Saudações flamengas a todos,
Hoje deixo a segunda parte da
trilogia que, em alusão aos 120 anos de história do Flamengo, conta um pouco
dos primórdios da história do clube. Aqui se falará da primeira vitória e da
polêmica que acarretou. Boa leitura.
II – A PRIMEIRA VITÓRIA
1898, 05 de junho.
Um domingo majestoso, solar, que
convida a todos os cariocas a saírem de suas casas e curtirem as belezas
naturais da cidade, entregando-se aos recreios e divertimentos próprios de suas
merecidas folgas.
Mas neste dia tudo converge à
Enseada de Botafogo, onde está prestes a ter início a Grande Regata de 1898.
A União Fluminense de Regatas
(esboço de Federação que congrega as principais agremiações praticantes do
rowing) não mede esforços para fazer desta a mais perfeita competição de todas
as épocas. Um suntuoso pavilhão é construído à beira-mar para a recepção dos
convidados. Ao seu redor, lances e mais lances de arquibancadas poderão
acomodar parte de uma multidão ávida pelo início das competições. Um destes
lances é especialmente reservado para acomodar os associados dos clubes.
O mar cintila em um azul
ofuscante. Nele, as mais diversas embarcações, entre barcas, rebocadores,
lanchas e iates, engalanadas com adereços e ornamentos vários, como
bandeirolas, corbeilles, faixas e outros fru-frus, compõem um luxuriante
mosaico de cores e formas, carregando adeptos entusiasmados entoando gritos de
ordem e “vivas” para suas cores preferidas.
O intenso alarido que já toma
conta de todo o local e seus arredores se transforma em furor quando uma salva
de tiros anuncia a passagem do Exmo. Sr. Presidente da República, Prudente de
Moraes, que desfila pela Enseada a bordo de um iate, arrancando entusiásticas
manifestações de apreço (com chapéus sendo atirados ao alto, palmas
incessantes, entre outras demonstrações).
O início das regatas se aproxima.
Serão nove páreos, divididos
entre canoas, baleeiras e escaleres.
O GR Flamengo está inscrito em
cinco deles. Competirá no primeiro (canoas a 4 remos), com Tupy, no segundo (baleeiras
a 6 remos), com Iaycy, no quinto (baleeiras a 4 remos), com Jandaya, e no nono
(escaleres a 10 remos), com Aymoré.
Além do terceiro (baleeiras a 2
remos), com Irerê.
Dois anos e meio após sua
fundação, o rubro-negro ainda persegue sua primeira vitória. Há muito deixou de
ser mero azarão, para conquistar várias posições de honra, empilhando segundas
e terceiras colocações. No entanto, a falta de triunfos se transforma em
pilhéria, e o carioca, sempre gozador, agracia o clube com a pecha de “Clube do
Bronze”, dado o excesso de medalhas do tipo. Os rapazes da República Paz e
Amor, externamente, brincam com o fato, mas entre eles há a briga quase
obsessiva pelo topo. E é hoje. Vai ser hoje. Tem que ser hoje.
Na bolsa de apostas informal que
se instala na Enseada, apenas Tupy, no primeiro páreo, é razoavelmente cotada.
Nos demais, os barcos do Flamengo são tidos como azarões, ou nem isso. A briga,
apontam, se dará entre GR Gragoatá (clube mais estruturado no momento) e o CR
Botafogo. Melhor assim, pensam os flamengos. O fator surpresa sempre pode
desequilibrar.
Enquanto no horizonte brilham as
ricamente decoradas bandeiras da União Fluminense, do Botafogo e do Flamengo
(especialmente encomendadas para o evento), um estampido dá o sinal de que as
disputas, enfim, irão começar.
As coisas não iniciam bem para o
Flamengo. Nos dois primeiros páreos, Tupy e Iaycy sequer chegam perto das
embarcações vencedoras, terminando a competição em posições intermediárias.
Agora, vai começar o terceiro páreo. Alinham Dora e Vera (ambas do GR
Gragoatá), Wega (CR Botafogo) e Mimosa (CR Icarahy), que enfrentarão a flamenga
Irerê. Os favoritos são as duas baleeiras do Gragoatá, com certa cotação para
Wega, do Botafogo.
O percurso é curto, de 800
metros. O tiro é dado, e logo na largada Irerê surpreende, saltando na ponta.
Após alguns metros, Mimosa se recupera e consegue alcançá-la, dando início a
uma sensacional luta pela primeira posição. Os outros barcos ficam para trás.
Irerê e Mimosa agora travam uma verdadeira batalha náutica, literalmente batem
remos, esbarram-se. Alternam a primeira posição a cada hiato de respiração. Na
multidão, ninguém pisca. Alguns gritam, outros rezam. Todos suam. Agora os
barcos estão na reta final, é a hora da atropelada. Os flamengos da Irerê colocam
nos seus remos toda a força, toda a flama, todo o clamor de um grupo. Sentem-se
parte de um todo, irradiam-se e arrepiam-se da força de um conjunto que está
aprendendo a dar seus primeiros passos. E, inebriados, sentem a explosão de uma
energia nova, inédita, incomparável, que lhes consumirá as entranhas e lhes
exigirá nada menos que o esforço, a dedicação, a entrega plena. E a glória.
É cabeça a cabeça, pescoço a
pescoço. Os barcos cruzam a faixa.
E vence Irerê! O Flamengo vence!
Os abraços, lágrimas, hurras dos
populares compõem um dos grandes momentos da tarde. Não há quem se mantenha
indiferente à exaltada comemoração daquela gente da Paz e Amor, que atira
vestes e objetos ao alto, espoca fogos, abre bebidas, transforma desconhecidos
em amigos de infância, convida estranhos a dividir, mais tarde, barris de
cerveja no 22.
A Enseada vive um carnaval
temporão. E ainda faltam seis páreos.
Nas demais etapas, o Flamengo,
talvez ainda atordoado pela conquista, vê sua baleeira Jandaya abalroar um cone
de sinalização e ter de abandonar o quinto páreo. Ao menos Aymoré colhe o
segundo posto no nono páreo.
E assim, após duas horas e meia
de emocionantes embates, encerra-se mais um dia de regatas. Certamente uma
jornada histórica, que não será esquecida por muitos dos que a presenciaram.
Como previsto, o GR Gragoatá conquista o maior número de premiações, tendo
vencido três páreos, dentre os quais o principal (quinto), que lhe conferiu o
troféu do “campeonato”.
Mas, além da festa dos
vencedores, aquele domingo ainda reserva vários desdobramentos ao longo da semana. O dia está
longe de terminar. Durará meses.
A bomba pipoca assim, seca, sem
eufemismos ou meias-verdades. O CR Icarahy entende ter sido prejudicado no
Terceiro Páreo e recorre à União Fluminense, pedindo a desclassificação de
Irerê, com a consequente transferência da vitória ao seu barco Mimosa.
Na verdade, a organização do
evento, em sua única falha, não conseguiu repor a ausência de alguns juízes que
deveriam fiscalizar a disposição das raias e a respectiva passagem das
embarcações. Ademais, o balizamento recebeu uma série de críticas, por ter sido
incompleto e pouco visível, mesmo para determinados barcos. Isto posto, e
diante de tão encarniçada batalha pela primeira colocação, o CR Icarahy
julgou ter sido afetado por uma conduta irregular do adversário (o
Flamengo), recorrendo assim ao tribunal da União Fluminense, uma decisão que
suscitou críticas dos principais jornais da cidade, entendedores que as
condições precárias de algumas raias prejudicaram os dois competidores.
E o que era surpresa se
transforma em estupefação, quando a União Fluminense, em julgamento polêmico,
resolve DEFERIR as alegações do CR Icarahy, penalizando Irerê e lhe tirando o
primeiro posto. Assim, o resultado do Terceiro Páreo, em caráter oficial, é
reformado: em 1º lugar Mimosa (CR Icarahy), em 2º lugar Irerê (GR Flamengo).
A decisão enche de consternação o
mundo rower da capital federal. Torna-se quase um consenso que o julgamento
revestiu-se de caráter político, uma vez que o CR Icarahy possui eminentes e influentes membros na diretoria e na comissão julgadora da União Fluminense. Os jornais
praguejam, defendem que, na pior das hipóteses, o páreo deveria ter sido
anulado por completo, pois as condições do local afetavam a todos os
competidores. Mas o julgamento não é alterado.
Ao Flamengo só resta uma decisão,
drástica e fulminante. Por unanimidade, seus associados decidem requerer a
desfiliação da União Fluminense de Regatas, o que é levado a termo pela
diretoria.
Abre-se uma crise sem precedentes
no rowing carioca. Em agosto são disputadas novas regatas na Enseada de
Botafogo, mas o evento é consideravelmente esvaziado pela ausência do Flamengo.
A diretoria rubro-negra, revoltada, sequer cogita reverter sua decisão. Somente
após longas, delicadas e tensas negociações, levadas à frente pela diretoria do
GR Gragoatá (movida talvez pelas ótimas relações que mantém com o Flamengo,
talvez pela latente rivalidade com o Icarahy, também de Niterói), o Flamengo, em setembro, retorna
ao seio da União Fluminense de Regatas, com a prerrogativa de indicar membros
para compor a respectiva diretoria. Não deixa de ser uma vitória política do
clube.
E o cenário rower retorna à sua
normalidade. E, como às vezes sói acontecer no mundo esportivo, a resposta
demorará um pouco, mas ribombará envolta por uma ironia de uma crueldade
fascinante, daquelas que poderiam preencher calhamaços de um roteiro de filme,
daqueles de mocinho.
* * *
1899, 15 de Outubro.
A semana chuvosa encheu
de apreensão os organizadores da Grande Regata organizada pelo CR Icarahy, na enseada
de mesmo nome, em Niterói. Mas, no domingo, o sol abre sorridente, jocoso, em
júbilo. E a airosa agremiação niteroiense pode se esmerar na organização de uma
belíssima festa, buscando proporcionar a associados, convidados, competidores e
ao público em geral um espetáculo primoroso na organização de suas regatas.
Após vários desfiles,
bailes regados a farta bebida e embalados por uma banda de fuzileiros navais que
atravessa o mar instalada sobre uma das barcas ricamente ornadas e
especialmente preparadas para o evento, enfim tem início a competição.
O CR Icarahy é o grande
favorito para a conquista do maior número de páreos. Preparou-se arduamente
para organizar e vencer a disputa. Seu grande xodó é a baleeira a 6 remos
Mafraina, tida como seu melhor barco, que competirá no quarto páreo. Uma multidão
se acotovela na beira da praia, onde irá acompanhar e torcer pelos remadores que
defendem as cores das associações nativas.
O GR Flamengo, por sua
vez, inscreve embarcações para cinco dos oito páreos. Mesmo ainda não
ostentando nenhuma vitória no currículo, dessa vez uma de suas embarcações, a
canoa a 4 remos Tymbira, é tida como favorita. Estará no segundo páreo.
Começam as regatas. Vem
o segundo páreo, 1000 m. Tymbira larga na frente, abre um, dois, três corpos de
vantagem e some. As canoas Altiva, do Club Boqueirão do Passeio, e Vespertina,
do novo Club de Regatas Vasco da Gama, travam animada disputa pelo segundo
lugar, mas quando o barco do Club Boqueirão enfim derrota seu oponente e cruza
a faixa final, os remadores do Flamengo já estão se abraçando e colhendo os
aplausos da multidão. Chegaram muito, mas muito antes, quase com um oceano de
vantagem. O GR Flamengo enfim vence, agora de forma incontestável, impossível de ser anulada sob qualquer argumento. Os protagonistas
do feito são os remadores Pinto Lima Júnior (patrão), Francisco Laport, Carlos
S Costa, A Tourinho e Napoleão de Oliveira (este último, um dos
sócios-fundadores do Grupo).
Mas o melhor ainda está
por vir.
Quarto páreo. 1000
metros. A multidão se assanha na expectativa da vitória de Mafraina, o representante local. É dado o
tiro de largada. Como esperado, o barco do CR Icarahy salta na frente e parece
abrir boa vantagem. Mas logo é alcançado por Ypiranga, do GR Flamengo. Após um
ano da polêmica regata de Botafogo, novamente Flamengo e Icarahy estão
disputando palmo a palmo a liderança de um páreo. Os remadores flamengos, ainda
mordidos com o incidente de 1898, dão tudo de si. Prepararam-se como cavalos
para esse momento. Irão, de qualquer maneira, arrancar esse triunfo.
Responderão ao agravo dos tribunais dentro da água, no teatro da competição,
que é onde deveriam ser sanadas as lides. E os rapazes do Flamengo reduzem
dramaticamente a diferença. Aturdidos, os remadores da Mafraina perdem a
concentração. É o bastante para que Ypiranga os atropele na reta final, sob
aplausos de uma parte pequena do público e nervosa frustração da grande massa. E
ainda há um adendo: Mafraina corre sério risco de perder mesmo a segunda
posição para um barco que arranca alucinadamente, a baleeira Vindicta, do CR
Vasco da Gama. Mas Vindicta esbarra em um escaler que estava ancorado na beira
da raia da ponta e é alijada da briga. Os remadores do Icarahy reagem, tentam
um esforço final, mas ninguém, nada, nenhuma força da natureza, derrotará os
moços do Flamengo. Os barcos cruzam a chegada.
Vence Ypiranga. Vence o
Flamengo!
Um remador do Icarahy
demonstra tamanho desnorteio que se atrapalha com a pá do remo, que sai das mãos e lhe atinge o peito, sem gravidade, porém. Os dirigentes do Icarahy
se entreolham. Além de verem seu barco principal ser derrotado justo para um
antagonista recente, ainda estão às voltas com um sério incidente que compromete
a organização do evento (a colisão do barco do Vasco com o escaler, que lhe
tira a chance do segundo lugar). Cogita-se pensar em anular o páreo, mas a
ideia é logo descartada, por se revestir de suprema desmoralização dos
organizadores. Ao CR Icarahy resta engolir o orgulho e brindar aos vencedores, os remadores Pinto Lima Júnior (patrão), Francisco Laport, Carlos S Costa, Alberto Loth, Ubaldino Amaral e os sócios-fundadores Napoleão de Oliveira e José Agostinho Pereira da Cunha.
A Regata termina sem
maiores incidentes e com sua organização até elogiada. O Flamengo, o Icarahy e
o Gragoatá, com duas vitórias cada, são os grandes vencedores do dia.
O Flamengo decide
comemorar o grande triunfo, conquistado em pleno território icaraiense, oferecendo
um baile nos festejos de seu aniversário, a 15 de novembro, que já se aproxima.
Também se decide, em comemoração às primeiras vitórias, mandar construir uma
baleeira a 6 remos, ainda mais moderna e sofisticada. Irá chamar-se Itapuca.
Ainda não se sabe, mas
Itapuca será uma das protagonistas de um momento glorioso, que está por vir.
O dia do primeiro
troféu.