domingo, 1 de novembro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Seguindo a série de textos comemorativos aos 120 anos de História do Flamengo, hoje inicio uma sequência de três passagens envolvendo os mais remotos primórdios de sua existência. A trilogia abordará a primeira premiação (assunto de hoje), a primeira vitória e o primeiro troféu.

Boa leitura.

I – A PRIMEIRA PREMIAÇÃO

1896, novembro, 15.

A aprazível Ilha de Paquetá, no litoral carioca, está em festa. Suas ruas, edificações, embarcações e gentes se engalanam para saudar seu padroeiro. É a Festa de São Roque, que varrerá todo o dia com a mais variada gama de eventos, aos quais acorre gente de todos os cantos da capital federal. Às 9 da manhã, uma missa na capelinha fará as honras da abertura dos festejos, que prosseguirão com um animado torneio de tômbola (espécie de bingo), onde as madames poderão concorrer a toda gama de jóias, como colares, braceletes, pulseiras, tudo de bom gosto e ricamente ornamentado. Outras alternativas para entreter os convidados estarão à disposição, após as quais haverá outra missa, dessa vez campal, e lauto e concorrido lunch, oferecido pela organização do evento, que culminará com a procissão que conduzirá a imagem do padroeiro pelas vielas da ilha.

Não sem antes se realizar a Grande Regata, programada para as 13 horas.

O programa é composto de cinco páreos, divididos em categorias como escaleres, canoas e baleeiras. A extensão do percurso de cada páreo também é variável, com trajetos entre 500 e 2000 metros. As principais associações praticantes do rowing são convidadas e confirmam presença, como o Club de Regatas Botafogo, Club de Regatas Sul-Americano, Grupo de Regatas Gragoatá e Club de Regatas Icarahy (os dois últimos de Niterói).

E, naturalmente, o Grupo de Regatas do Flamengo, que completa neste domingo exatamente um ano de existência.

Os rapazes que comandam a agremiação aurianil instalada à Casa 22 da Praia do Flamengo começam a demonstrar que isso de competir e participar de regatas pode mesmo ser contagiante. Após a desastrosa participação na fatídica estréia naquele dezembro de 1895 em Gragoatá, passam a levar o ofício do rowing bem mais a sério. Dedicam-se à aquisição de embarcações melhores e menos improvisadas. Prestam mais atenção a detalhes, não dando margem a erros crassos como o de preparar barcos sem os ilhoses de encaixe para os remos, ou equivocar-se no polimento de seus cascos. Seus remadores passam a praticar com mais freqüência a atividade do training, inclusive cronometrando passagens em extensões específicas. O Flamengo, após um início em que tudo apontava para o perecimento precoce, vai, sim, evoluindo e crescendo vertiginosamente como instituição.

Sem perder a irreverência.

Irreverência que é refletida, por exemplo, no episódio do ácido. Acontece que o 22, casarão onde morava Nestor de Barros, era alugado. E um de seus cômodos se constituía em um galpão enorme, quase uma garagem. No entanto, apenas parte dela era utilizada por Nestor (e, por extensão, pelo Flamengo). A área era insuficiente para instalar os barcos que o grupo já começava a comprar. Era necessário alugar o espaço contíguo, o galpão inteiro. No entanto, o proprietário relutava em se desfazer dele, pois o utilizava para alugar leitos na alta temporada. Após longa e árdua negociação, o Flamengo conseguiu um acordo. Teria o espaço, desde que desalojasse o único morador que ali residia de forma fixa, o Seu Machado. E toca conversa dali, lábia daqui, e nada do Seu Machado querer desocupar o quartinho. Até que Nestor tem uma idéia: arrumam uma espécie de broca manual, fazem na parede do inquilino um pequeno furo e nele instilam uma seringa com ácido sulfídrico, empesteando o quarto a ovo podre. O furo é tapado e então é só esperar Seu Machado chegar do trabalho. Nestor chega ao requinte de colocar um banco na área externa. Seu Machado chega, cumprimenta o vizinho, entra. Instantes depois, sai esbravejando, “não fico aqui nem mais um segundo, isso está que é ovo podre!”, e Nestor, ar sério, “que tragédia, Seu Machado, que tragédia, como se deu isso?”, e assim o Flamengo consegue seu galpão. Já pode guardar seus barcos.

Paquetá. O sol radioso e escaldante ajuda a envernizar um ofuscante tom de azul num céu que parece ter sido pintado. O Flamengo compete no primeiro páreo, para canoas a 4 remos, 1000 metros. Alinha seu barco Cecy, recentemente objeto de forte preparação e reforma, agora triscando e faiscando de nova. Seus adversários serão Diva (CR Botafogo), Izara (GR Gragoatá) e Hirondelle (CR Sul-Americano).

Às 13 horas, rebenta a largada. Sob gritinhos e hurras de uma multidão entusiasmada, que se aboleta no pouco espaço disponível nos guarda-corpos à beira-mar, as quatro embarcações rapidamente ganham as águas, disputando cada metro com galhardia e forte transpiração. Mais experiente, a guarnição do Botafogo assume a liderança com certa vantagem, seguida pelo pelotão que se engalfinha a seguir. Hirondelle fica para trás, e o que se verá nos instantes finais será uma disputa encarniçada entre Cecy e Izara, metro a metro, remada a remada, até que, por pouca coisa, tem-se o resultado final. Diva, do Botafogo, é a guarnição vencedora. Na segunda posição, chega Cecy, do Flamengo.

O feito aurianil será objeto de condecoração pela primeira vez em sua história. Pela segunda posição, os rapazes do Flamengo recebem uma pequena medalha, em prata. O resultado será comemorado oportunamente do típico jeito flamengo, com corsos e reco-recos, com direito a peru assado (providenciado diretamente dos jardins do Palácio do Catete, que fazem divisa com o 22, o que facilita a formação de grupos destinados a, digamos, afanar a ave em ocasiões especiais).

Coisa de uma semana, dez dias depois, o Flamengo fará sua Assembléia de final de ano, para definir a diretoria que responderá pelo grupo no vindouro e promissor 1897. Nela, além dessa grave e importante decisão, outra medida será posta em votação e aprovada. Uma modificação no nascente Estatuto rezará que, dali em diante, o Flamengo passa a abolir as cores dourado e azul, passando a ostentar apenas as cores vermelha e preta. Torna-se, portanto, após apenas um ano, rubro-negro, de forma definitiva.

Segundo Nestor de Barros, essas cores são mais fortes, mais agressivas e chamarão vitórias. Vitórias essas que ainda demorarão um tantinho mais.

Mas chegarão. Aos borbotões.