Certas pessoas parecem
ter nascido para determinadas tarefas.
Edvaldo é Operador de
Rotuladora da Turma Omega de Envasamento da maior cervejaria do país. Mais do
que isso, Edvaldo é o melhor dos operadores à disposição da empresa.
Desde o início da carreira,
demonstra exímio domínio das habilidades necessárias à função. Dotado de vasta
sensibilidade, consegue, através de uma refinada capacidade intuitiva e dos
conhecimentos adquiridos por uma incessante sede de aprendizado, manejar a
miríade de variáveis que compõem o funcionamento de uma das mais complexas
máquinas de um parque de engarrafamento de cervejas.
Com efeito, não é fácil
encontrar o ponto correto de regulagem das buchas de aplicação de cola,
sincronizando-os com os bicos injetores do fluido adesivo, ou com a respectiva
pressão de aplicação nas garrafas. Da mesma forma, as escovas de fixação dos
rótulos nos vasilhames precisam manter-se no ótimo estado de utilização,
evitando seu desgaste prematuro, assegurando assim máxima vida útil, dentro dos
preceitos de desempenho otimizado. Ou seja, cola demais gera desperdício e
papel “sambando” no vidro, cola de menos ocasiona fixação inadequada, perda de
papel e retrabalho. Esponjas com excesso de pressão se desgastam mais rápido,
baixa pressão não espalha a cola direito. Escovas gastas não prendem o rótulo
corretamente, escovas muito “apertadas” fazem o papel “correr” pela garrafa.
Fora isso, há a configuração da velocidade de entrada das garrafas, que deve
ser compatível com a regulagem das buchas e escovas, há o controle de umidade
na estocagem do papel, há a forma correta de preparo e despejo da cola no
compartimento correspondente, há o controle da maquineta datadora (que consiste
em um finíssimo bico injetor de tinta, programado para borrifar as informações
referentes a data, hora e local de envase), que deve incidir sobre uma área
previamente determinada do rótulo, há o sensor de garrafas defeituosas
(mal-cheias ou sem rótulo), que deve estar funcionando a contento.
Todas essas habilidades
são dominadas com maestria por Edvaldo, que é capaz de farejar o mais remoto
sinal de anomalia, sanando-a com uma precisão cortante. Sua turma costuma
obter, de longe, os melhores números em eficiência de rotulagem, operando a uma
taxa média de 70.000 garrafas/hora, enquanto as outras duas turmas mal alcançam
as 65.000 gfs/h. A qualidade do trabalho de Edvaldo já chamou a atenção da
direção, que anda impressionada com a sofreguidão com que o funcionário costuma
devorar os livros, manuais e outros materiais técnicos postos à disposição da
equipe.
Edvaldo parece ter
potencial para ir longe.
Acontece que o
contramestre acaba de ser demitido. Andou excessivamente entusiasmado por uma
das meninas do Farol (equipamento de inspeção de impurezas nas garrafas), moça
brejeira, cabelos lisos, pele em brilhante âmbar, corpo sinuoso, olhar cúpido
que instiga os mais lúbricos pensamentos e..., enfim, o contramestre foi
flagrado amassando a garota na Sala de Cápsulas em pleno pico de produção.
Vala. Rua. Pros dois (não sem certa hesitação do Gerente em despedir a moça,
mas isso não vem ao caso). E a empresa se vê diante de uma dificuldade. Precisa
de um novo contramestre.
Reúne daqui, telefona
dali, confabula-se de lá. E o martelo está batido. Edvaldo está promovido. Será
o contramestre da Turma Omega.
A função de
contramestre requer outras habilidades. O conhecimento técnico específico dos equipamentos
é desejável, mas seu aprofundamento é dispensável. O profissional não precisa
conhecer a fundo uma Rotuladora, mas precisa ter a exata noção do funcionamento
básico de uma Paletizadora/Despaletizadora, Encaixotadora/Desencaixotadora,
Lavadora de Garrafas, Farol Cheio, Farol Vazio, Enchedora de Garrafas,
Pasteurizador e, naturalmente, da Rotuladora, além das redes auxiliares de
insumos e requisitos de estocagem e armazenagem. Visão sistêmica é
imprescindível, a partir do momento em que a falha no funcionamento de uma
dessas máquinas compromete toda a linha de envase. Ademais, como líder de
equipe, o contramestre terá que lidar com uma variável muito mais complexa do
que os inúmeros parâmetros de regulagem de escovas e sensores: o comportamento
humano.
Vai começar a tormenta.
As dificuldades logo
surgem. Uma linha de Envasamento possui uma dinâmica própria, feérica,
pulsante, sem espaço para hesitações. Acostumado a processar múltiplas
variáveis na cabeça. Edvaldo demonstra falta de traquejo na identificação de
problemas específicos que atrapalham o rendimento da linha como um todo.
Precisa de cumplicidade, de troca, de confiança com os demais operadores. Mas,
com seu jeito excessivamente tecnicista, racionalista, pragmático, não consegue
“seduzi-los” profissionalmente. Desprovido de carisma, desde o primeiro momento
vê-se eivado por uma desconfiança intrínseca, confundindo cautela com simples
sonegação de informações. Seus novos comandados o testam, e Edvaldo sabe disso.
No entanto, seu jeito introspectivo, contido, que internaliza as intempéries
acaba por intensificar e consolidar um fosso no relacionamento com seus novos
comandados. Corroído por essa certeza, Edvaldo começa a ser tragado pela nova
realidade.
O desempenho da Turma
Omega começa a cair assustadoramente. As antigas 70.000 gfs/h decrescem para
68, 65, até se estabilizarem em algo em torno de 60 mil. A outrora premiada
Omega agora é a pior turma da Fábrica. Edvaldo introjeta, absorve, somatiza o
golpe. Cada Boletim de Produção com os pífios resultados lhe fustiga, lhe
apunhala. Edvaldo torna-se taciturno, soturno, lúgubre. O olhar distante e
melancólico denuncia a mágoa com as piadas, a chacota das “resenhas” da
peãozada. Mantém-se próximo de uns três ou quatro, em quem (ainda) confia. A
relação com aqueles que deveria liderar se deteriora a um nível de tolerância
tácita. Não há troca, não há intercâmbio, não há confiança, não há nada. Os
operadores não o vêem como comandante, ele não os vê como colegas. As mútuas
trocas de olhares sugerem medo. O medo do fracasso. O medo do revés. Que, ao se
apresentar verborrágico, caudal, inapelável, deságua na indiferença. Na
passividade.
Edvaldo sabe que está
por um fio. Tem plena noção de que, na avaliação externa da cúpula, sua atuação
tem sido insatisfatória. Trocou-se um excepcional operador por um contramestre
medíocre, inapto para o cargo. É alvo de pressões diárias por melhoria no
desempenho, mas a continuidade dos maus resultados não o incomoda mais, e muito
menos aos operadores, mais preocupados com o relógio de ponto ou com as “cruzetas”
nos bares e quebradas da vida. A situação chega ao limite do insustentável.
Chega a baixa estação e
o recesso coletivo. O retorno trará várias surpresas.
A empresa resolve
investir na linha de produção. Alguns equipamentos são modernizados, outros são
simplesmente trocados por unidades mais modernas. Vários profissionais são
substituídos, especialmente na Gerência e no Controle de Qualidade. Edvaldo,
que chega a ser cotado para sair, é mantido como contramestre, mas recebe
algumas sinalizações bastante enfáticas do novo Gerente. Precisará dar
resultados, e logo. Receberá o apoio que julgar necessário, mas será cobrado de
uma forma muito mais próxima e clara, inclusive com planilhas de indicação de
desempenho individual. A empresa está investindo muito dinheiro e quer retorno.
A curto prazo.
Edvaldo parece
concentrado. A definição de parâmetros de medição individual de desempenho o
fará identificar eventuais focos de resistência à sua liderança, algo outrora
intuitivo. Os novos equipamentos são realmente bons, modernos, o que reduzirá a
necessidade de improvisações, sempre dependentes de “macetes” e “gambiarras”
nocivos ao ambiente corporativo. O período de treinamento e capacitação
transcorre com certa tranqüilidade, todos curiosos e ansiosos em conhecer as
novas traquitanas com que trabalharão.
Mas, assim que a nova
linha roda, algumas conclusões surgem. Os resultados são aceitáveis. Poderiam
ser melhores, mas, dentro de um contexto de aprendizado organizacional, ainda
há como tolerá-los. No entanto, a Turma Omega segue atrás das outras.
Sistematicamente, seus boletins ainda são os piores de toda a Linha do
Envasamento. O nível de pressão e cobrança sobre Edvaldo começa a atingir patamares
extremos. Não há mais espaço para piadas. Surge o ódio. Edvaldo agora é o pária
que está atravancando o êxito da Companhia. É o estorvo. É a pedra. É o
obstáculo que precisa ser removido do caminho. Fala-se abertamente na
contratação de um novo contramestre. Comenta-se que já se prospectam nomes no
mercado. Capaz de terem inclusive iniciado, reservadamente, um processo
seletivo.
Edvaldo não faz mais
reuniões. Está melancólico. Reativo. Pensa. Pensa, e pensa. E se sair? Sabe que
tem potencial, na pior das hipóteses voltará a ser um mero Operador. Diz-se que
os chineses estão investindo em linhas de produção, é possível que se
interessem em importar know-how. Mesmo no mercado nacional, sabe que ainda
possui certo espaço. Mas e a sensação de derrota, de fracasso? E se sair e a
fábrica der um salto nos resultados, salto esse que tem plena certeza que irá
acontecer? Carregará a pecha de culpado único? Receberá sozinho o fardo da
responsabilidade pelos fracassos pretéritos?
Sem chegar a qualquer
conclusão, Edvaldo resolve seguir estudando, buscando se aprimorar tecnicamente.
Afaga sua farta barba, enquanto se perde em mais e mais divagações. Sim, com os
resultados ele poderá responder a todos. Calar bocas. Silenciar críticas. Expor
seus desafetos.
A sirene toca. É hora
de voltar ao trabalho.