domingo, 8 de fevereiro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

O futebol carioca sempre foi pródigo na criação de grandes figuras. Hoje trago um desses elementos, cuja lembrança findou soterrada pelo tempo. Refiro-me ao folclórico supervisor Carlos Alberto Galvão, o Catuca, do Bangu, que com algumas brincadeiras criativas ajudou a promover vários jogos. Trago agora dois desses episódios, envolvendo a preparação de partidas entre o Flamengo e o clube de Moça Bonita. Boa leitura.

* * *
1982.

Penúltima rodada da Taça Guanabara. O Flamengo lidera, um ponto à frente do Vasco. A tabela aponta Flamengo x Bangu, no Maracanã, jogo que, a despeito do imenso e indiscutível favoritismo rubro-negro, é tido como perigoso, pois o Bangu anda praticando um futebol elogiado. Alguns jogadores que formarão uma das mais fortes equipes da história de Moça Bonita já estão lá, como a dupla Arturzinho e Mário, o volante Mococa, o goleiro Tião, entre outros. Mas o Flamengo, embora respeite o adversário, está longe de temê-lo. É o campeão mundial, continental, brasileiro e estadual. E, se estiver em um dia bom, é uma equipe imparável, como acabam de constatar Botafogo e Fluminense, ambos abatidos impiedosamente, cada um amassado por educativos 3-0.

Sabendo disso, o supervisor banguense Catuca resolve agir. Chama os jornais e avisa, aos quatro cantos do Rio, que irá fazer pousar um helicóptero no meio do gramado da Gávea, exatamente no horário do último treino do Flamengo (o chamado “coletivo-apronto”). A ideia é desconcentrar o rubro-negro, tirar-lhes o foco do jogo. Uma vez que o anúncio é feito vários dias antes do treino, Catuca consegue seu objetivo. Agora somente se fala no tal helicóptero.

Começam os zunidos e os boatos. Fala-se de mulheres nuas (ou quase) descendo do helicóptero e promovendo um bacanal em plena luz do dia, outros comentam que serão entregues cascatas de flores, outros imaginam músicos saindo de dentro da aeronave e tocando o hino do Bangu, essas coisas. Vai passando o tempo e a expectativa aumentando. Esperto, Catuca vai alimentando os rumores, a cada dia aparecendo com uma informação nova. Confirma que a visita será “provocante”, e que “os rapazes irão gostar”. Vai ter mulher no meio.

A provocação é recebida com bom humor na Gávea. Os jogadores aguardam ansiosos a chegada do tal dia. Um dirigente flamengo invoca o estatuto, “ninguém pode trajar roupa de adversário aqui dentro. Se a moça descer com camisa do Bangu, serei forçado a pedir para que ela a tire”. Carpegiani cogita mandar Peu a Moça Bonita, “será nosso enviado especial, com seu sorriso especial e desdentado como retribuição”. O clima descontraído vai tirando a tensão da partida. Coisa de que Zico não gosta muito. “O Bangu é perigoso”, alerta.

Enfim, chega o tal dia. O treino do Flamengo é bom, os titulares vão goleando. Mas todos realmente anseiam pela chegada do helicóptero. Vários torcedores organizados se aboletam nas arquibancadas com flores. O presidente também assiste ao treino, traz um embrulho nas mãos, o que reforça a impressão de algum tipo de anuência prévia. Helicópteros vêm e vão, o que é normal, há um heliporto próximo. Mas dessa vez cada aparelho que se aproxima gera alguma apreensão, principalmente entre os jogadores. Até que, quando o sol já começa a se despedir, um helicóptero começa a voar baixo, meio rasante, zunindo nas cabeças dos milionários jogadores. Pousa na beira do campo (não no centro, outro indício de que a coisa foi “agendada”) e de lá destampam duas moças totalmente desinibidas, camisa justinha do Bangu e shortinho bem curto. Os jogadores vão à loucura, Carpegiani solta muxoxos (não é que essa palhaçada aconteceu mesmo?) e o presidente se aproxima das mulheres e, em meio a um malicioso sorriso, começa, “Desculpe, mas essa camisa não é permitida, queira trocá-la por esta, que é muito mais bonita”, e oferece um Manto a cada uma. Mas, para frustração dos jogadores, as distintas trazem um colant por baixo, de forma que o espetáculo lúbrico anunciado é meio que mitigado. Afinal, há crianças por perto. Resta aos jogadores mais desenvoltos trocar beijinhos, algumas palavrinhas e, dizem, telefones. Após as fotos, entrevistas e tudo o mais de praxe, a aeronave levanta voo, jogando bolas e mais bolas com os símbolos do Bangu e de Castor.

O jogo? Como previsto pelos mais realistas, é difícil, o Flamengo não faz boa partida e empata em 1-1 (gols de Lico e Arturzinho). O time perde a vantagem na tabela, o Vasco se iguala nos pontos, mas o Flamengo acabará campeão assim mesmo, ao vencer o cruzmaltino em uma partida-extra.

Essa partida com o Bangu acaba sendo mais lembrada por uma prolongada encarada protagonizada por Nunes e o zagueiro Tecão, imagem que roda jornais e cinemas, via Canal 100.

* * *
1984.

O Bangu anda em estado de graça. Acaba de enfiar 4-0 no Vasco (jogo em que Cláudio Adão deitou e rolou). Com isso, a confiança exala e transborda de Moça Bonita. Agora tem jogo com o Flamengo, Taça Guanabara, lá pelo meio do campeonato ainda. O falastrão treinador Moisés, inflado por espertos repórteres, começa a soltar “O Flamengo perdeu Zico e Júnior, agora é tudo japonês”, “O Mengão vai virar mingau”, entre outras gracinhas.

Com efeito, o Flamengo não anda em um momento bom. Foi eliminado do Brasileiro e da Libertadores após sofrer derrotas contundentes. Vem fazendo uma Taça Guanabara irregular, o futebol não deslancha, o time derrota a duras penas o Botafogo (1-0), mas perde para o Vasco (0-1, famoso gol de cobertura do Geovani no Fillol). As recentes saídas de Júnior e, por que não, Zico, ainda não parecem assimiladas. Mas o time ainda é muito forte. E conta com Zagalo no banco.

Último treino antes do jogo. Súbito, um avião começa a sobrevoar o campo da Gávea. Traz um banner em sua cauda, “Bangu vai deixar Zagalo mais careca domingo”. E rodopia ao redor da sede flamenga por uma boa meia hora, numa aporrinhação que poderia irritar os mais sensíveis. Mas Zagalo, sorriso no canto da boca, comenta, “isso é coisa do Catuca. Eles não estão focados. Vamos ver quem arrancará cabelo domingo.”

Fim de jogo. O Flamengo acaba de proporcionar à sua torcida a sua melhor e mais brilhante atuação no ano. O placar marca 3-0, mas poderia ter sido de seis (o time, como sempre, perde gols em demasia). O Bangu é atropelado, perde o rumo, tem jogador expulso, essas coisas. Bebeto, Adílio e Elder marcam os gols, e com a vitória o Flamengo enfim se encontra e arrancará para a conquista da Taça Guanabara. Quanto ao Bangu, Zagalo dedica agridoces palavras de “conforto”, “enquanto eles nos provocam por cima, a gente ‘catuca’ aqui embaixo”. Um repórter pergunta, “O Flamengo ia virar mingau. E o Bangu, Zagalo”?

“O Bangu virou angu.”

Não, não é uma boa ideia provocar o Velho Lobo.


Boa semana a todos.