domingo, 30 de novembro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Essa semana escrevo um texto em homenagem ao colega Gabriel, que anda disseminando uma pretensa comparação que eu teria feito entre ídolos do presente e do passado, o que considero descabido, afinal comparar e encontrar semelhança entre contextos é diferente de emparelhar jogadores. De qualquer forma, para gáudio do colega (a quem admiro), seguem as linhas.

Boa semana a todos.

* * *
Contragolpe.

A bola é esticada ao lépido e jovem atacante, que abre corrida. Mas o zagueiro, sempre com um preciso senso de cobertura, antecipa-lhe o movimento e lhe toma a frente. É dele a bola, que se oferece lânguida, sedutora, maliciosa. O zagueiro é fustigado pelo fogoso fauno, mas não demonstra qualquer sinal de perturbação. Empertiga ligeiramente o tronco e com um meneio de cabeça checa e já percebe o goleiro posicionado para receber o passe. Um leve tapa, e estará tudo pronto.

Mas a coisa não sai bem assim.

No exato momento em que vai tocar a bola, a bandida quica em um morrote e sai de percurso. O zagueiro ainda consegue aprumar o domínio, mas o passe perde força. Vai pálido, tímido, sussurrante. O jovem goleador, que traiçoeiramente parecia ter desistido da jogada, estala como um raio, intercepta o lance, livra-se do esbaforido goleiro com um leve chapéu e consuma o gol, qual um ofídio.

Nesse lance, acaba o campeonato.

É o fim da carreira de Leandro.

Quem o efetivou zagueiro foi Zagalo, em 1984. Mas não foi o Velho Lobo quem o enxergou na posição pela primeira vez, e esse é um equívoco comum que costuma trair a memória de muita gente boa. A verdade é que em 1981, quando Rondinelli estourou o tornozelo ao dar um bico na chuteira de um paraguaio do Cerro Porteño em Assunção (encerrando assim sua história flamenga), Carpegiani ficou receoso de efetivar logo de cara o jovem Figueiredo. Então, mandou o ótimo Carlos Alberto para a lateral e meteu Leandro na zaga. O arranjo foi tão bom que foi utilizado por praticamente todo o Segundo Turno do Estadual (destaque para a atuação de gala nos 4-0 sobre o Bangu), somente sendo desfeito quando Carlos Alberto se lesionou, voltando Leandro para sua posição de origem, de onde não mais sairia por alguns anos.

Mas, tornando a Zagalo, em 1984 o experiente comandante se viu diante de um problema daqueles que todo treinador gosta. É que o Flamengo trouxe do América o lateral-esquerdo Jorginho, Campeão Mundial de Juniores no ano anterior e já destaque do time rubro. Jorginho viria para o lugar de Júnior, recentemente vendido para o Torino-ITA. Mas Zagalo andava encantado com as atuações de Adalberto (ironicamente, o reserva de Jorginho naquela Seleção) e, uma vez que Jorginho também atuava pela direita (na verdade, era destro) e como o Velho Lobo sempre teve por característica arranjar vaga para os melhores jogadores de seu elenco, pensou nisso de trazer Leandro para a zaga, até porque o setor andava claudicando (o time vinha sofrendo muitas goleadas) e o craque já havia manifestado sua intenção de atuar em um setor menos desgastante. E assim se fez, e o Flamengo consertou sua defesa.

A fulminante adaptação de Leandro à zaga foi algo impressionante, reforçando a tese de que craque se ajeita em qualquer lugar. Como lateral-direito, é tido um dos melhores da história. Ainda sob Carpegiani, chegou a atuar como volante em várias partidas, muitas delas decisivas (Atlético-MG no Serra Dourada, em que foi o melhor do jogo interrompido, Cobreloa em Montevideo e a finalíssima com o Vasco, o jogo do ladrilheiro), sempre esmerilhando a bola. Na zaga, impressionou pela sua destreza e sua absoluta capacidade de antever o lance, sempre chegando inteiro, pleno, nas bolas. A refinada sofisticação de seu jogo fez com que muitos o comparassem a Domingos da Guia, e com efeito é possível que realmente haja alguns elementos em comum nas duas formas de jogo, uma vez que Leandro era técnica em ente puro, cristalino. O estado da arte da bola.

Mas, como um Mozart, um Van Gogh, um desses gênios de fina extração, havia o contexto, traduzido em uma vida pessoal atribulada, tumultuando uma personalidade sensível ao extremo. A coisa começou a alastrar em 1983, quando Leandro desistiu de uma convocação para a Seleção Brasileira. E seguiu com episódios de divórcio, acidentes automobilísticos, crises pessoais e o controvertido corte do amigo Renato em 1986 (chegaram fora do horário, tentaram pular o muro, Renato conseguiu, ele não, e o atacante resolveu voltar para fora da concentração e acompanhar Leandro. Ambos foram advertidos, mas somente Renato cortado, mais tarde. Leandro não achou isso certo e, no último momento, não quis viajar ao México). Ademais, havia a questão mais séria, o problema com os joelhos.

Tal um Garrincha oitentista, Leandro tornou-se jogador de bola desafiando a formação congênita de suas pernas que, excessivamente arqueadas (o “mal de cowboy”), espremiam os ligamentos dos joelhos a cada salto, cada pique, cada movimento mais brusco, sacrifício que se tornava mais árduo com o passar dos jogos, ligamentos se deteriorando, bolsas e bolsas de gelo e fisioterapia contínua, a ponto dos médicos do CRF manifestarem, lá pelos idos de 85, 86, que cada partida em que Leandro era colocado em campo era a materialização de um milagre da medicina esportiva.

Mas agora isso não importa mais.

Nada de desarmes cortantes, passes milimétricos, projeções minuciosamente sincronizadas à linha de fundo, cruzamentos precisos, jogadas que trazem o futebol a uma linda brincadeira de bola. Nada disso é relevante, o que se fala, o que se comenta, o que se grita, o que se vaticina, é o contragolpe. A falha, o gol, a virtual perda do título. Um Flamengo com a faca nos dentes, buscando mostrar que a irreversível decadência do esquema tetracampeão brasileiro é apenas teórica, time mordido fazendo boa partida, fustigando o adversário, procurando desmanchar do placar aquele 1-1 tenso. E aí surge o contragolpe. E Leandro falha. O mundo lhe vai à cabeça. De repente, não presta mais.

A sensação de vilão não é nova. No ano anterior, um passe errado em uma saída de bola despretensiosa deu ao adversário um ataque cujo desfecho foi o gol do título, do ex-colega Tita. No entanto, a reação destemperada do treinador Antônio Lopes, “foi ele, perdemos por causa dele, arranquem-lhe as cabeças” colocou a crônica e a torcida ao lado do jogador, e Lopes não durou muito mais tempo. Ademais, Leandro conseguiu se recuperar no final do ano, sendo importante na campanha do tetra brasileiro.

Mas o quadro físico vai se agravando rapidamente. As articulações do joelho estão no limite, e Leandro, em 1988, encontra sérias dificuldades em se manter competitivo. As antecipações já não são tão precisas, o jogador começa a ser batido com menos dificuldade, a defesa do Flamengo, tida como segura, passa a exibir fissuras, principalmente diante de ataques velozes, como o Nacional-URU. E o Vasco.

Leandro, involuntariamente, acaba sendo pivô da queda de Carlinhos, que o saca do time na última partida das finais de forma sorrateira, no vestiário. Assume Candinho, que declara abertamente que a zaga do Flamengo é “lenta”, acenando com a barração de Leandro. Candinho prega renovação (de fato, o jovem Aldair anda voando e pronto para assumir a posição), mas, ao pedir a contratação do veterano decadente Darío Pereyra assina sua sentença de morte, e não resiste muito.

Mas Leandro, aconselhado por amigos, já havia tomado sua decisão. Vai tentar uma cirurgia arriscada, uma correção parcial da curvatura dos ossos, literalmente serrando os pontos que esfregam mais acentuadamente as articulações. Dificilmente dará certo, mas não há outro jeito. Após um ano de uma sacrificante recuperação, o jogador está de volta, num jogo em que os reservas do Flamengo perdem para o Argentinos Jrs no Maracanã, pela Supercopa. No entanto, mesmo profundamente irritada com a atuação da equipe, que é ostensivamente vaiada, a torcida aplaude entusiasticamente o retorno de Leandro, homenageando o ídolo com gritos e coros carinhosos, mostrando que a admiração permanece intacta.

Leandro retorna exibindo sua habilidade luxuriante, mas, sem ritmo de jogo, não é muito aproveitado na reta final da temporada de 1989 (o Flamengo brigava para chegar às Finais e Espinoza receava mexer na defesa). Começa 1990, Leandro, utilizado na sobra de um esquema com três zagueiros, atua praticamente por toda a Taça Guanabara, tem boa atuação no empate com o Vasco (1-1, jogo do gol do André Cruz), mas é um dos piores na desastrosa derrota para o Bangu (1-2) que elimina a equipe. A seguir, se lesiona e perde o restante do Estadual.

A inatividade relativamente longa suscita a lembrança de um dos mais implacáveis adágios dessas coisas do mundo da bola. No futebol, infelizmente, na montagem de uma equipe que se pretende competitiva e vencedora, não é possível alinhar o jogador pelo que foi. Não importa se o atleta foi o melhor, ou um dos melhores. O que se faz relevante é a contribuição de hoje, o que o jogador ainda pode produzir, seja pelo futebol bruto, seja pela capacidade de liderar, e se isso se torna de alguma forma útil. É cru. É frio. Mas é o que é.

E assim, sem alarde, no meio da Copa do Mundo, com todos voltados para o futebol vigoroso e medíocre praticado, sem a mais esquálida exceção, pelos 24 participantes, Leandro avisa que está parando, aos 30 anos. Sai da vida para entrar na história, eleva-se da mundana qualidade de boleiro e erige-se ao altar dos mitos, dos monstros sagrados, daqueles que, para toda a eternidade flamenga, serão adorados como os maiores.

Felizes os que se deliciaram com sua arte.