquitola um pouco, mas segue jogando no ritmo dos
demais. Ainda acerta a trave numa linda cobrança de falta. Sem o Galinho no
radar, o brucutu investe em outros nomes. Dá no joelho de Nunes, acerta uma voadora
em Baroninho. Farto daquilo, o árbitro manda o cavalo pro chuveiro. Expulso
ainda no primeiro tempo.
“Aí, Marquinhos. O malandro e o
mané. Queria tirar alguém do domingo e quem vai ficar de fora vai ser ele.
Gênio...”
O primeiro tempo vai se esvaindo
num insistente 0-0. O ponta Chiquinho, que substitui Tita (em litígio com a
diretoria), vai se esmerando na capacidade de irritar o torcedor, com um gol
perdido atrás do outro. Só nos minutos finais, Adílio (que está voltando hoje,
após looonga briga pela renovação do contrato), exercendo a função de 'camisa
10', acha Nunes e o João Danado tira do goleiro abrindo o placar. Descem ao
vestiário com Flamengo 1-0.
“Porra, tio! Zico não volta!
Agora acabou-se. Peu?”
“Hum... acho que agora vai é
começar. Vai vendo.”
O segundo tempo começa com Peu no
lugar de Zico. As informações das rádios dão conta que o Galinho está poupado e
cheio de bolsas de gelo nas pernas. O tom do médico é pessimista, “a pancada
foi forte”. Preocupa.
Dentro das quatro linhas, o
Flamengo volta completamente diferente. Sufoca,
marca a saída de bola, entra esfomeado, disputando taça. Com 3', Chiquinho é
lançado dentro da área e, cansado de perder gols fáceis, acerta uma bola
espetacular, metendo de cobertura. 2-0. Mais tarde um pouco, numa sensacional
inversão de posições, Nunes é lançado na ponta-esquerda, arranca e rola
rasteiro para a entrada de Baroninho, que, como um centroavante, faz o
terceiro. Não demora, Peu escapa como um sabonete, passa por dois e, meio se
trumbicando, abre 4-0. O Flamengo está arrasador, imparável, querendo sangue.
“Que maravilha, tio! Esse é o
Flamengo do ano passado! O que tá acontecendo, parece milagre!”
“O que tá acontecendo é um
recado, Marquinhos. O Dino Sani tá mandando um recado. Não adianta quebrar o
Zico que o time é forte assim mesmo. E se time pequeno entrar pra dar porrada,
vai levar gol no lombo. Bebe tua cerveja aí que vai ter mais, Marquinhos. Vai
ter mais...”
A diversão vai dar lugar a um
breve momento litúrgico, sacro, reverencial, embora ninguém ali ainda saiba
disso. Mas Carlos Alberto vem pela direita e cruza. Um zagueiro corta para a
entrada da área. E Andrade ajeita, amacia e apenas impele a bola a uma viagem
sagrada, mística, sobrenatural, pairando sobre os vinte e dois jogadores, sobre
os oito mil espectadores, sobre a cidade, sobre o mundo. E flutuando acima de
tudo o que vive e se move, a bola apenas se agasalha no macio e reconfortante
toque sedoso das redes do Maracanã, em um dos mais belos e líricos momentos de
sua história. 5-0.
“GOLAAAAÇO! AÇO... AÇO... AÇO!
QUE COISA LINDA, TIO!!!”, e Marcos dá cambalhota, grita, chora, pula como uma
criança.
“Puta que o pariu...”, brilham os
olhos de Moreira, num raro laivo de emoção.
A amassada segue seu curso. O
Flamengo faz mais dois gols, ambos com Nunes (um deles após um inusitado pedido
da torcida para que cobrasse um pênalti), e perde uns vinte. O Americano escapa
de sofrer a mais humilhante goleada de sua existência. O placar reluz, feliz,
Flamengo 7, Americano 0. Hoje não foi sanduíche, hoje foi lagosta com caviar.
“Não falei, tio? Olha aqui o
jornal! Leu o jornal? Zico tá com os dois joelhos e a coxa inchados. Não
treinou. Não deve jogar contra o Vasco. O médico tá pessimista. Logo agora, que
o time parecia estar melhorando...”
“Zico joga.”
A forma assertiva, quase
arrogante, com que Moreira defende suas posições é algo que sempre acende um
misto de admiração e irritação em Marcos. O mais interessante é que o tio
sempre tem uma explicação, sempre consegue fundamentar suas certezas. Mas dessa
vez não é possível, os fatos o desmentem, os fatos o contradizem. Os fatos.
“Tio, os jornais...”
“Esqueça os jornais. Zico joga.
Não tentaram tirar o Zico do jogo com o Vasco? Agora o Dino vai brincar com
isso. Vai fazer um gato e rato com o Vasco. Vai manter o suspense até o
domingo. E é claro que jornal adora isso.”
“Então ele não tem nada? É tudo
conversa mole?”
“Veja bem, é certo que ele levou
uma banda, a gente o viu mancando. Mas, se fosse coisa de tirar do jogo, ele
teria saído na hora, não jogaria mais 20, 25 minutos. Estourar o cara em
clássico, em final, vá lá, mas com o Americano? Não... Os sinais, Marquinhos.
Tem que enxergar os detalhes. Não se preocupe, o Zico vai jogar. E bem. E nós
estaremos lá, no Maraca, batendo palma pra ele.”
“Tomara que você esteja certo.”
“Eu sempre estou certo,
Marquinhos. Sempre. Mesmo que eu esteja errado. Porque eu acredito no que falo.
Porque sou eu que estou falando. Não são os outros falando pra mim.”
Marcos demora, mas compreende o
jogo de palavras. Esse Tio Moreira... é mesmo um fdp...
* * *
O Flamengo, em grande atuação, derrota
o Vasco por 1-0, em jogo válido pela Taça Guanabara de 1981. Zico faz grande
partida, marca o gol da vitória, manda uma bola na trave e é o destaque do
jogo. A vitória é considerada a melhor exibição do Flamengo no ano até então, e
será o ponto de partida para a conquista do tetracampeonato da competição, e
mesmo do Estadual alguns meses mais tarde.