1915.
A próspera cidade de Belém do
Pará já se movimenta para as festividades que celebrarão, em janeiro do ano
seguinte, os 300 anos de sua fundação e emancipação. Não serão poupados
recursos nem esforços para que o aniversário da cidade se revista de um
acontecimento magnífico, espetacular, inesquecível.
Nesse contexto, programa-se uma
grande partida de futebol, esporte que já mobiliza milhares de pessoas nos
vários recantos do país. Um match entre o scratch paraense e a seleção da
capital federal. Em jogo, a Taça do Tricentenário de Belém.
Destarte, a Liga Paraense remete,
em meados de setembro, telegrama à Liga Metropolitana de Sports Athleticos
(LMSA), na prática a Federação Carioca, convidando-a para enviar seu scratch
para a disputa do troféu em partida amistosa, a se realizar em janeiro. O
convite é prontamente aceito, gerando forte expectativa entre o mundo esportivo
local, que irá, pela primeira vez, receber os representantes do principal
centro futebolístico do país.
Passa-se o ano, e a LMSA, em que
pese o sucesso de público do seu campeonato (vencido pelo Flamengo pela segunda
vez consecutiva, agora de forma invicta), vê-se envolta em controvérsias de
toda ordem. Com efeito, as partidas começam a se tornar mais inflamadas, e o
espírito amador que as permeia tem-se deteriorado com expressiva rapidez. Os
problemas extracampo, com invasões e inclusive necessidade de anulações de
partidas, passam a se suceder em número preocupante. As decisões dos árbitros,
antes soberanas, já são abertamente questionadas na imprensa. E, para
complicar, a própria Liga tem dificuldades de organizar e preparar sua seleção,
que recentemente amargou uma humilhante derrota para o scratch paulista (8-0),
a pior de sua história, sem ter disputado previamente sequer um treino.
Diante da necessidade de honrar o
convite dos paraenses, uma LMSA criticada e dividida começa a solicitar dos
clubes filiados a cessão de jogadores para a longa e penosa viagem até Belém, a
se realizar num barco a vapor. O Flamengo e o São Cristóvão prontamente se
dispõem a ceder atletas e o Fluminense libera dois elementos. O Botafogo e o
América não respondem ao chamado, e assim a formação de uma equipe efetivamente
representativa vai sendo ameaçada. O prazo para a viagem vai se escorrendo, mas
a Liga já não parece muito preocupada com o problema.
E não é sem surpresa que em
dezembro, a uma semana da data programada para a viagem (que não pode ser
adiada, pois não há mais linhas regulares capazes de chegar a tempo ao
destino), a LMSA envia telegrama à Liga Paraense, onde informa que infelizmente
não será possível atender ao convite, sem fornecer mais detalhes. Lamenta
muito, mas não poderá fazer parte do grande amistoso.
A versão apurada pelos jornais dá
conta de certo desentendimento quanto ao número de passagens a serem bancadas
pelos paraenses, uma vez que a LMSA exigia o fornecimento de bilhetes para
camarotes individuais para cada membro da delegação, algo já indisponível na
embarcação agendada. Mas há quem sustente que, diante da indolência dos clubes
em ceder jogadores, a LMSA tenha desistido previamente da viagem, deixando para
comunicar em cima da hora sua decisão para que os paraenses não pudessem chamar
outra Federação rival (notadamente a de São Paulo).
O comunicado da LMSA consterna e
indigna a Liga Paraense. Toda a logística do grande jogo já está montada.
Ingressos vendidos com antecedência e devidamente esgotados, desfiles,
personalidades ilustres já convidadas para as tribunas, despesas já empenhadas
com deslocamento e hospedagem da delegação visitante, tudo agora corre o risco
de vir abaixo. A se cancelar o amistoso, uma humilhação e uma decepção sem
precedentes chocariam a sociedade local. Algo precisa ser feito. Até que alguém
dá a ideia. Será arriscado. Ferirá suscetibilidades. Dificilmente será levado a
termo. Mas é imperioso que seja tentado.
Com isso, a Liga Paraense
resolve, diante da desistência da Liga Metropolitana, enviar um telegrama, em
caráter de urgência urgentíssima, ao seu campeão, o Clube de Regatas do
Flamengo. Que está convidado, assim, a disputar a Taça Tricentenário contra o
scratch paraense.
O Flamengo é indiscutivelmente o
melhor quadro do Rio de Janeiro. Se em 1914 ganhou o campeonato após uma
renhida disputa com os rivais, desta feita a equipe passeou em campo, tendo
derrotado de forma inapelável todos os concorrentes (com destaque para as
goleadas por 5-0 no Fluminense e 4-2 no América). Ao sistema defensivo sempre
sólido, comandada pelo goleiro Baena e os backs Píndaro e Nery, agregou-se um
ataque agora devastador, onde se destaca a dupla formada pelo “arco” Sidney
Pullen e a “flecha” Riemer (o primeiro grande artilheiro da história do clube).
Os veteranos Borgerth, Gallo, Curiol e Arnaldo, junto com o chileno Parras, completam
um elenco que foi capaz de marcar 35 gols em 12 jogos, levantando assim, mais
uma vez, o campeonato da cidade, agora de forma invicta.
Faltam apenas DOIS dias para a
partida do navio “Rio de Janeiro”, do Lloyd Brasileiro. É quando chega à
diretoria do Flamengo o convite dos paraenses. Fosse o vetusto Fluminense, o
pernóstico Botafogo ou o burocrático América, a missiva seria recebida aos
gargalhos e respondida com alguma recusa educada e elegante. Mas o Flamengo, de
forma audaz e ousada, sequer coloca o assunto em discussão. Aceitará a viagem
sem pestanejar. E, sem pensar muito, se põe à ação.
De forma inteligente, o Flamengo
ratifica a viagem daqueles jogadores que já estavam preparados para a excursão,
reforçados pelos atacantes Welfare e Baptista, do Fluminense, e mais um jogador
do Botafogo. As vagas restantes são preenchidas por jogadores rubro-negros,
naturalmente. E assim, em apenas 24 horas, o Flamengo consegue montar uma
delegação com 15 jogadores e embarcá-la no navio “Rio de Janeiro”, com destino
a Belém. A questão dos camarotes é resolvida de forma improvisada, como sói ao
espírito flamengo. Os atletas dividirão quartos até a primeira parada, ocupando
os que se forem esvaziando ao longo da viagem.
E assim o Flamengo parte com
destino ao Pará. A viagem será tranquila. Mas em terra começará a turbulência.
A desconcertante forma como o
Flamengo ajeitou e organizou sua viagem, contrapondo-se à incapacidade
demonstrada pela LMSA, que em quatro meses não conseguiu realizar o que seu
filiado logrou encetar em menos de 48 horas, recebe péssima repercussão entre
os meios esportivos cariocas. A Liga vira motivo de chacota e escárnio, abrigo
da “nata da incompetência”, “refúgio dos obtusos”, entre outras pechas pouco
altaneiras. Ainda atordoados, seus dirigentes convocam, às pressas, uma reunião
emergencial para tratar do assunto. Reunião que será sigilosa, fechada à
imprensa.
Algumas raposas felpudas começam a
farejar a tempestade se armando.
A reunião é densa, carregada. A
LMSA exige do Flamengo explicações, especialmente por não ter recebido deste a
ciência do convite e de ter decidido pela viagem sem o requerimento de
autorização prévia. Há uma quebra de hierarquia aqui, o que remete à
indisciplina, rosna a Liga. O Flamengo se defende, argumentando ter sido
impossível convocar uma Assembleia em tão exíguo espaço de tempo. Fluminense e
América, tradicionais aliados políticos flamengos, alinham-se ao discurso rubro-negro,
mantendo o tom de confrontação. Mas o representante do Botafogo faz uso da
palavra e profere um discurso extremamente agressivo, taxando de “inaceitável”
e “inadmissível” o ato de “rebeldia” que se revestiu de um “tapa na cara” da
sociedade carioca e brasileira. O discurso botafoguense é tão virulento que
gera vários bate-bocas, a nível colegial, entre o dirigente alvinegro e os seus
pares flamengos e fluminenses. Mas, encerrados os discursos e decorrido o
intervalo para as deliberações, chega-se à decisão final.
A LMSA decide romper relações com
a Liga Paraense e comunica ao Flamengo que o clube não está autorizado a
realizar NENHUMA partida, sob nenhum caráter, fora do território do Rio de
Janeiro, sob pena de sumária desfiliação e banimento do futebol. Ademais, a
LMSA recomenda enfaticamente que a delegação já posta em viagem desembarque no
primeiro porto e retorne imediatamente ao Rio de Janeiro, evitando assim a
possibilidade de aplicação de suspensões individuais aos seus integrantes.
A decisão está tomada, por 7
votos a 5. Entre os votos favoráveis à LMSA, estranhamente figuram América e
Fluminense.
A publicação das medidas da LMSA
provoca um terremoto no mundo esportivo carioca. Está criado um impasse com
poucas possibilidades de solução. Indignado, o Flamengo avisa que sequer dará à
delegação a ciência de medidas tão estapafúrdias. A esmagadora maioria dos
jornais segue apedrejando a falta de habilidade política e a vaidade dos
dirigentes da Liga, incapazes de abordar uma questão tida como “simples”, transformando-a
em um imbróglio interestadual.
A essa altura, o “Rio de Janeiro”
já se aproxima de São Luís.
É quando entra em cena o Senador
Lauro Sodré, principal idealizador e entusiasta da realização dos amistosos em
Belém. O Senador passa a desenvolver uma série de conversas com o Presidente da
LMSA e a se comunicar com a Liga Paraense, costurando uma solução para o caso.
Após alguns jantares e uma meia-dúzia de telegramas, resolve-se que a Liga
Paraense deverá expedir um telegrama aos cariocas, explicando os motivos que a
levaram a se dirigir diretamente a um filiado, passando por cima das boas
práticas hierárquicas, e dando ciência das responsabilidades assumidas com a
realização do evento, enfim.
E assim se faz. Emitido o
telegrama (vasto, com um cacho de laudas), a LMSA procede conforme combinado
com o Senador. Convoca novamente os filiados para nova Assembleia
extraordinária, mais uma vez sigilosa.
Mais uma vez, a sessão é tensa,
embora os discursos já apresentem um tom menos inflamado. O Flamengo, em que
pese mostrar-se vivamente incomodado com a questão, evita ferver a água. Como
se imaginava, as explicações dos paraenses são bem recebidas pelos dirigentes,
que agem para reverter o resultado da reunião anterior. A LMSA ainda cogita
exigir que o Flamengo lhe transfira a posse de todos os troféus que
eventualmente conquistar, mas, diante da pouca receptividade, recua. E dessa
vez, com o voto quase unânime dos clubes (apenas São Cristóvão e Boqueirão FC
contrários), a LMSA resolve por reatar as relações com a Liga Paraense e
concede ao Flamengo a autorização para disputar quantos jogos entender
necessários durante a viagem ao Norte.
A excursão, para alívio
generalizado, está salva.
Poucos dias depois, o Flamengo
desembarca em Belém, sob uma caudalosa ovação de uma multidão que recepciona a
delegação.
A excursão é um sucesso absoluto,
em todos os aspectos. O Flamengo vence uma seleção reserva paraense, ainda em
dezembro, por 5-1. Já em janeiro, empata com o scratch do Pará (1-1), mantendo
em aberto a disputa da Taça Tricentenário. A seguir, vence Paysandu (4-0), Remo
(3-2) e o scratch paraense (2-0). E, por fim, no que seria o desempate contra a
seleção paraense pela posse do Troféu Tricentenário, acaba vendo o jogo (ainda
0-0) ser interrompido por um temporal com apenas 20' disputados.
O clube desembarca na capital
federal com o seguinte cartel de taças conquistadas: Troféu Jornal Folha do
Norte, Troféu Artístico, Troféu Clube do Remo, Troféu Bancada Paraense.
Ironicamente, o Troféu Tricentenário, pivô de toda a excursão, não terá seu
desfecho consumado, restando sem vencedores.
No final de janeiro, a
delegação chega à capital federal, pronta para, após breve descanso, dar início
aos preparativos da longa temporada que está prestes a ter início. A recepção é
calorosa, própria de um clube que já começa a formar laços fraternos de
admiração e até idolatria com seus admiradores e seguidores. Relação que pode
ser bem expressa na crônica publicada em uma revista da época, que prontamente
se reproduzirá aqui, de forma resumida.
“Mademoiselle, logo que
acorda e consegue chegar até a Praça Dom Afonso, em Petrópolis, antes de
procurar as amiguinhas ou um banco onde as espere, corre para um jornaleiro.
E Mademoiselle, que
preferiu sempre os diários de crônicas mundanas, agora toma nervosamente o “Jornal
do Commercio” das mãos do vendedor. Pois é a verdade. Mademoiselle hoje é ‘o
mais atento e constante leitor’ do Jornal do Commercio em Petrópolis. E abrindo
a folha, os seus olhos correm alvoroçados as colunas dos telegramas.
O que será? Notícias da
guerra? Algum voluntário patrício que estaria atualmente na Legião Estrangeira
do Exército Francês?
Afinal, ela encontrou o
que desejava na leitura feita com a maior emoção. Deixou o jornal cair sobre o
regaço, deu um suspiro de alívio como quem tira um peso do coração, sorriu,
tudo isso enquanto os olhos se umedeceram, preparando o choro.
Concluímos: tem o noivo
na guerra, acaba de ler que foi ferido, mas escapou da morte e recebeu
condecoração, a Medalha Militar ou a Legião de Honra.
Resolvido o problema,
quisemos saborear o prazer da vitória da nossa observação. Aproximamo-nos de
Mlle, e expusemos todas nossas conjecturas, à queima-roupa, satisfeitos conosco
mesmo por nossa perspicácia. Mlle. sorriu e respondeu-nos, mostrando o que
acabava de ler.
- Está enganado.
Veja...
Vimos, lemos. Era um
telegrama de Belém do Pará. O seu conteúdo:
Belém 9. De todos os
jogos entre os footballers cariocas e paraenses, o mais equilibrado e renhido
foi o match entre o Flamengo e o Club do Remo, terminando por vitória do
Flamengo etc
- Ora, bolas...
- Ora bolas coisíssima
nenhuma. É isso mesmo o que o Sr. está vendo aí. Três gols a dois, reportados
lá do Pará. E não adianta insistir, porque não abandono o meu Club...
E, antes de correr para
o canto oposto do largo, em busca de uma camarada, ainda exclamou:
- Hurrah, hurrah,
hurrah, FLA-MEN-GO!!!”