Saudações flamengas a todos.
E Carlinhos se foi. Nunca é tarde para
reverenciar um dos maiores nomes da história do Flamengo, então deixo aqui
minha homenagem. Escrevi alguns textos tendo o Violino como personagem
principal, mas tenho especial afeição por este, que reproduzo agora. Vá em paz,
Carlinhos!
* * *
1970.
É véspera do jogão da Semifinal da Copa,
entre Brasil e Uruguai. Ansiedade, expectativa, medo de 50, muita coisa passa
pela cabeça de cada brasileiro. Mas, no meio desse turbilhão, uma partida
amistosa é marcada para o Maracanã. Uma despedida. Um rito de passagem.
Há seis meses, Carlinhos encerrou sua carreira de
jogador de futebol. O calendário cada vez mais apertado somente lhe permite a
justa despedida dos gramados num vácuo, durante o Mundial. Pouco importa, tanto
melhor. Carlinhos sempre foi avesso a badalações, aos holofotes. O essencial é
o reconhecimento, o gesto.
Impossível deixar de se perder no meio de
lembranças, impossível não recordar 1954, quando, ainda moleque, recebe as
chuteiras de um ícone, um ídolo, o defensor Biguá, um dos jogadores mais
queridos da história do Flamengo, que encerra sua carreira aos prantos,
entregando àquele jovem promissor seu instrumento de trabalho. Um ritual que
indica continuidade.
E Carlinhos mostra-se, desde cedo, à altura da
responsabilidade que lhe é imposta. Sereno, sem jamais erguer a voz, conquista
seu espaço com jeito, jogando bola, mostrando com os pés do que é capaz. Atua
como médio (precursor do volante), participando da saída de bola e fazendo a
ligação com o ataque. Possui um domínio de bola desconcertante, seus pés
parecem de veludo. Os passes, sempre precisos, seguem a cadência que as
circunstâncias exigem. Flamengo satisfeito com o resultado, a bola corre
indolente, preguiçosa, macia. Flamengo ansiando por um gol redentor, o jogo
passa a ser cortante, vertical, feérico. Mas sempre harmônico, apurado, jamais
apressado, nunca forçado. Como um violino, a alma de uma orquestra.
Seguem as lembranças. Uma década como titular
absoluto do Flamengo. Não é fácil ser titular do Flamengo. Muito menos durante
10 anos. E Carlinhos jamais como a principal estrela, o grande craque, o nome
por quem se arrancam suspiros. Vê Dida, Henrique, Gerson, até Babá ocuparem-se
do papel de xodós e ídolos. Mas, tire o Violino da equipe. Logo começa a
bagunça, o caos, a pelada. Sem o Violino, a orquestra rubro-negra se torna um
amontoado de panelas batendo.
Os títulos, as glórias. Carlinhos vive a alegria de
ser rubro-negro em sua essência, erguendo taças e mais taças. O sofrido Carioca
de 1963 no Fla-Flu do século, o surpreendente título de 1965, conquistado com
uma equipe incrivelmente limitada, ou o Rio-São Paulo de 1961 abastecendo uma
máquina de fazer gols, um Sul-Americano extraoficial em 1959, outro torneio
continental em 1961. Mas, acima de todos esses troféus, angaria o respeito e a
reverência do torcedor flamengo.
A voz serena, suave, a incapacidade de tomar a bola
através de carrinhos toscos. Desarmes furtivos, um punguista da bola. Raramente
apela pra faltas, daí ter ganho o Belfort Duarte (nunca foi expulso). Líder
nato, impõe-se pelo exemplo, pela postura sempre reta, a afabilidade, a
capacidade de angariar respeito e amigos.
Mas isso tudo agora é passado, são lembranças.
Chega o dia da despedida, o momento em que o Violino oficialmente deixará os
campos. Carlinhos veste traje de gala, o Manto Sagrado, calções brancos e
meiões rubro-negros, fardamento que honrou durante mais de dez anos. Não, o
Violino não jogará. Sua despedida será exatamente da mesma forma que seu
início. Uma cerimônia de passagem de chuteiras. Continuidade.
E lá está o jovem herdeiro, a maior promessa das
categorias de base. Um garoto muito bom de bola, personalidade forte,
descendente de portugueses, família de craques, um tal Arthur. Mas é mirrado,
franzino, talvez demais. Daí chamarem-no um arthurzico, ou Zico. Bem, de
qualquer forma, se fizer metade da obra de Carlinhos estará de bom tamanho...
E é ao tal Zico que Carlinhos entrega seu valioso
par de chuteiras. Aplausos calorosos, algumas lágrimas até. Nome gritado. Não,
o templo Maracanã não está lotado. Melhor assim. Intimista. Como o Violino
gosta.
O jogo? O Flamengo de Yustrich, atual campeão da
Taça Guanabara, derrota uma Seleção Carioca, 1-0. Mas isso agora não importa
muito. Carlinhos, o Violino, entra definitivamente na história rubro-negra e
vai curtir a nova etapa de sua vida, seus novos desafios, dessa vez longe dos
gramados. Ao que tudo indica.
Pois
o que nem Carlinhos, nem a Nação Rubro-Negra ainda sabem, é que essa longa e
vitoriosa trajetória ainda está apenas no início...
Texto
originalmente publicado no Blog FlamengoNet em 15 de fevereiro de 2011.