A casa está em obras.
Acontece que ainda não moro
sozinho. Resido com os meus pais, o que, a despeito de me tolher certa
liberdade, é conveniente em termos financeiros e na organização de horários e
rotinas para me manter focado nos estudos, financiados com o soldo do árduo trabalho
na indústria.
Ocorre que a casa está em obras.
E não são reformas prosaicas. É piso, armário, azulejo, tudo. O apartamento
está sendo descascado e dele surgirá um novo. Questão é que a convivência com
pilhas de pedras, poeira, latas de tinta e estacas de madeira não me soa
propriamente harmônica. Torna-se algo inóspito pensar em dormir amparado por
galões de massa corrida, jantar escorado em ripas de pau d'arco, estudar
acomodado em travesseiros de cimento.
Daí, tiro férias. E me mudo.
É coisa de uns 10 a 15 dias.
Transfiro-me, de mochila e cuia, para a casa da namorada. Essa coisa de obras,
no fim, acaba se tornando interessante, penso. Entretanto, como não existe
jantar de graça, no combo está a necessidade de me adaptar aos excêntricos
requisitos de convivência da sogrinha querida.
Enquanto vou coexistindo com
essas questiúnculas familiares, o Flamengo vai construindo sua história na
aconchegante Copa dos Campeões, torneio recém-criado para a CBF fazer uma média
com as Federações do Norte-Nordeste. Esse ano as praças de Maceió e João Pessoa
são as agraciadas com os jogos do torneio, composto exclusivamente de jogos
eliminatórios, uma espécie de microcopa do Brasil reduzida a duas cidades e um
mês de duração.
O Flamengo, no embalo do tri, vai
passando o caterpilar em quem vê pela frente. A primeira vítima é o Bahia, logo
abatido com contundentes 4-2 e expelido no jogo seguinte com um 2-0 protocolar.
Depois, duas partidas nervosas e violentas com o Cruzeiro. Na primeira delas,
os mineiros ainda conseguem parar Pet e Edilson na porrada e segurar o 0-0, mas
no segundo jogo o rubro-negro, empurrado por uma torcida inflamada, enfia 3-0
em João Pessoa, placar que ficou muito, mas muito barato pelo que foi a
partida. E chega à Final, contra o São Paulo.
Fosse eu um desavisado crédulo,
poderia imaginar que o time paulista seria o favorito absoluto para a conquista
do título. Com efeito, os comandados de Nelsinho Baptista desenvolveram uma
campanha vistosa, com várias goleadas (4-2 e 5-0 no Sport, 2-0 e 4-1 no
Coritiba). Ademais, os jornais e tevês não se cansam de exaltar as qualidades
de um time formado por “estrelas” do quilate de Luís Fabiano, França, Belletti,
Gustavo Nery, Kaká e Rogério Ceni. Os três dias que precedem o primeiro jogo
são marcados por odes, poesias, loas e exaltações ao tricolor, tacitamente
enquadrado como o “virtual campeão”. Olho aquele exagero todo e sorrio. Gosto
disso.
Na primeira partida, sofro um
desfalque importante. Meu pai, companhia indispensável de jornadas flamengas,
está em viagem a serviço. Assim, resolvo assistir ao jogo na minha
“hospedagem”, evitando deslocamentos tardios e desnecessários. Tudo certo,
preparo minhas acomodações. A namorada prefere ir ler um livro, desinteressada
das coisas da bola. Tudo parece tranquilo, apesar da expectativa usual para a
decisão. Até que a sogrinha, em plena tarde de domingo, resolve se fechar no
quarto e tirar seu sagrado sono da tarde, não sem antes recomendar:
“Só não faça muito barulho, que
eu tenho sono leve”
Analiso a situação: o sono dela
realmente é leve, diáfano, é capaz de acordar com moscas zumbindo. Se cai uma
revista no chão, ela acorda. E de péssimo humor. Estudo a localização dos
elementos: a televisão está separada da cabeceira da cama por uma parede não
muito espessa. A vizinhança do apartamento é silenciosa ao extremo, de forma que
a única fonte de ruído será a tevê, que já tratei de trazer ao volume mínimo
somente com a mentalização dos efeitos de um possível desastre. Concluo: “ela
não pode acordar em nenhuma hipótese. Tô f..., ahn, tô lenhado”
Busco internalizar todo o
profundo conhecimento que reúno das coisas orientais, aqueles papos de budismo,
zen não sei o que, taoísmo, meditação, taichichuan, taekwondo (não, pera, isso
é luta...), enfim, vou precisar me erguer a um estado espiritual superior,
alguma coisa assim, mas não adianta muito. Fico mais nervoso com o ruído da
tevê do que com o jogo. O Luís Fabiano não me mete medo, o que me preocupa é o
berro do narrador. Baixo mais um pouco o volume.
E assim, no mais absoluto e pleno
silêncio, tevê murmurando, o jogo começa diante dos meus olhos. Partida de
estudos, times tocando bola, embora desde o início já tentem imprimir certa
velocidade. Ainda me permito sussurrar um comentário, “tomara que seja jogo de
poucos gols. Que o Flamengo faça um ou dois a zero, estará bom. E que não haja
muitas chances de gol”
Mal dá tempo de concluir o
raciocínio. Edilson abre o placar e na saída de bola o São Paulo empata. Um
pouco desconfortável com essa coisa de ficar em silêncio com o jogo comendo,
vou percebendo, já meio que em desespero, que a partida será daquelas francas,
abertas. Com efeito, as duas equipes se notabilizam por seus ataques
devastadores e suas defesas não muito sólidas. Mas o Flamengo, que nitidamente
desfruta do esmagador apoio da torcida paraibana, está mais à vontade e
controla as ações, fustigando a medíocre defesa sãopaulina. Não demora muito, o
jogo já está 3-1, e ainda estamos no primeiro tempo.
Intervalo. Olhos vigilantes,
perscruto as dependências do apartamento e suas redondezas. Tudo na santa paz.
A sogrinha ressona. Bebo umas duas águas. Metade do caminho está andado. Agora
é só manter. O Flamengo, o jogo. Eu, a paz na sala. Acho que consigo.
Mas o Flamengo insiste em
infernizar minha existência. Quando eu penso que o time vai administrar tocando
bola, Zagallo manda a equipe partir pra cima. E dá-lhe perder gols.
Ironicamente, na chance menos clara, um zagueiro paulista faz uma lambança e dá
um bico em cima de Edilson. A bola espirrada vai parar no gol. Flamengo 4-1,
ainda no comecinho do segundo tempo. Permito-me um soco no ar, agora já me
permito um sorriso. Penso, “pô, logo no melhor do ano estou aqui, sem poder
pular e cantar. Mas tá valendo, tá lindo”.
Acontece que agora Zagallo
resolve recuar o time e o São Paulo, animal ferido, avança sem pensar no
amanhã. O kamikaze dá certo e o Flamengo é acuado, vai pras cordas. Júlio César
começa a fechar o gol. Em silêncio, transpiro. Mas o pior acontece. E acontece
de novo. O time sofre dois gols rigorosamente iguais em um intervalo de dez
minutos. Escanteio no primeiro pau, adversário fechando de cabeça. A goleada
vira um apertado 4-3. E ainda faltam vinte minutos. A tensão se torna palpável,
sinto o ar denso, cortável a faca. Suo, transpiro. Tudo em silêncio.
1982 me vem na hora à cabeça. O
jogo que o Flamengo deixou de dar uma goleada histórica no São Paulo e quase
saiu do campo amargando um inacreditável empate. Aqui tá parecido, as
circunstâncias são semelhantes, espero que termine do mesmo jeito. A diferença
básica, que é o que vai definir a história desse confronto, é que, ao contrário
daquele longínquo jogo no Morumbi, o treinador flamengo manda o time voltar a
avançar. E o jogo se torna assim tenso ao extremo, aberto, amplamente
imprevisível.
Edilson, que está voando em
campo, avança pela ponta direita. Dá um rabo de vaca num contrário. Olha a
área, lá está somente seu desafeto Petkovic.
Então, mesmo sem ângulo, resolve chutar. Rogério Ceni defende o balaço, mas o
rebote espirra no horroroso zagueiro Rogério Pinheiro e vai parar dentro do
gol. O Flamengo faz 5-3.
É demais. Os olhos esbugalham,
meu organismo inteiro se crispa, os pelos se eriçam, os músculos se retesam,
sinto que todas as entranhas de minha existência clamam pela necessidade
biológica de um grito. É um desejo cujo controle não está mais circunscrito à
minha manifestação de vontade. Meu corpo, minha alma, minha essência irá
gritar, clamar, urrar a alegria de ser flamengo. Porque o Flamengo não pede
licença, não pechincha migalhas, não clama afeto. O Flamengo domina
verborrágico, sanguíneo, pulsante. O Flamengo se apossa e cria um transe, um
estado mental etéreo, fugidio, ao qual ninguém resiste indiferente. E o grito
simplesmente brota, jorra, ejacula-se caudaloso, ribomba num orgasmo febril e
intenso, do qual emerjo vazio, leve, suave, feliz.
O jogo, decidido após o quinto
tento, ainda corre com mais uma ou outra chance, porém mais nada de relevante
acontece. O Flamengo faz 5-3 e leva boa vantagem para a partida seguinte. A
transmissão se encerra com uma entrevista desanimada de Rogério Ceni, lombo
ardido, castigado por cinco chibatadas flamengas pela segunda vez em pouco mais
de um ano.
Exausto, adormeço.
Dia seguinte a sogra me
cumprimenta, sorridente. Pergunto, “dormiu bem?”, “sim, como uma pedra. Nem
parecia jogo”. Maroto, dou uma última olhada nas duas almofadas que me salvaram
a pele, travestidas de mordaça. Penso aos gargalhos, “sempre é bom ter um plano
de contingência”.
Tomo meu banho, arrumo-me, dou um
beijo na namorada e ganho meu rumo.