Saudações flamengas a todos,
Logo mais o Flamengo irá estrear mais um terceiro uniforme, alusivo aos 450 anos do Rio de Janeiro, e para isso o clube resolveu usar uma versão estilizada do tal "Papagaio de Vintém" de 1912-13. Mas ainda hoje muita gente confunde isso de papagaio de vintém com azul e dourado, como foi efetivamente o processo de definição das cores do clube. Assim, o texto dessa semana trata do assunto, e talvez algumas revelações (como a primeira camisa usada em regatas) sejam surpreendentes para alguns. Boa leitura.
* * *
Noite.
Os primeiros sinais de cansaço começam a se esgueirar através das mentes e dos corpos daqueles sete rapazes, aboletados há horas sob um dos tremeluzentes lampiões do Largo do Machado. Nestor, caderneta de papel e um prosaico lápis preto à mão, conduz as discussões, à guisa de relator. Zezé, um dos idealizadores da coisa, é um dos participantes mais entusiasmados, opinando sobre tudo, junto com o amigo Spíndola. Laport, o “Capote”, fala pouco, apenas algumas intervenções técnicas (ou quase), ele é o tesoureiro e demonstra vontade em abraçar a tarefa. Os demais (Zé Félix, Collás, Napoleão) opinam, divergem, mas de forma menos ativa. Mas há flama e entusiasmo nos olhos desses jovens que entendem ser imprescindível a tarefa, posto que árdua. Pais zelosos criando a personalidade, o temperamento, a índole da criança que acabaram de fazer vir ao mundo.
Naquele caderno de rabiscos de Nestor de Barros está sendo definido o primeiro Estatuto do Grupo de Regatas do Flamengo, fundado alguns dias antes.
Definição dos proprietários (os que se cotizaram para a aquisição da recém-naufragada Pherusa), requisitos para a associação, formas de pagamento, criação da categoria de sócios-remidos (a despeito do Grupo só contar com quinze associados), entre outros temas de relevância, são exaustivamente discutidos. Nada vai para a caderneta do Nestor sem ter sido esmiuçado e aprovado por unanimidade, ou ao menos algo a ela próximo.
“Estamos nos perdendo, o tempo está passando e ainda não discutimos o assunto mais importante!”
A intervenção, quase desabafo, do pacato Luci Collás atiça a reunião, dissipando os primeiros bocejos que começavam a ameaçar o sucesso da empreitada.
“Do que você está falando?”, “Das cores. Não definimos cores, bandeira, uniforme, essas coisas. Um grupo precisa de cores”
Nestor não tinha intenção de tratar do assunto por ora, por julgá-lo “menor”. No entanto, diante do alarido criado pela intervenção de Collás, acede e resolve antecipar a pauta. “Vamos falar das cores, então.”
O tema acende uma fagulha que inflama os ânimos dos presentes, mesmo diante da proximidade da meia-noite. Todos têm uma ideia para as cores, os símbolos, enfim. Zezé, o mais irrequieto, é o primeiro a expor sua posição de forma articulada. “Azul, precisa ter azul-celeste. É a cor da Guanabara.”
A grande vantagem de José Agostinho, o Zezé, é a sua capacidade de persuasão. Não interessa a qualidade do argumento, sempre faz prevalecer suas ideias pelo ímpeto, pela verve, pelo afinco com que as defende, brilho juvenil no olhar. Assim conseguiu fazer aquela turma de jovens se abraçar à sua causa, dessa forma logrou levar adiante a ideia de criar um grupo de regatas no Flamengo, um núcleo de resistência à presença dos forasteiros que ocupavam os sonhos e os corações das moçoilas da região. Tenaz, teimoso e impetuoso, Zezé impõe seu ponto de vista seduzindo seus interlocutores. Mesmo que não tenha a menor noção do que fazer para implementá-lo.
Meio que resignada, a maioria dos presentes acata a sugestão. Se Zezé quer azul, que se ponha azul. Não é inteligente procurar debater esse tipo de coisa com Zezé. Não agora, já quase de madrugada.
“Está bom o azul, mas acho interessante também entrar o dourado. Veja bem, dourado mesmo, não amarelo. Ouro lembra riqueza.”
A sugestão do ouro vem de Mário Spíndola, que se lembra de ter visto em algum canto uma bandeira em azul e dourado. E, sabe-se lá como, a sensação de beleza impregnou-se em sua memória. Não interessa o que o ouro significa, o que importa é que faz belo par com o azul.
Um muxoxo de cá, outro resmungo de lá, a sugestão acaba sendo aceita, muito por conta da insistência de Zé Félix, que por algum motivo é inebriado pela perspectiva do ouro na bandeira.
Quando a questão das cores parece enfim vencida, o Capote aparece com outra ideia: “estão faltando umas âncoras aí, como é que um grupo de regatas não vai colocar âncoras na bandeira?”, e então outro debate se inicia, põe âncora, tira âncora, vai pro canto, vem pro meio, âncora preta, âncora branca, verde, enfim se decide que um par de âncoras entrelaçadas irá ocupar o canto superior da bandeira, e terá a cor vermelha, sendo separado do fundo azul e ouro por um quadrado preto, para que se possa distingui-las.
Dessa forma, define-se que a bandeira do Flamengo terá quatro cores. Azul e dourado em listras horizontais largas (seguindo o padrão de outros clubes), mais o vermelho e o preto das âncoras entrelaçadas.
Isto posto, agora que se defina o uniforme. A maioria resolve que a camisa deve receber as cores principais da bandeira, ou seja, azul e dourado, mantendo-se o padrão das listras horizontais.
Nestor, que até então andara meio quieto e ainda não engolira direito essa história de azul e dourado, agora começa a falar. Há alguma inquietação, quase irritação, em sua voz.
“Está tudo muito bom, tudo muito bonito, mas só há um probleminha. Onde vamos conseguir essas camisas”?
Com efeito, a atraente visão de uma guarnição trajada por um ofuscante e faiscante uniforme que reluz ao sol, visível desde o horizonte, terá embotado o senso prático da maioria. As demais agremiações usam cores simples, variações de preto, branco, vermelho, azul, em sua maioria. O Flamengo, não. Já nasce ostentando o vistoso dourado e celeste, mesmo sem reunir a menor ideia do que fazer para conseguir vesti-los.
Nestor começa: “Outro dia, já pensando nisso do uniforme, eu estive na Casa Dol, lá no Ouvidor, a maior loja do ramo. Lá se acham camisas brancas, vermelhas, azuis, amarelas, pretas. Até alguma coisa de listras se arranja. Mas nada, absolutamente nada, semelhante a dourado e celeste. Aliás, eu desconfio que esse tecido dourado brilhante tem que importar da França ou da Inglaterra”
“Sugiro – continua Nestor – que a gente não ponha logo no Estatuto o primeiro uniforme. Deixa em aberto. Vamos definir um segundo uniforme nas cores das âncoras, mais fáceis de encontrar. Algo como camisas pretas com o desenho das âncoras e calções brancos ou pretos. A gente vai usando esses enquanto manda fazer as tais camisas douradas e azuis, com calças ou calções brancos.”
A ideia de Nestor é aprovada, e enfim todos resolvem dar um basta na reunião. Apesar do cansaço, todos saem animados do encontro. O Flamengo está começando a surgir de fato.
* * *
“O que é isso? Que coisa horrenda!”
“Foi o que se pode arranjar”
“Mas AMARELO?”
Zezé mal consegue conter a irritação ao contemplar o jogo de camisas que será utilizado pelos remadores Spíndola, Gaioso, Vizeu e Mariz, patroados por Domingos Marques (o presidente) na primeira regata do Flamengo, realizada em Niterói, promovida pelo Grupo de Regatas Gragoatá. Com efeito, as calças brancas com cintos da mesma cor, os sapatos também brancos e os bonés pretos compõem um conjunto elegante. Mas as camisas, de um amarelo berrante, definitivamente não ornam em nada o conjunto. Não é fácil convencê-lo de que não havia em lugar algum camisas listradas nas cores da bandeira, que mesmo os modelos na cor azul estavam em falta, e que o jeito é improvisar com aquela coisa em amarelão. “É o mais perto que se tem do dourado”.
O uniforme é apenas um dos elementos do mais profundo improviso que compõem a “preparação” dos intrépidos remadores flamengos para a primeira batalha de sua história. Com efeito, cada detalhe parece ser meticulosamente esquecido. A baleeira Scyra, comprada de terceira mão, é raspada para ser repintada e no processo a calafetagem acaba removida, o que motiva a colocação de remendos improvisados. Não se lembra de instalar as guias (orifícios) para os remos, o que na prática inviabilizará o manejo do barco na regata. Para completar, todo o grupo, de dirigentes a remadores, irá “comemorar” a estreia e discutir as possibilidades de vitória com um lauto almoço ANTES da realização da regata, o que naturalmente cobrará seu preço na hora do evento. O espírito do grupo é bem sintetizado nas palavras de Nestor de Barros que, ao ser indagado se a guarnição não iria ao mar ao menos uma vez para um treinamento antes da regata, replicou com uma frase antológica, “uma guarnição não precisa de treinos. Só de músculos.”
Após o esperado e retumbante insucesso na regata de estreia, uma das medidas do grupo é se livrar da medonha camisa amarela. Enquanto as camisas principais não chegam de fora, que se use preto, vermelho, o diabo. Mas aquela coisa nunca mais.
E em preto e vermelho o Flamengo vai começando a construir sua história nas águas do Rio de Janeiro. As benditas camisas azuis e douradas enfim chegam da Europa e engalanam os remadores, que desfilam totalmente empertigados e empolados diante de uma plateia embasbacada. Somente até, ao final do dia, perderem, com o sol e o sal, toda a sua cor e esmaecerem num desbotado constrangedor. “Não podemos competir vestidos nesses andrajos!”, resmungam os vaidosos atletas, ciosos de sua figura, “ficaremos como molambos nesses trapos agastados”.
A aventura em azul e ouro irá durar pouco menos de um ano. Fartos de despejar dinheiro na aporrinhante rotina de importar o tecido, mandar preparar as camisas, usá-las um punhado de vezes, jogá-las fora e vestir rubro-negro enquanto o outro lote não se apronta, os mentores flamengos convocam uma reunião extraordinária e resolvem acabar com a coisa. O preto e o vermelho são definidos como as cores únicas e oficiais de bandeira, uniforme e tudo o mais afeto às coisas do Flamengo.
Os anos se passam. Outro esporte começa a disputar com o remo a preferência do público. Surge o Campeonato de Futebol da cidade. Em 1911 um grupo de jogadores do Fluminense se rebela contra o clube e começa a discutir sua saída e eventuais destinos. Seu líder, Alberto Borgerth, que é remador do Flamengo e possui trânsito no (agora) clube, vai procurando alternativas, até que, numa conversa despretensiosa com Lourenço Cunha, expõe a questão. Lourenço comenta o assunto com seu pai, que se interessa pelo tema e manda chamar Borgerth. Ouve o capitão fluminense com atenção, pergunta-lhe algumas coisas, e, após cofiar os bigodes e pensar um pouco, resolve.
“Por que vocês não montam um time de futebol aqui no Flamengo?”
E com essa pergunta de José Agostinho, outrora Zezé, o pai de Lourenço, tudo começa.