Saudações flamengas a
todos,
Está começando mais uma
edição do Campeonato Estadual, que certamente se arrastará, aos bocejos, até
seu desfecho. Pelo seu prelúdio, não é difícil prever que a competição de
2015 ficará muito mais marcada pelas confusões extracampo do que pelo medíocre
futebol nela apresentado.
Outro dia chamei a
atenção, em um texto, para o retorno de Eurico Miranda, que muitos tentaram, ou
tentam, reduzir a um personagem folclórico, quase cômico. Fui tachado de
saudosista. Pois reitero, amparado pelos últimos acontecimentos, minha opinião.
O sujeito não deve, em nenhuma hipótese, ser subestimado. Eurico é um produto
dos anos 80/90 e a estrutura do nosso futebol mudou pouco, ou nada, desde
então. O agora presidente do Vasco possui notável capacidade de articulação e
sabe transitar com desenvoltura entre os fétidos e escuros porões e corredores
do submundo da cartolagem.
Que o Flamengo saia do campo das ideias, onde tem
defendido sua posição de forma clara, e parta para ações efetivamente
pragmáticas. Que se tenha noção de que não adianta apenas mostrar que A ou B é “chato,
feio e bobo”. Mantendo-se apenas a retórica, logo veremos um Vasco x Flamengo
em São Januário, com torcida única, sob o beneplácito das autoridades estaduais
e municipais. Ação.
Confio na diretoria.
Isto posto, vamos à
história de hoje. Boa leitura.
1994.
A sensação é de fim de
feira. Sem dinheiro, o Flamengo começa a desmontar enfurecidamente seu elenco,
reconhecidamente um dos melhores do país. O primeiro é Casagrande, que força
sua saída para o Corinthians. A seguir, Renato Gaúcho, desgastado pela
deterioração da relação com a maioria dos jogadores (especialmente os mais
jovens) e cansado dos sucessivos atrasos salariais, acerta sua transferência
para o Atlético-MG. Mas a joia da coroa são os garotos. O primeiro a sair é
Marcelinho, negociado por US$ 500 mil com o Corinthians. Djalminha, que estava
emprestado ao Guarani, é vendido por outros US$ 500 mil. Mais US$ 600 mil, e Júnior
Baiano vai defender o São Paulo. Piá também sai para o futebol paulista,
reforçando o Santos. Com o dinheiro, o clube liquida pagamentos de salários
atrasados e fecha a compra do lateral Marcos Adriano (que estava emprestado
pelo São Paulo) por US$ 200 mil.
Assim, as referências
do elenco do Flamengo passam a ser o goleiro Gilmar (que prefere ignorar o
assédio do Palmeiras e manter-se em um clube onde é ídolo, facilitando seu
caminho para a Copa), o meia-atacante Nélio, os volantes Charles Guerreiro,
Fabinho e Marquinhos (que não vai embora por pouco), e o zagueiro Rogério.
Pouco, muito pouco, como logo percebe o treinador Júnior, que começa a expor
sua insatisfação com o baixo nível do grupo.
Para o início da
temporada, uma boa nova. A diretoria consegue a ampliação do Estádio da Gávea,
que, abraçado por arquibancadas tubulares, passa a poder abrigar 22.500
espectadores. A reforma sai de graça, e o acordo prevê participação da empresa
construtora na bilheteria dos jogos lá realizados. O Flamengo, enfim, conta com
seu “alçapão”, capaz de ser utilizado na esmagadora maioria dos jogos em que
possuir o mando de campo.
A inauguração da “Nova
Gávea”, ou “Bombonera do Flamengo”, conta com um sparring aparentemente
adequado, o modesto FC Grasshopper, campeão suíço. Estádio novo, camisa nova (a
Umbro recria as listras mais finas), mas o time, também desagradavelmente novo
(praticamente a “rapa” do ano anterior), decepciona, leva um vareio de bola e é
derrotado (0-2), enfurecendo sua torcida. O presidente comenta, embasbacado, “temos
que levar em conta que perdemos para um adversário de alto nível. Não é campeão
suíço à toa”. O treinador Júnior, menos condescendente, põe o cargo à disposição, causando
séria crise que somente é resolvida após várias reuniões e a promessa de
reforços.
Para o início do
Estadual, o Flamengo se reforça às pressas, conseguindo quatro jogadores, todos
por empréstimo: os meias Carlos Alberto Dias e Boiadeiro, o atacante baiano
Charles e a estrela da companhia, o talentoso Valdeir “The Flash”, este trazido
junto ao São Paulo ao custo de US$ 275 mil por um contrato de QUATRO meses.
Após a enésima ameaça
de criação de uma Liga Independente, os três grandes clubes dissidentes
(Flamengo, Fluminense e Botafogo) e a Federação chegam a um entendimento,
criando uma fórmula de disputa mais atraente para o Estadual. Um turno curto
classificatório e o título decidido em um Quadrangular Final. O Vasco e o
Fluminense são os clubes que mais se reforçam (o Vasco contrata Dener, Ricardo
Rocha, o tricolor traz Branco, Jandir, Luiz Henrique e Mário Tilico, entre
outros) e largam como favoritos.
O Flamengo demora a
engrenar. Perde de forma contundente alguns clássicos (1-3 Vasco, 2-4
Fluminense), além de protagonizar um vexame na partida contra o Madureira, na “Nova
Gávea” (que recebe quase 10 mil). Não tanto pelo pífio empate de 1-1, mas pelas
cenas de terror comandadas pelas Torcidas Organizadas, que encharcam o campo de
pedras e bombas. Diante do ocorrido, a diretoria toma uma atitude. Não atuará
mais na Gávea, e com isso as arquibancadas tubulares permanecerão às moscas
durante todo o ano, enquanto o time passa a jogar em Moça Bonita, voltando a
pagar as tais taxas de que se julgava livre quando montou o seu “alçapão”.
De qualquer forma, o
rubro-negro se classifica às finais, apesar do futebol pouco convincente. De
positivo, os gols de Charles, as boas atuações de Boiadeiro e a ascensão de um
garoto aloirado, muito arisco e veloz, o ponta Sávio, que para surpresa de
muitos coloca o badalado Valdeir na reserva, junto com seu apático companheiro
Dias, a grande decepção entre os reforços.
No Quadrangular Final,
o Flamengo, tido como azarão, atropela o favorito Fluminense (3-1) em uma
brilhante atuação de Sávio. Na semana seguinte, outro 3-1 sobre o Botafogo de
Túlio, e a certeza da briga pelo título. Vem a partida contra o Vasco, e o
Flamengo, em uma das viradas mais sensacionais da história recente do clássico,
vence por 2-1, os dois gols de Charles, e assume a liderança do Quadrangular. O
time, dentro de campo, mostra de longe o melhor futebol nessa fase final,
crescendo no momento certo. O antes inseguro Rogério agora enfim se firma como
liderança, o goleador Charles justifica sua fama de artilheiro, o volante
Marquinhos volta a atuar em alto nível e o meia Boiadeiro simplesmente gasta a
bola e é sério candidato a craque do campeonato. E há o infernal Sávio,
simplesmente imarcável, imparável e ponto de desequilíbrio do ataque
rubro-negro. Além da surpreendente recuperação de Valdeir, que volta a se
tornar um jogador perigosíssimo, entrando no final das partidas com gols e
jogadas importantes. Tudo parece apontar para o inevitável título do Flamengo.
Aí começa o extracampo.
A tabela do
Quadrangular prevê uma reunião após a realização dos jogos de ida, onde será
definida a ordem das três rodadas finais. Contra todos os prognósticos, a
partida entre Flamengo e Vasco, que seria a final teórica, é fixada logo na
primeira rodada do returno. O Vasco quer reverter de imediato a inesperada
desvantagem na tabela. O Flamengo, após enfrentar o cruzmaltino, jogará contra
o Botafogo, encerrando o campeonato em um Fla-Flu na última rodada. Assim está
escrito. Em tese.
Flamengo e Vasco fazem
nova partida emocionante, mas dessa vez mais truncada, menos aberta. O Flamengo
abre o placar logo no início, mas sofre o empate enquanto alguns jogadores
ainda se abraçavam. Resta defender sua liderança na bicuda e na porrada, o time
recua e sofre um violento bombardeio, sustentando o importantíssimo 1-1 graças
à atuação de gala de Gilmar. A partida acaba marcada pelo que aconteceu em seu
primeiro minuto (um emocionante coro que uniu o Maracanã em homenagem a Senna)
e no seu derradeiro instante, um gol do Vasco muito bem anulado, um lance que
paralisou o jogo por vários minutos. No fim, o empate e a certeza do título
encaminhado. O Flamengo é o melhor time dessa reta final, o Vasco está
desanimado, acuado, alguns jogadores começam a se estranhar, nada parece tirar
a taça da Gávea.
Mas, dois dias antes, o
Fluminense arromba 7-1 no Botafogo. Essa goleada muda o campeonato.
O tricolor, que até
então se arrastava no Quadrangular, catando pontos aqui e ali, subitamente se
vê com chances de título. E não contém a euforia após a goleada bíblica. Certamente
entrará comendo grama contra seu próximo adversário, o Vasco, conforme a
tabela. O Flamengo enfrentará o despedaçado Botafogo, e, a depender da
combinação de resultados, já poderá sair campeão por antecipação.
O Conselho Arbitral se
reúne para definir qual será o jogo de domingo (Fla-Bota ou Vasco-Flu). No
entanto, em uma manobra surpreendente e sub-reptícia, o Vasco consegue colocar
em pauta a votação para a inversão das rodadas do próprio Quadrangular. E a
emplaca. No dia seguinte, o Rio de Janeiro acorda, atordoado, sabendo que
domingo tem Fla-Flu.
E o resto é história.