Em Balneário Camboriú-SC, onde por razões familiares passei 40 dias na virada do ano, conheci o Genésio. Ele trabalha num salão perto da casa de minha mãe. Eu descia para o bar para assistir os jogos da copinha e inevitavelmente o Genésio aparecia com sua camisa do Flamengo sob o jaleco branco de barbeiro. Sempre sorridente, pronto para comentar como já não havia bons batedores de falta como na época do Zico, do Júnior. Entre uma conversa e outra de assuntos flamengos, perguntei a ele quanto custava o corte de cabelo. R$30, respondeu. Aí perguntei se havia desconto para companheiros de bar e de futebol, e ele mandou R$25. Aí perguntei se o cliente fosse rubro-negro, se tinha algum outro benefício, e ele me respondeu que eu estava tentando enrolá-lo com essa história, que eu teria que provar que era Flamengo. Apresentei-lhe a carteira de sócio off-Rio, e aí o Genésio puxou a cadeira. Esse Genésio...
Disse que no salão não dava para fazer mais nenhum desconto, porque o salão não era dele. Mas que se quisesse conhecer a casa dele ele não cobraria nada pelo corte. Genésio tem 72 anos de idade, e vem a pé todos os dias de sua casa até o salão. É bom para treinar, porque corre maratona, disse. Não era bem correr, era mais trotar, porque a idade já não dá para tanto. Mas enfim, a casa era perto, uns 10 km no máximo. Eu agradeci a oferta, mas argumentei que preferiria cortar no salão mesmo, a bem da verdade, por que é que eu iria conhecer a casa dele? Ele explicou que a casa dele é muito conhecida na vizinhança, todos sabem onde fica a casa Flamengo em Camboriú. Casa Flamengo? Como é isso?, perguntei. Muito simples, respondeu: a casa é toda vermelho e preto, menos a garagem que é branca para poder aparecer bem grande o escudo do Flamengo. Dentro está toda decorada com pôsteres do time, extraídos das revistas Placar, dos jornais, dos álbuns de figurinhas, de qualquer lugar onde aparecesse o Flamengo. Os copos, as canecas, os pratos, tudo era Flamengo. Em vez de quadros, flâmulas. E o espaço para um pequeno altar onde fica São Judas Tadeu. E a mulher?, perguntei. Ah, no começo não gostava mas depois acostumou. Claro, respondi, afinal qual mulher não se acostumaria a viver numa casa dessas? Ah, Genésio...
Ao longo de vários dias, perguntei sobre os novos rumos do Flamengo, nas muitas visitas ao bar que ele fazia no final da tarde, entre um cliente e outro. O Genésio não sabe muito de política do Flamengo, não sabe quem é o presidente, só sabe que o time não está muito bom não. Contei a ele dos desmandos da Patrícia, do aumento das dívidas do Kléber, do desmanche do Veloso, da prisão do Edmundo. E de como um grupo de pessoas muito bem posicionadas na vida, empresários e executivos, resolveu por ordem na casa, e de como estão pagando dívidas, o que explica em parte o time não ter grandes craques nestes dias. Contei que essa coisa de ser sócio off-Rio é justamente para poder exercer meu direito de votar, para garantir que a corja não voltasse mais às generosas tetas flamengas. Aí ele me contou que há alguns anos apareceu um vendedor no salão oferecendo títulos de sócio dos clubes do Rio e de SP. Ele negociou, e acabou comprando um título patrimonial do Flamengo, portanto também era sócio. Surpreso, perguntei se ainda mantinha tudo em dia, e ele me disse que pagou por anos. Um dia recebeu uma carta do Flamengo dizendo que como ele morava longe e não aproveitava nada do clube ele não precisaria mais pagar a taxa de manutenção mensal. Eu fiquei realmente intrigado com a história, e pedi que ele explicasse melhor, se talvez tivessem trocado ele de categoria. Ele disse que não, que continuava com a mesma carteirinha, e que agora só precisava pagar se fosse ao Rio. Perguntei se ele ia com frequência, respondeu que jamais havia posto os pés no Rio. Como assim, Genésio, não conhece a Gávea, o Maracanã? Respondeu que não, que nunca tinha ido ao Rio, nem jamais visto o Flamengo jogar ao vivo. Não satisfeito, pedi para ver a carteirinha dele. Respondeu que não tinha ali com ele, mas que amanhã iria trazer. Esse Genésio...
No dia seguinte, fui ao salão para cortar o cabelo bem cedinho. Genésio ainda não havia chegado. A recepcionista explicou que ele gosta de passar na praia cedinho para jogar dominó com a turma dele. Disse então que voltaria mais tarde e já estava na porta quando o vi vindo, caminhando em direção ao salão. Voltei à cadeira, ele cortou, ficou um pouco grande ainda, pedi para baixar mais um pouco. Terminado o serviço, argumentou que tinha feito 2 cortes, mas só iria cobrar 1: R$25, desconto para butequeiro. Claro, porque desconto para Rubro-Negro só se fosse conhecer a casa dele, aí seria grátis. "Entendi, Genésio, mas é muito longe, estou de férias, numas de buteco e praia, não quero ir lá no seu bairro". Outro dia, quem sabe. Mas já que ele deu o desconto mesmo assim, convidei para uma cerveja no final do dia. Todas as vezes que aparecia no bar ele às vezes até se sentava, mas jamais havia bebido qualquer coisa. No final daquele dia, o Genésio apareceu no bar, se sentou à minha mesa e já mandou descer uma - pode ser Brahma? Pode, claro! - uma Brahma bem gelada. Tomamos a primeira, a segunda, entre risadas de histórias de Babá, de Dida, de Carlinhos... aí ele se lembrou: ah, olha aqui minha carteirinha de sócio. Estava tudo lá, um pouco desbotado, mas tudo lá:
Genésio dos Santos
Sócio Patrimonial
Título 210.358
Matrícula 130.293
Admissão 10.06.1988
Emissão da Carteira: 26.06.1989
Disse a ele que iria investigar como estava esse título dele, que conhecia alguns sócios do Rio que poderiam ver isso facilmente. Ele disse que não adiantava, porque não tinha dinheiro para ir ao Rio nunca na vida. Vivia apenas da aposentadoria de 1 salário mínimo, e dos parcos ganhos do salão. Disse a ele que como eu não poderia votar em 2015, que talvez poderia dar uma força para ele ir votar, ajudar na passagem, arranjar algo entre os amigos, fazer uma vaquinha, sei lá... mas para votar no cara certo, hein Genésio? Não vá me chegar lá e votar no candidato errado! Entre risadas me garantiu que não, que votaria em quem eu indicasse. Fiquei imaginando o Genésio chegando ao Rio, entrando na Gávea, vendo ex-jogadores, votando na construção do futuro do Flamengo e confesso que me emocionei olhando para aquela pessoa tão simples e tão rubro-negra. Disse a ele que não poderia prometer nada, porque eu tampouco tenho condições de pagar pela viagem toda sozinho, mas que iria tentar algo. O Genésio é muito gente boa, me agradeceu, e me disse que se não desse estava tudo bem do mesmo jeito. Só queria que eu prometesse duas coisas. Primeiro, que eu viria visitá-lo novamente e dessa vez iria conhecer a casa dele. Segundo, que eu enviaria a ele um souvenir, qualquer coisa, do Flamengo. De chaveiro a bandeira, o que fosse. Era para enfeitar a casa dele, disse. E me deu o cartão, com o endereço escrito no verso, para fazer o envio.
Regressei a João Pessoa no dia seguinte. Chegando em casa, ainda lembrando de todas as conversas, guardando as coisas da mala, encontrei o cartão dele com o endereço anotado no verso. O endereço... fui no google maps. Encontrei o lugar. Google Street View, pimba: a casa dele.
Certas coisas não se devem deixar para outro dia. Na próxima vez que eu for a Balneário Camboriú já sei onde vou cortar o cabelo: na Casa Flamengo, do Genésio!