Saudações flamengas a todos,
Essa semana escrevo um texto em homenagem
ao colega Gabriel, que anda disseminando uma pretensa comparação que eu teria
feito entre ídolos do presente e do passado, o que considero descabido, afinal
comparar e encontrar semelhança entre contextos é diferente de emparelhar
jogadores. De qualquer forma, para gáudio do colega (a quem admiro), seguem as
linhas.
Boa semana a todos.
* * *
Contragolpe.
A bola é esticada ao lépido e
jovem atacante, que abre corrida. Mas o zagueiro, sempre com um preciso senso
de cobertura, antecipa-lhe o movimento e lhe toma a frente. É dele a bola, que
se oferece lânguida, sedutora, maliciosa. O zagueiro é fustigado pelo fogoso
fauno, mas não demonstra qualquer sinal de perturbação. Empertiga ligeiramente
o tronco e com um meneio de cabeça checa e já percebe o goleiro posicionado
para receber o passe. Um leve tapa, e estará tudo pronto.
Mas a coisa não sai bem assim.
No exato momento em que vai tocar
a bola, a bandida quica em um morrote e sai de percurso. O zagueiro ainda
consegue aprumar o domínio, mas o passe perde força. Vai pálido, tímido,
sussurrante. O jovem goleador, que traiçoeiramente parecia ter desistido da jogada,
estala como um raio, intercepta o lance, livra-se do esbaforido goleiro com um
leve chapéu e consuma o gol, qual um ofídio.
Nesse lance, acaba o campeonato.
É o fim da carreira de Leandro.
Quem o efetivou zagueiro foi
Zagalo, em 1984. Mas não foi o Velho Lobo quem o enxergou na posição pela
primeira vez, e esse é um equívoco comum que costuma trair a memória de muita
gente boa. A verdade é que em 1981, quando Rondinelli estourou o tornozelo ao
dar um bico na chuteira de um paraguaio do Cerro Porteño em Assunção
(encerrando assim sua história flamenga), Carpegiani ficou receoso de efetivar
logo de cara o jovem Figueiredo. Então, mandou o ótimo Carlos Alberto para a
lateral e meteu Leandro na zaga. O arranjo foi tão bom que foi utilizado por
praticamente todo o Segundo Turno do Estadual (destaque para a atuação de gala
nos 4-0 sobre o Bangu), somente sendo desfeito quando Carlos Alberto se
lesionou, voltando Leandro para sua posição de origem, de onde não mais sairia
por alguns anos.
Mas, tornando a Zagalo, em 1984 o
experiente comandante se viu diante de um problema daqueles que todo treinador
gosta. É que o Flamengo trouxe do América o lateral-esquerdo Jorginho, Campeão
Mundial de Juniores no ano anterior e já destaque do time rubro. Jorginho viria
para o lugar de Júnior, recentemente vendido para o Torino-ITA. Mas Zagalo
andava encantado com as atuações de Adalberto (ironicamente, o reserva de
Jorginho naquela Seleção) e, uma vez que Jorginho também atuava pela direita
(na verdade, era destro) e como o Velho Lobo sempre teve por característica
arranjar vaga para os melhores jogadores de seu elenco, pensou nisso de trazer
Leandro para a zaga, até porque o setor andava claudicando (o time vinha
sofrendo muitas goleadas) e o craque já havia manifestado sua intenção de atuar
em um setor menos desgastante. E assim se fez, e o Flamengo consertou sua
defesa.
A fulminante adaptação de Leandro
à zaga foi algo impressionante, reforçando a tese de que craque se ajeita em
qualquer lugar. Como lateral-direito, é tido um dos melhores da história. Ainda
sob Carpegiani, chegou a atuar como volante em várias partidas, muitas delas
decisivas (Atlético-MG no Serra Dourada, em que foi o melhor do jogo
interrompido, Cobreloa em Montevideo e a finalíssima com o Vasco, o jogo do
ladrilheiro), sempre esmerilhando a bola. Na zaga, impressionou pela sua
destreza e sua absoluta capacidade de antever o lance, sempre chegando inteiro,
pleno, nas bolas. A refinada sofisticação de seu jogo fez com que muitos o
comparassem a Domingos da Guia, e com efeito é possível que realmente haja
alguns elementos em comum nas duas formas de jogo, uma vez que Leandro era
técnica em ente puro, cristalino. O estado da arte da bola.
Mas, como um Mozart, um Van Gogh,
um desses gênios de fina extração, havia o contexto, traduzido em uma vida
pessoal atribulada, tumultuando uma personalidade sensível ao extremo. A coisa
começou a alastrar em 1983, quando Leandro desistiu de uma convocação para a
Seleção Brasileira. E seguiu com episódios de divórcio, acidentes
automobilísticos, crises pessoais e o controvertido corte do amigo Renato em
1986 (chegaram fora do horário, tentaram pular o muro, Renato conseguiu, ele
não, e o atacante resolveu voltar para fora da concentração e acompanhar
Leandro. Ambos foram advertidos, mas somente Renato cortado, mais tarde.
Leandro não achou isso certo e, no último momento, não quis viajar ao México).
Ademais, havia a questão mais séria, o problema com os joelhos.
Tal um Garrincha oitentista, Leandro
tornou-se jogador de bola desafiando a formação congênita de suas pernas que,
excessivamente arqueadas (o “mal de cowboy”), espremiam os ligamentos dos
joelhos a cada salto, cada pique, cada movimento mais brusco, sacrifício que se
tornava mais árduo com o passar dos jogos, ligamentos se deteriorando, bolsas e
bolsas de gelo e fisioterapia contínua, a ponto dos médicos do CRF manifestarem, lá
pelos idos de 85, 86, que cada partida em que Leandro era colocado em campo era
a materialização de um milagre da medicina esportiva.
Mas agora isso não importa mais.
Nada de desarmes cortantes,
passes milimétricos, projeções minuciosamente sincronizadas à linha de fundo,
cruzamentos precisos, jogadas que trazem o futebol a uma linda brincadeira de
bola. Nada disso é relevante, o que se fala, o que se comenta, o que se grita,
o que se vaticina, é o contragolpe. A falha, o gol, a virtual perda do título.
Um Flamengo com a faca nos dentes, buscando mostrar que a irreversível
decadência do esquema tetracampeão brasileiro é apenas teórica, time mordido
fazendo boa partida, fustigando o adversário, procurando desmanchar do placar
aquele 1-1 tenso. E aí surge o contragolpe. E Leandro falha. O mundo lhe vai à cabeça. De repente, não presta mais.
A sensação de vilão não é nova.
No ano anterior, um passe errado em uma saída de bola despretensiosa deu ao
adversário um ataque cujo desfecho foi o gol do título, do ex-colega Tita. No
entanto, a reação destemperada do treinador Antônio Lopes, “foi ele, perdemos
por causa dele, arranquem-lhe as cabeças” colocou a crônica e a torcida ao lado
do jogador, e Lopes não durou muito mais tempo. Ademais, Leandro conseguiu se
recuperar no final do ano, sendo importante na campanha do tetra brasileiro.
Mas o quadro físico vai se
agravando rapidamente. As articulações do joelho estão no limite, e Leandro, em
1988, encontra sérias dificuldades em se manter competitivo. As antecipações já
não são tão precisas, o jogador começa a ser batido com menos dificuldade, a
defesa do Flamengo, tida como segura, passa a exibir fissuras, principalmente
diante de ataques velozes, como o Nacional-URU. E o Vasco.
Leandro, involuntariamente, acaba
sendo pivô da queda de Carlinhos, que o saca do time na última partida das finais de
forma sorrateira, no vestiário. Assume Candinho, que declara abertamente que a
zaga do Flamengo é “lenta”, acenando com a barração de Leandro. Candinho prega
renovação (de fato, o jovem Aldair anda voando e pronto para assumir a
posição), mas, ao pedir a contratação do veterano decadente Darío Pereyra
assina sua sentença de morte, e não resiste muito.
Mas Leandro, aconselhado por
amigos, já havia tomado sua decisão. Vai tentar uma cirurgia arriscada, uma
correção parcial da curvatura dos ossos, literalmente serrando os pontos que
esfregam mais acentuadamente as articulações. Dificilmente dará certo, mas não
há outro jeito. Após um ano de uma sacrificante recuperação, o jogador está de
volta, num jogo em que os reservas do Flamengo perdem para o Argentinos Jrs no
Maracanã, pela Supercopa. No entanto, mesmo profundamente irritada com a
atuação da equipe, que é ostensivamente vaiada, a torcida aplaude
entusiasticamente o retorno de Leandro, homenageando o ídolo com gritos e coros
carinhosos, mostrando que a admiração permanece intacta.
Leandro retorna exibindo sua
habilidade luxuriante, mas, sem ritmo de jogo, não é muito aproveitado na reta
final da temporada de 1989 (o Flamengo brigava para chegar às Finais e
Espinoza receava mexer na defesa). Começa 1990, Leandro, utilizado na sobra de
um esquema com três zagueiros, atua praticamente por toda a Taça Guanabara, tem
boa atuação no empate com o Vasco (1-1, jogo do gol do André Cruz), mas é um
dos piores na desastrosa derrota para o Bangu (1-2) que elimina a equipe. A
seguir, se lesiona e perde o restante do Estadual.
A inatividade relativamente longa
suscita a lembrança de um dos mais implacáveis adágios dessas coisas do mundo
da bola. No futebol, infelizmente, na montagem de uma equipe que se pretende
competitiva e vencedora, não é possível alinhar o jogador pelo que foi. Não
importa se o atleta foi o melhor, ou um dos melhores. O que se faz relevante é
a contribuição de hoje, o que o jogador ainda pode produzir, seja pelo futebol
bruto, seja pela capacidade de liderar, e se isso se torna de alguma forma
útil. É cru. É frio. Mas é o que é.
E assim, sem alarde, no meio da
Copa do Mundo, com todos voltados para o futebol vigoroso e medíocre praticado,
sem a mais esquálida exceção, pelos 24 participantes, Leandro avisa que está
parando, aos 30 anos. Sai da vida para entrar na história, eleva-se da mundana qualidade de
boleiro e erige-se ao altar dos mitos, dos monstros sagrados, daqueles que,
para toda a eternidade flamenga, serão adorados como os maiores.
Felizes os que se deliciaram com sua arte.