domingo, 9 de agosto de 2015

Alfarrábios do Melo

PRÓLOGO
O Flamengo está eliminado do Campeonato Brasileiro. A contundente derrota no Mineirão, não pelo placar, mas pelas circunstâncias do jogo, abre algumas feridas e acende certas polêmicas. Com efeito, o treinador Sebastião Lazaroni, pela primeira vez em cerca de um ano e meio de trabalho, tem seu trabalho expressivamente contestado. Os torcedores e jornalistas não entendem as extravagantes intervenções do treinador nas duas partidas eliminatórias contra os mineiros. Primeiro, no jogo do Maracanã, sacou o combativo meia Júlio César colocando o veloz atacante Paloma quando o rubro-negro vencia por 1-0 e controlava o jogo, o que fragilizou o meio e possibilitou ao adversário exercer a pressão que lhe fez chegar ao precioso empate. Depois, na partida do Mineirão, entrou com Sócrates como centroavante, sacando o especialista Kita, o que tirou o equilíbrio ofensivo do time, que se limitou a trocar passes no meio, sem a profundidade necessária para uma equipe que precisava da vitória.
Isso fez reverberar uma forte reação contra o treinador que, de personalidade forte, minimizou as críticas. Mas as nuvens apenas estão começando a se formar, perceptíveis apenas para os mais atentos.

PRIMEIRO ATO
A curtíssima “pré-temporada” do Flamengo, de 14 dias (com direito a pausa para o Carnaval), está longe de ser considerada tranquila. Lazaroni, pela primeira vez desde que iniciou seu trabalho no Flamengo, lá pelos idos de 1985, conta com praticamente todo o elenco à sua disposição. A única baixa ainda é Zico, que segue se recuperando da delicada cirurgia em seu joelho e deverá voltar somente no segundo semestre. Mas a presença de todos os craques cria um problema para o treinador, que costuma escalar equipes velozes, compactas e aguerridas, com farto uso de jovens da base. Lazaroni não disfarça sua má vontade com alguns veteranos (notadamente Sócrates), e também não parece muito propenso a deixar que muitos garotos que “roeram o osso” deixem de participar do filé. Sem habilidade, não consegue controlar um princípio de racha entre jovens e estrelas. O controverso meia Gilmar Popoca, outrora titular, dá entrevista bombástica reclamando que “os índios treinam, mas são os caciques que jogam”. A repercussão é devastadora. Gilmar desmente, explica, doura, mas não desfaz o mal-estar. Mesmo Zico, que costuma resolver internamente esse tipo de problema, chega para treinar com o rosto pintado, como indígena. Gilmar, que já andara batendo boca com Mozer dias antes, não resiste e é convencido a aceitar um empréstimo emergencial para a Ponte Preta, o que na prática significa o fim de sua passagem pelo Flamengo. Nem mesmo a chegada de Renato Gaúcho, contratado a pesado soldo junto ao Grêmio, parece aliviar o ambiente.
Enquanto isso, nos amistosos preparatórios para o Estadual, Lazaroni faz testes no time. Neles, Sócrates está barrado. Por Ailton.

SEGUNDO ATO
Termina o coletivo de sexta, apronto para o jogo contra a Portuguesa da Ilha, pela Taça Guanabara. Sócrates sai do campo caminhando, em silêncio. Entra no vestiário, tira as chuteiras e as joga no lixo. “Parei”, fala calmamente para Zé Carlos e Leandro, que inicialmente entendem se tratar de uma brincadeira. Toma seu banho e deixa a Gávea. Antes de sair, avisa “estou falando sério”. Sócrates não é mais jogador de futebol do Flamengo.
A decisão do Doutor é recebida com estupefação por dirigentes, jogadores, jornalistas. Mas Lazaroni, apesar do esforço, não consegue disfarçar a satisfação. “Direito dele. Fará falta, como qualquer jogador faria.”. “Pra mim, nunca foi craque”, exclama, deixando-se fotografar sorridente. A reação do treinador suscita um misto de descontentamento e mesmo revolta. Alguns líderes de Torcidas Organizadas começam a pregar abertamente a queda de Lazaroni, até porque o início flamengo no Estadual está longe de agradar. Após uma boa vitória contra o Bangu (1-0, em grande estreia oficial de Renato), o time é fragorosamente derrotado pelo desconhecido Porto Alegre, em Itaperuna (0-2, com direito a olé), ocasião que ensejou mais uma atordoante declaração de Lazaroni, dando conta que “temos que entender que só com nomes famosos não venceremos ninguém. Essa época já passou”.
O Flamengo, já sem Sócrates, ensaia uma reação, ao vencer Portuguesa e Cabofriense (2-0 e 3-0, respectivamente), mas perde Renato, com suspeita de fratura no pé direito, e volta a viver turbulências, quando Lazaroni resolve manter Adílio no banco, promovendo o jovem Zinho a titular.
Aliás, Adílio, que é o grande nome da vitória sobre o time de Cabo Frio, com dois gols, vai aos microfones e avisa, “agora não aceito mais a reserva”. A torcida, nesses jogos, segue cantando alegremente (ou nem tanto): “Fora Lazaroni”, “Fora burro”, “A-dí-lio, A-dí-lio”, “Só-cra-tes, Só-cra-tes”.
Os mais atentos começam a se preocupar. O ar está inflamável. Quase irrespirável.

TERCEIRO ATO
22 de março. Caio Martins, Niterói. O que, em uma circunstância normal, seria apenas um domingo tranquilo de jogo do Flamengo, se transforma em um verdadeiro espetáculo de terror. O time, apático, com pouca ou nenhuma movimentação e muito menos inspiração, faz sua pior partida em anos. O Americano, antes cauteloso, percebe o momento e passa a controlar a partida. Alguns jogadores rubro-negros parecem andar em campo. O empate vai se arrastando até que o ponta Amarildo arrisca um chute despretensioso. Cantarele (que substitui Zé Carlos, na seleção) aceita. O que se segue é um evento medieval. Não satisfeita em apenas vaiar e hostilizar a equipe e o treinador, os torcedores começam a jogar pedras no campo. Não saciados com as pedras, invadem o gramado, sem serem incomodados pelo policiamento deficiente. Alertados pelos jornalistas, os jogadores fogem rapidamente para os vestiários. Alguns, com menos sorte, são apedrejados. Cantarele sai escoltado, e por pouco não é linchado. Mozer chega a trocar bolachas com uns dois mais exaltados, “nunca vi isso na minha vida”, dirá depois. O campo é totalmente ocupado. Sem ter a quem xingar, os torcedores começam a brigar entre si. Após muita dificuldade, a chegada do reforço policial e algumas detenções protocolares, enfim a situação é controlada, felizmente sem vítimas fatais.
A situação de Lazaroni se torna insustentável. A diretoria resolve agir. É convocada uma Reunião.
Nessa reunião, estão presentes o Presidente, o VP de Futebol, o Diretor de Futebol, o Supervisor de Futebol, o representante dos jogadores (Zico) e um representante das Torcidas Organizadas. Após muita discussão, argumentos aqui e ali, define-se que Lazaroni será mantido. Mas não há unanimidade. Longe disso.
Ao final da entrevista, o presidente sai e, aos microfones, anuncia a permanência do treinador, “o Flamengo tem um projeto de longo prazo, não vai abrir mão dele por causa de um revés”

QUARTO ATO
O acanhado Nielsen Louzada, na Baixada Fluminense, é o próximo palco da agonia. Ao contrário do jogo de Niterói, dessa vez a polícia monta um ostensivo esquema de segurança, conseguindo isolar os jogadores da turba enfurecida que povoa as cercanias do estádio. Provavelmente há mais pessoas do lado de fora do que necessariamente alojadas nas arquibancadas. A esmagadora maioria de torcedores é rubro-negra. Mas o Flamengo, literalmente, está em campo como visitante. Hostilizado pelos próprios adeptos.
A atuação da equipe contra o pequeno Mesquita é deprimente. Além de apáticos, os jogadores agora estão nervosos. A bola queima. O time, confuso e desorganizado, cria pouco ou quase nada, e não é derrotado por causa da boa atuação de Cantarele. No fim, um 0-0 melancólico. Os torcedores dessa vez não conseguem invadir o campo, mas atiram moedas e cédulas nos jogadores. “Fora Marajás”, “Fora Lazaroni”, “Fora”. Há rumores de que o ônibus do time será emboscado no trajeto de volta, o que obriga o motorista a alterar o itinerário.
A diretoria, dessa vez, sequer cogita reunião. Lazaroni é mantido sem maior discussão.

QUINTO ATO
Maracanã, noite de sábado. O Flamengo escapa de uma goleada, ao empatar com o Botafogo em 0-0, graças à inoperância do ataque adversário. O time até melhora na segunda etapa e cria uma ou outra chance, mas a sensação é um misto de alívio e irritação. O presidente, ainda nos vestiários, afirma taxativamente: “Lazaroni não sai. Essa questão não está em discussão. Ele comanda o treino na segunda-feira”.
No dia seguinte, uma nova reunião é marcada. Dessa vez, apenas entre o Presidente e os VP's de Futebol, Finanças, Administração e outras eminências pardas. Dali, saem demitidos o próprio VP de Futebol, o Diretor de Futebol e toda a comissão técnica, inclusive Sebastião Lazaroni.
O Presidente, mais uma vez, vai aos microfones: “não está bom, os resultados estão mostrando. Tem que mudar tudo. Tudo. Faremos uma profunda reestruturação em todo o futebol”
Lazaroni, surpreso e magoado, tenta manter o equilíbrio, evita declarações mais controvertidas, tenta manter o silêncio, embora demonstre visivelmente sua frustração. Limpa os armários, despede-se dos jogadores, entra no carro e cruza os portões da Gávea, a rumo de casa.
Nunca mais Sebastião Lazaroni trabalhará no Flamengo.

SEXTO ATO
A diretoria reúne a imprensa e anuncia as mudanças emergenciais no Departamento de Futebol. Na entrevista, divulga-se que o Flamengo está em busca de um treinador renomado e capaz de conduzir a reformulação no setor. O nome mais cotado é Parreira, que chega a ser sondado, embora esteja trabalhando no Oriente Médio. Outros nomes ventilados são Telê Santana e mesmo Cesar Luis Menotti, arroz de festa em toda especulação que envolva um novo treinador para o Flamengo. Enquanto isso, o auxiliar Carlinhos assumirá a equipe nos jogos finais da Taça Guanabara. A ideia é estrear o novo treinador já no início da Taça Rio.
Enquanto a diretoria bate cabeça atrás de um novo nome, Carlinhos dá nova cara à equipe. Logo de cara, o time, que não marcava gols há 270 minutos, enfia 5-0 no Campo Grande, jogando o fino da bola. Depois, algumas boas partidas e uma elogiada atuação no 0-0 contra o Vasco, em que o time perde várias oportunidades de gol. Tímido e avesso a badalações, Carlinhos cumpre seu trabalho de interino e sai de cena invicto. Recupera o prestígio perdido na desastrosa passagem de 1983 e retorna à função de auxiliar visto com outros olhos. Cedo ou tarde, ganhará nova chance.
Depois de muito tentar, a diretoria enfim acena com o nome mais acessível. Antonio Lopes é demitido do Fluminense e acerta contrato com o Flamengo. Irá, como previsto, dirigir o time a partir da Taça Rio.
Membros da diretoria vão aos jornais e afirmam: “nossa opção pelo Antonio Lopes vem da necessidade de impor linha dura. Os jogadores precisam de comando”. Fica a dúvida se a filosofia de linha-dura pautou a vinda de Lopes ou se o rígido Lopes chegou porque era o único disponível.

EPÍLOGO
A passagem de Antonio Lopes dura pouco menos de cinco meses. É marcada por uma série de polêmicas, como a dispensa inapelável de Adílio, a responsabilização direta a Leandro pela perda do título no Estadual ("o erro dele nos custou a taça", soltou Lopes aos jornais), a barração da dupla de zaga titular para a estreia contra o São Paulo no Brasileiro (os gols da vitória paulista decorreram de falhas grotescas do miolo de zaga que atuou), a tumultuada excursão ao México após o Estadual (em que um racha da diretoria quase redunda na sua demissão antes mesmo do retorno ao país), entre outras polêmicas (como a esdrúxula decisão da diretoria de excursionar dias antes da Final do Estadual, fazendo com que um time cansado de viagem encarasse o triangular decisivo).
De bom, a volta de Zico e um arranjo tático interessante, com a efetivação de Bebeto como “falso nove”, arranjo que seria aprimorado mais tarde no Campeonato Brasileiro.
A saída de Lopes enseja a efetivação de Carlinhos no comando técnico. Entretanto, passa-se um turno inteiro do Brasileiro e o time, a rigor, só conseguiu uma boa atuação, a sofrida vitória contra o Vasco (2-1, gol nos acréscimos). O elenco possui vários e severos focos de desagregação, Zico, que seria um elemento aglutinador, continua às voltas com sucessivas lesões e já fala em parar, as torcidas organizadas, que andaram quietas, já começam a se manifestar ameaçando reviver os dias de terror de março, o próprio Carlinhos é tido como frágil e despreparado, e a própria diretoria, resignada diante da incapacidade de trazer um nome consagrado a curto prazo, esboça uma nova reestruturação para o ano seguinte.
Diante de um quadro tão desolador, muitos flamengos apenas esperam que o ano termine logo.

Um ano, até então, para se esquecer.