Saudações flamengas a todos,
O texto de hoje atende a uma solicitação do colega Gabriel. Deveria ter subido semana passada, o que não aconteceu em função de problemas que me fugiram ao controle. Enfim, espero que gostem. Boa leitura.
1969.
Dia de jogão.
Parece que toda a Guanabara resolveu se enfiar dentro do Maracanã. Sensação que não cabe vivalma no estádio, que espera ansioso o abrir das cortinas, enquanto se dedica a entoar cânticos, palmas, vaias recíprocas, ou simplesmente arfar tenso acompanhando o andar de um relógio que parece estacado. A tensão é vívida, palpável, mas os movimentos quase coreografados de jornalistas, funcionários e curiosos em geral, que formigam no meio de um campo envolto por um arco de cimento empanturrado de uma gente barulhenta parecem seguir certo roteiro. Mesmo que de suspense.
Até que se dá o imponderável.
E o imprevisível aparece do nada, talvez tenha vindo de cima, ou emergido de algum buraco. Fato é que ele agora está lá, impávido, altivo, algo arrogante, desfilando sua brilhante penugem negra no meio do sagrado gramado do Maracanã. A ave, pano negro e vermelho amarrado a um dos pés, parece sentir-se inteiramente à vontade enquanto vai reconhecendo seu terreno.
“É urubu, é urubu!”, começa a pipocar um estrondoso grito do lado direito das arquibancadas.
Natural. Os rivais cariocas, especialmente os botafogos, rivais de hoje, já há algum tempo cultivam a mania de impingir aos flamengos a pecha depreciativa de “urubus”, tentando desqualificar o caráter popular da nação rubro-negra.
Ignorando olimpicamente o alarido ao seu redor, o urubu segue saçaricando pelo campo. Desconfiados e atônitos, os funcionários do estádio limitam-se a tentar escoltar a ave enquanto ruminam alguma forma de captura. E o bicho vai sambolejando de bico em pé, tocando sua marra, negaceando e ensaiando uma ginga a cada movimento humano suspeito. Daqui a pouco, nosso mestre-sala, já meio enfadado do espetáculo, aproxima-se da linha lateral e sai de cena, não sem antes desmoralizar, com uma corrida e um reboleteio, um pobre gandula que sonhou sair de heroi no jornal. Os mais atentos, ou fantasiosos, juram que o distinto urubu, ao se despedir, ainda terá abaixado o bico num meneio e recolhido as asas, esperando os aplausos. Outros cravam, em sua certeza etílica, que o pássaro terá, ele mesmo, juntado o pano rubro-negro e nele se enrolado, descendo assim as escadas ao vestiário. Entretanto, causos e histórias à parte, dá-se algo ainda mais surreal, fantástico, sensacional. É que a metade esquerda do Maracanã, até então dividida entre apreensão (desconfiavam de uma gozação preparada pelo rival) e curiosidade, após deleitar-se em risos e urros, resolve, na magia de sua espontaneidade, o inimaginável, o impensável, o inconcebível.
“É URUBU! É URUBU! É URUBU!”, e o trovão vindo do lado vermelho e preto rebenta na orelha da massa, faz o cimento tremer e anuncia a toda uma cidade e a um país:
Após 74 anos de vida, o Flamengo enfim adota um mascote.
Retrocedendo.
Final dos anos 1930.
Procurando popularizar ainda mais a cobertura do futebol carioca em suas páginas esportivas, o Jornal dos Sports encomenda ao cartunista argentino Lorenzo Molas a criação de mascotes para os cinco grandes clubes cariocas. Daí surgem o neurastênico e temperamental Pato Donald personificando o Botafogo, o lusitano Almirante destinado ao Vasco, o fidalgo e aristocrático Cartola ostentando as cores do Fluminense e (na mais bem sucedida criação) o encarnado Diabo defendendo o América.
O Flamengo torna-se representado pelo Marinheiro Popeye que, na visão do cartunista, identifica-se com o clube na medida em que consegue reverter as mais complicadas atribulações, além de se tratar de figura intrinsecamente ligada ao mar. Na teoria, tudo perfeito, tudo se encaixa.
O Popeye é razoavelmente bem recebido. A figura do marinheiro em vermelho e preto é maciçamente divulgada em doses quase diárias pelo jornal promotor da ideia (um dos mais populares do Rio). Ademais, flâmulas, cartazes, folhetos, encartes e outras papeladas com o simpático marujo se espraiam por tudo o que é canto. A recém-criada Charanga Rubro-Negra incorpora a musiquinha do espinafre entre as marchinhas que entoa jogo sim, jogo também. Assim, é inegável o esforço de divulgação e disseminação da “marca” Popeye ao lado do Flamengo.
O grande momento do mascote ocorre na semana da final do Campeonato de 1944 (o do primeiro tri). A diretoria do Flamengo manda fazer painéis gigantescos, com os quais inunda os arredores da Gávea. Em um deles, o Popeye está sentado preguiçosamente sobre o Pato Donald e, enquanto esmaga o bicho, solta “até sentado ganhei esse campeonato” (resposta retumbante à provocação do jogo do “senta”, acontecido durante a temporada). Outro painel mostra o marinheiro, três dedos em riste, bradando “tricampeão”. Em mais um, o Popeye está de braços dados com a “miss campeonato”, tripudiando “essa eu já ganhei”. Todos os painéis são instalados ANTES da partida decisiva contra o Vasco, na Gávea. No dia da decisão, momentos antes da entrada das equipes em campo, um boneco em “tamanho natural” do Popeye adentra o gramado de braços dados com uma bela moça vestida de noiva, emulando uma representação “real” do painel da miss campeonato. Valido marca, o Flamengo vence, é tri e Popeye é tido como um símbolo da sorte.
Contudo, nem mesmo sendo reconhecido como uma personagem de bons fluidos o Popeye é realmente adotado pela massa flamenga. O torcedor comum, escabriado com essa história de ter um símbolo escolhido por outros, e ainda mais uma personagem de origem americana, simplesmente ignora e, de forma inconsciente, rejeita a ideia de associar o Flamengo a uma figura criada em um escritório provavelmente refrigerado. O Popeye, assim, ainda vai acompanhando o clube, mais por conta da insistência do jornal que o inspirou, mas aos poucos irá caindo em desuso. Os títulos dos anos 60 ensaiam uma tímida retomada, mas o “jogo do urubu” em 1969 (em que, além de tudo, o Flamengo quebra um incômodo tabu e derrota o Botafogo por 2-1) coloca uma definitiva e assertiva pá de cal na ideia do Popeye.
* * *
Percebendo a força do que ocorrera no Maracanã, o cartunista Henfil cria, em suas tirinhas, a série Urubu, onde o Flamengo é personificado por várias figuras populares (o negão, o favelado, a própria ave). A arte de Henfil ajuda a popularizar o Urubu como elemento ligado ao Flamengo ao longo dos anos 70, e a associação da ave como elemento de escárnio pelos rivais é consideravelmente amenizada, embora jamais seja extinta. Henfil irá seguir produzindo suas tirinhas em alusão ao Urubu (e aos rivais, criando-lhes personagens, a exemplo do que Molas fizera décadas antes) até meados dos anos 80.
Além das mascotes, ao longo do tempo, o Flamengo tem sido ilustrado e personificado pela mais diversa gama de tipos e elementos, criados por cartunistas, colunistas, atores e artistas em geral. Nesse contexto, uma série de figuras surge, alcançando diferentes tipos de repercussão. É o caso do célebre personagem Peladinho, interpretado pelo humorista Germano (pseudônimo de João Dias Lopes) em 1951, como integrante de um dos quadros do programa “Balança Mas Não Cai” exibido pela Rádio Nacional até 1961. Peladinho, ares simplórios de matuto, é um torcedor inflamado do Flamengo, que não se furta a tecer exaltações passionais ou exercer pesada cornetagem a tudo o que se refere ao time (sua principal vítima é o ponta Esquerdinha). Peladinho, uma das principais atrações do programa, torna-se célebre pela repetição dos bordões “Mengo, tu é uma disgracêra”, entoado nas derrotas e, principalmente, “Mengo, tu é o maió!”, repetido nas vitórias. “Mengo, tu é o maió!” chega a se tornar quase uma gíria carioca, sendo lembrado à exaustão em bares, esquinas e estádios.
Outra figura, essa de associação mais discreta (ou nem tanto) é Nestor, personagem de gibi criado nos anos 1940 para se tornar o principal amigo do papagaio Zé Carioca. Nestor é um urubu que ostenta uma blusa rubro-negra, o que rapidamente faz com que seja associado ao Flamengo. No entanto, a rejeição flamenga à figura da ave (na época o urubu ainda possui caráter pejorativo), além da personalidade de Nestor (é consideravelmente mais “sério” que o protagonista) faz com que a torcida flamenga prefira ser aludida ao próprio Zé Carioca, personalidade tipicamente carioca (no estereótipo), a ponto de alguns ajuntamentos de torcedores colocarem em bandeiras flamengas a figura do papagaio.
Além desses, também merecem certo destaque personagens como o Bagá, um negão corpulento, marrento, irreverente e dotado do agudo senso crítico das massas, criação do jornalista Renato Maurício Prado, a Scarlet O'Breu, mulher de morro que personifica a coluna da torcida do Flamengo no jornal Lance, os desenhos afiados do cartunista Lan, muito disseminados nos anos 80. Em todas essas criações, o caráter popular do torcedor do Flamengo é notadamente acentuado.
No final dos anos 80, o urubu (que andava esquecido desde a aposentadoria precoce de Henfil) ressurge, inicialmente através de Rogério Steinberg, que cria a personagem Uruba na campanha da volta de Zico, depois no traço de Ziraldo, que recebe a incumbência de revitalizar os mascotes dos principais clubes do país. A ideia agrada. Anos mais tarde, Uruba é repaginado e ganha a “companhia” de Urubinha, seu filhote, numa forma de buscar aproximar o clube do público infantil.
Em 2009 o Flamengo revisita o esquecido Popeye, lançando alguns bonecos para venda, mas a marca novamente mostra pouca força, sendo mais lembrada por seu caráter histórico do que propriamente por algum tipo de identificação.
Sim, senhoras e senhores. Naquele urubu voando e gingando, está o Flamengo em essência.