Resolvi assistir na
Band.
Meio cansado dos
exageros verborrágicos e das sistemáticas elegias à irrelevância praticadas
pela equipe da Vênus Platinada e sem paciência para aturar os torcedores de
microfone que comporiam a equipe local de transmissão do canal pago, preferi
trazer para o canal menos cotado. Ao menos o narrador faz o estilão
low-profile, da escola do Luciano do Valle. E o comentarista, o rechonchudo
ex-goleiro corintiano, tem o mérito de não se sentir muito à vontade comentando
jogos, o que o faz intervir pouco nas transmissões, mantendo-as assim em um
nível tolerável.
Dois dedinhos do jogo
em que vencemos o freguês no nosso salão de festas, o Couto Pereira: o time
evolui a olhos, está sensivelmente se arrumando, começando a se movimentar de
uma forma minimamente similar à de uma equipe que possui um esquema treinado. Cristóvão
é bom treinador, tem que deixar trabalhar. Como gostam de falar os modernos,
atuamos por uma bola, alcançamos o tento e depois foi compactar e resistir às
investidas do adversário e da arbitragem cretina. O que é isso de seis minutos?
Sobe logo a placa “até empatar”. É mais direto e evita ficarmos discutindo
suposições sobre algo que já está escancarado. Aliás, Flamengo virou vitrine de
árbitro paulista? Quem quiser, poderá ver que o time não passa três jogos sem
um paulista no apito. E vêm em rodízio. Um opera, descansa, vem outro. Cadê a
diretoria? Cadê o murro na mesa? Até quando?
Voltando à Band.
Lá pelos 30 do segundo
tempo, eles encerram uma espécie de enquete. Se minha limitada capacidade de
compreensão não foi afetada, os telespectadores podem ligar, mandar recado em
rede social, enfim, escolher de alguma forma aquele que entendem ter sido o
melhor jogador da partida. Daí, perto do final, é divulgado o resultado.
Pois ganhou o Márcio
Araújo.
Márcio Araújo é o que
se pode chamar de volante-volante. Jogador anos 90, dentro do gramado somente
consegue conjugar os verbos “marcar, pegar, bater, cobrir, fechar, matar,
correr”. À bola, dedica um tratamento formal, solene, de uma humildade que
chega a comover. É como se lhe pedisse desculpas pelas lesões impingidas. Mas o
pior é que até simpatizo com o rapaz, reconheço. Há dignidade no seio de toda
aquela ruindade. Nosso volante não entende de bola, e sabe disso. Tem plena
noção de sua falta de jeito, o que demonstra ao sair quase automaticamente ao
encalço do adversário a quem acabou de presentear, como quem prevê que a bola,
em retaliação aos maus tratos, tomará invariavelmente um rumo distinto do
desejado. Mas, sem um ai, sem um cabelinho pintado, sem uma fotinho, sem um
sapatinho colorido, nosso herói segue tirando de sua transpiração o seu
sustento. Corre, pega, marca. Sofre. Faz sofrer. Da bola, mantém respeitosa
distância. Às vezes a golpeia. Pobre da bola.
Então, senhoras e
senhores, há um simbolismo na escolha do bravo Marujo como o nome do jogo. Sim,
ele correu, pegou, marcou. Ajudou a trancar a porta da defesa. Trabalhou seu
jogo operário que manteve os paranaenses a uma certa distância do nosso “bastião
inexpugnável”. Suou a litros. Enfim, pode-se dizer que fez, sim, uma boa
partida, dentro daquilo que é capaz de entregar.
E qual o problema,
afinal de contas?
Ora, senhoras e
senhores, essa é a questão. Quando uma partida se desenvolve de uma forma que
seu grande nome é justamente um atleta que pratica um jogo tão divorciado
daquilo que concebemos ser o futebol, algo está errado. O nosso futebol nativo
parece doente, revestido de uma absoluta falta de perspectiva técnica, tática,
enfim.
De fato, o jogo de hoje
foi uma sessão de linchamento. A bola, sempre a pobre da bola, foi xingada,
cuspida, atirada às feras, retalhada, lanhada, arrebentada. Um desavisado
espectador que não estivesse movido com o combustível da devoção a uma das
equipes certamente teria adormecido, ninado gostoso. A ruindade do espetáculo
visto em campo foi quase humorística. Inverossímil. Jogador matando bola no
pescoço, caindo sentado, errando lateral.
Aos apressados. Não,
isso não é uma deplorável condenação ao time do Flamengo. Uns dizem, “o time é
ruim”. Lógico que, em termos absolutos, o time é horroroso. Mas, em termos
relativos, está dentro do que se pratica em uma primeira divisão do nosso
futebol brasileiro. Anda se reforçando, e, a se confirmar a calmaria que
aparenta irromper no horizonte, pode até pensar grande. Mesmo jogando algo não muito
diferente do visto hoje, esse time do Flamengo é capaz de ir mais longe do que o
mais surreal vaticínio poderia ser capaz de cravar.
Porque essa sessão de
maus-tratos é universal. Jogos medíocres e inassistíveis pululam aos cachos
semana sim e também. Com Flamengo, sem Flamengo. Dos dez jogos semanais, uns
oito ou nove seguem roteiro similar ao espancamento de hoje. Quase tudo o que é
time tem lá seu Márcio Araújo em campo. Outro dia vimos uma Copa do Mundo, a
vanguarda do futebol aqui, na nossa porta. Algumas seleções jogando um futebol
interessantíssimo, colaborativo, talentoso, ofensivo. Jogos espetaculares, ou
no mínimo vistosos. Nenhum gênio ou craque fora de série (exceto o Messi,
talvez o Robben), mas o conceito de coletividade e da competência técnica
levado a dimensões bastante agradáveis aos olhos dos espectadores.
Aqui, na nossa porta.
Para aprender no amor. Ou até na dor dos sete no lombo.
Mas aqui ainda continuamos
correndo, pegando, marcando.