PRÓLOGO
O Flamengo está eliminado do
Campeonato Brasileiro. A contundente derrota no Mineirão, não pelo placar, mas
pelas circunstâncias do jogo, abre algumas feridas e acende certas polêmicas.
Com efeito, o treinador Sebastião Lazaroni, pela primeira vez em cerca de um
ano e meio de trabalho, tem seu trabalho expressivamente contestado. Os
torcedores e jornalistas não entendem as extravagantes intervenções do
treinador nas duas partidas eliminatórias contra os mineiros. Primeiro, no jogo
do Maracanã, sacou o combativo meia Júlio César colocando o veloz atacante
Paloma quando o rubro-negro vencia por 1-0 e controlava o jogo, o que
fragilizou o meio e possibilitou ao adversário exercer a pressão que lhe fez
chegar ao precioso empate. Depois, na partida do Mineirão, entrou com Sócrates
como centroavante, sacando o especialista Kita, o que tirou o equilíbrio
ofensivo do time, que se limitou a trocar passes no meio, sem a profundidade
necessária para uma equipe que precisava da vitória.
Isso fez reverberar uma forte
reação contra o treinador que, de personalidade forte, minimizou as críticas.
Mas as nuvens apenas estão começando a se formar, perceptíveis apenas para os
mais atentos.
PRIMEIRO ATO
A curtíssima “pré-temporada” do
Flamengo, de 14 dias (com direito a pausa para o Carnaval), está longe de ser
considerada tranquila. Lazaroni, pela primeira vez desde que iniciou seu
trabalho no Flamengo, lá pelos idos de 1985, conta com praticamente todo o
elenco à sua disposição. A única baixa ainda é Zico, que segue se recuperando
da delicada cirurgia em seu joelho e deverá voltar somente no segundo semestre.
Mas a presença de todos os craques cria um problema para o treinador, que
costuma escalar equipes velozes, compactas e aguerridas, com farto uso de
jovens da base. Lazaroni não disfarça sua má vontade com alguns veteranos
(notadamente Sócrates), e também não parece muito propenso a deixar que muitos
garotos que “roeram o osso” deixem de participar do filé. Sem habilidade, não
consegue controlar um princípio de racha entre jovens e estrelas. O controverso
meia Gilmar Popoca, outrora titular, dá entrevista bombástica reclamando que
“os índios treinam, mas são os caciques que jogam”. A repercussão é
devastadora. Gilmar desmente, explica, doura, mas não desfaz o mal-estar. Mesmo
Zico, que costuma resolver internamente esse tipo de problema, chega para
treinar com o rosto pintado, como indígena. Gilmar, que já andara batendo boca
com Mozer dias antes, não resiste e é convencido a aceitar um empréstimo
emergencial para a Ponte Preta, o que na prática significa o fim de sua
passagem pelo Flamengo. Nem mesmo a chegada de Renato Gaúcho, contratado a
pesado soldo junto ao Grêmio, parece aliviar o ambiente.
Enquanto isso, nos amistosos
preparatórios para o Estadual, Lazaroni faz testes no time. Neles, Sócrates
está barrado. Por Ailton.
SEGUNDO ATO
Termina o coletivo de sexta,
apronto para o jogo contra a Portuguesa da Ilha, pela Taça Guanabara. Sócrates
sai do campo caminhando, em silêncio. Entra no vestiário, tira as chuteiras e
as joga no lixo. “Parei”, fala calmamente para Zé Carlos e Leandro, que
inicialmente entendem se tratar de uma brincadeira. Toma seu banho e deixa a
Gávea. Antes de sair, avisa “estou falando sério”. Sócrates não é mais jogador
de futebol do Flamengo.
A decisão do Doutor é recebida
com estupefação por dirigentes, jogadores, jornalistas. Mas Lazaroni, apesar do
esforço, não consegue disfarçar a satisfação. “Direito dele. Fará falta, como
qualquer jogador faria.”. “Pra mim, nunca foi craque”, exclama, deixando-se fotografar
sorridente. A reação do treinador suscita um misto de descontentamento e mesmo
revolta. Alguns líderes de Torcidas Organizadas começam a pregar abertamente a
queda de Lazaroni, até porque o início flamengo no Estadual está longe de
agradar. Após uma boa vitória contra o Bangu (1-0, em grande estreia oficial de
Renato), o time é fragorosamente derrotado pelo desconhecido Porto Alegre, em
Itaperuna (0-2, com direito a olé), ocasião que ensejou mais uma atordoante
declaração de Lazaroni, dando conta que “temos que entender que só com nomes
famosos não venceremos ninguém. Essa época já passou”.
O Flamengo, já sem Sócrates,
ensaia uma reação, ao vencer Portuguesa e Cabofriense (2-0 e 3-0,
respectivamente), mas perde Renato, com suspeita de fratura no pé direito, e
volta a viver turbulências, quando Lazaroni resolve manter Adílio no banco,
promovendo o jovem Zinho a titular.
Aliás, Adílio, que é o grande
nome da vitória sobre o time de Cabo Frio, com dois gols, vai aos microfones e
avisa, “agora não aceito mais a reserva”. A torcida, nesses jogos, segue
cantando alegremente (ou nem tanto): “Fora Lazaroni”, “Fora burro”, “A-dí-lio,
A-dí-lio”, “Só-cra-tes, Só-cra-tes”.
Os mais atentos começam a se
preocupar. O ar está inflamável. Quase irrespirável.
TERCEIRO ATO
22 de março. Caio Martins,
Niterói. O que, em uma circunstância normal, seria apenas um domingo tranquilo
de jogo do Flamengo, se transforma em um verdadeiro espetáculo de terror. O
time, apático, com pouca ou nenhuma movimentação e muito menos inspiração, faz
sua pior partida em anos. O Americano, antes cauteloso, percebe o momento e
passa a controlar a partida. Alguns jogadores rubro-negros parecem andar em
campo. O empate vai se arrastando até que o ponta Amarildo arrisca um chute
despretensioso. Cantarele (que substitui Zé Carlos, na seleção) aceita. O que
se segue é um evento medieval. Não satisfeita em apenas vaiar e hostilizar a
equipe e o treinador, os torcedores começam a jogar pedras no campo. Não
saciados com as pedras, invadem o gramado, sem serem incomodados pelo
policiamento deficiente. Alertados pelos jornalistas, os jogadores fogem
rapidamente para os vestiários. Alguns, com menos sorte, são apedrejados.
Cantarele sai escoltado, e por pouco não é linchado. Mozer chega a trocar bolachas
com uns dois mais exaltados, “nunca vi isso na minha vida”, dirá depois. O
campo é totalmente ocupado. Sem ter a quem xingar, os torcedores começam a
brigar entre si. Após muita dificuldade, a chegada do reforço policial e
algumas detenções protocolares, enfim a situação é controlada, felizmente sem
vítimas fatais.
A situação de Lazaroni se torna
insustentável. A diretoria resolve agir. É convocada uma Reunião.
Nessa reunião, estão presentes o
Presidente, o VP de Futebol, o Diretor de Futebol, o Supervisor de Futebol, o
representante dos jogadores (Zico) e um representante das Torcidas Organizadas.
Após muita discussão, argumentos aqui e ali, define-se que Lazaroni será
mantido. Mas não há unanimidade. Longe disso.
Ao final da entrevista, o
presidente sai e, aos microfones, anuncia a permanência do treinador, “o
Flamengo tem um projeto de longo prazo, não vai abrir mão dele por causa de um
revés”
QUARTO ATO
O acanhado Nielsen Louzada, na
Baixada Fluminense, é o próximo palco da agonia. Ao contrário do jogo de
Niterói, dessa vez a polícia monta um ostensivo esquema de segurança,
conseguindo isolar os jogadores da turba enfurecida que povoa as cercanias do
estádio. Provavelmente há mais pessoas do lado de fora do que necessariamente
alojadas nas arquibancadas. A esmagadora maioria de torcedores é rubro-negra.
Mas o Flamengo, literalmente, está em campo como visitante. Hostilizado pelos
próprios adeptos.
A atuação da equipe contra o
pequeno Mesquita é deprimente. Além de apáticos, os jogadores agora estão nervosos.
A bola queima. O time, confuso e desorganizado, cria pouco ou quase nada, e não
é derrotado por causa da boa atuação de Cantarele. No fim, um 0-0 melancólico.
Os torcedores dessa vez não conseguem invadir o campo, mas atiram moedas e
cédulas nos jogadores. “Fora Marajás”, “Fora Lazaroni”, “Fora”. Há rumores de
que o ônibus do time será emboscado no trajeto de volta, o que obriga o
motorista a alterar o itinerário.
A diretoria, dessa vez, sequer
cogita reunião. Lazaroni é mantido sem maior discussão.
QUINTO ATO
Maracanã, noite de sábado. O
Flamengo escapa de uma goleada, ao empatar com o Botafogo em 0-0, graças à
inoperância do ataque adversário. O time até melhora na segunda etapa e cria
uma ou outra chance, mas a sensação é um misto de alívio e irritação. O
presidente, ainda nos vestiários, afirma taxativamente: “Lazaroni não sai. Essa
questão não está em discussão. Ele comanda o treino na segunda-feira”.
No dia seguinte, uma nova reunião
é marcada. Dessa vez, apenas entre o Presidente e os VP's de Futebol, Finanças,
Administração e outras eminências pardas. Dali, saem demitidos o próprio VP de
Futebol, o Diretor de Futebol e toda a comissão técnica, inclusive Sebastião
Lazaroni.
O Presidente, mais uma vez, vai
aos microfones: “não está bom, os resultados estão mostrando. Tem que mudar
tudo. Tudo. Faremos uma profunda reestruturação em todo o futebol”
Lazaroni, surpreso e magoado,
tenta manter o equilíbrio, evita declarações mais controvertidas, tenta manter
o silêncio, embora demonstre visivelmente sua frustração. Limpa os armários,
despede-se dos jogadores, entra no carro e cruza os portões da Gávea, a rumo de
casa.
Nunca mais Sebastião Lazaroni
trabalhará no Flamengo.
SEXTO ATO
A diretoria reúne a imprensa e
anuncia as mudanças emergenciais no Departamento de Futebol. Na entrevista,
divulga-se que o Flamengo está em busca de um treinador renomado e capaz de
conduzir a reformulação no setor. O nome mais cotado é Parreira, que chega a
ser sondado, embora esteja trabalhando no Oriente Médio. Outros nomes
ventilados são Telê Santana e mesmo Cesar Luis Menotti, arroz de festa em toda
especulação que envolva um novo treinador para o Flamengo. Enquanto isso, o
auxiliar Carlinhos assumirá a equipe nos jogos finais da Taça Guanabara. A
ideia é estrear o novo treinador já no início da Taça Rio.
Enquanto a diretoria bate cabeça
atrás de um novo nome, Carlinhos dá nova cara à equipe. Logo de cara, o time,
que não marcava gols há 270 minutos, enfia 5-0 no Campo Grande, jogando o fino
da bola. Depois, algumas boas partidas e uma elogiada atuação no 0-0 contra o
Vasco, em que o time perde várias oportunidades de gol. Tímido e avesso a
badalações, Carlinhos cumpre seu trabalho de interino e sai de cena invicto.
Recupera o prestígio perdido na desastrosa passagem de 1983 e retorna à função
de auxiliar visto com outros olhos. Cedo ou tarde, ganhará nova chance.
Depois de muito tentar, a
diretoria enfim acena com o nome mais acessível. Antonio Lopes é demitido do
Fluminense e acerta contrato com o Flamengo. Irá, como previsto, dirigir o time
a partir da Taça Rio.
Membros da diretoria vão aos
jornais e afirmam: “nossa opção pelo Antonio Lopes vem da necessidade de impor
linha dura. Os jogadores precisam de comando”. Fica a dúvida se a filosofia de
linha-dura pautou a vinda de Lopes ou se o rígido Lopes chegou porque era o
único disponível.
EPÍLOGO
A passagem de Antonio Lopes dura
pouco menos de cinco meses. É marcada por uma série de polêmicas, como a dispensa
inapelável de Adílio, a responsabilização direta a Leandro pela perda do título
no Estadual ("o erro dele nos custou a taça", soltou Lopes aos jornais), a barração da dupla de zaga
titular para a estreia contra o São Paulo no Brasileiro (os gols da vitória
paulista decorreram de falhas grotescas do miolo de zaga que atuou), a
tumultuada excursão ao México após o Estadual (em que um racha da diretoria
quase redunda na sua demissão antes mesmo do retorno ao país), entre outras
polêmicas (como a esdrúxula decisão da diretoria de excursionar dias antes da
Final do Estadual, fazendo com que um time cansado de viagem encarasse o
triangular decisivo).
De bom, a volta de Zico e um
arranjo tático interessante, com a efetivação de Bebeto como “falso nove”,
arranjo que seria aprimorado mais tarde no Campeonato Brasileiro.
A saída de Lopes enseja a
efetivação de Carlinhos no comando técnico. Entretanto, passa-se um turno
inteiro do Brasileiro e o time, a rigor, só conseguiu uma boa atuação, a
sofrida vitória contra o Vasco (2-1, gol nos acréscimos). O elenco possui
vários e severos focos de desagregação, Zico, que seria um elemento
aglutinador, continua às voltas com sucessivas lesões e já fala em parar, as
torcidas organizadas, que andaram quietas, já começam a se manifestar ameaçando
reviver os dias de terror de março, o próprio Carlinhos é tido como frágil e
despreparado, e a própria diretoria, resignada diante da incapacidade de trazer
um nome consagrado a curto prazo, esboça uma nova reestruturação para o ano
seguinte.
Diante de um quadro tão
desolador, muitos flamengos apenas esperam que o ano termine logo.
Um ano, até então, para se
esquecer.