domingo, 16 de novembro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Essa semana não posso me furtar a soltar algumas linhas sobre o famigerado “Caso Héverton”, que começa a desenvolver desdobramentos um pouco mais sólidos na direção de uma conclusão que me soa óbvia desde a sua gênese.

Assim, de antemão retrato-me com os que ora padecem de certa saturação acerca do tema, embora pontue que, a bem de um pretenso saneamento do nosso futebol (sim, por vezes me traem devaneios otimistas), veja necessário um completo exaurimento da questão.

Tornando ao raciocínio inicial, todo esse caso se mostrou desnudado por uma clareza cristalina, límpida, sem qualquer laivo de mistério ou ponto obscuro em sua essência nuclear, desde que inicialmente noticiado. A história enevoada sob as entrelinhas dos periódicos que se dedicaram a narrar as consequências da escalação, em tese, irregular de Héverton e André Santos, contém elementos que, concatenados e justapostos em uma sequência lógica, fazem bocejar aqueles que se dedicam a construir teorias extravagantes e enredos criativos. Atores, personagens, principais interessados, todos compõem um enredo de leitura simples, “conspiração” ginasial. Daí minha indignação à época.

Sim, porque nós flamengos, ao invés de atentarmos para o real cerne da questão, qual seja uma quartelada preparada com certa antecedência que, a golpes de caneta, apeou do escol do nosso futebol um clube mais fragilizado economicamente, priorizamos o empalamento da reputação dos “responsáveis” por colocar o controverso gorducho André Santos em campo, no festivo amistoso disputado contra o Cruzeiro na última rodada do Brasileiro-2013. Ao invés de bradar contra o verdadeiro assalto que nos pôs à cara o retorno aos lúgubres anos 1986-87, em que ninguém batia um pênalti sem estar amparado por uma liminar, apontamos nosso dedo para “a diretoria incompetente”, que “quase rebaixou o Flamengo”. Sim, houve um erro de avaliação dos dirigentes. Na minha visão, faltou malícia e vivência. Mas, no âmbito estritamente técnico, a decisão de escalar o atleta é amplamente defensável, inclusive havendo indícios de que teria sido avalizada por instrumentos internos da própria CBF (entre eles, o tal BID eletrônico). E guardo a pétrea convicção de que, fosse caso isolado, o clube nem seria alvo de citação.

Voltando ao Héverton.

Os primeiros sinais de fumaça datam de 25 de novembro, faltando duas rodadas para o final. Uma atmosfera golpista começava a ser criada, através de uma movimentação de gabinetes que esquadrinhava as vísceras (escalações, arrecadações, inscrições) dos clubes “menos favorecidos”, a Portuguesa entre eles. Pouco depois, um dos principais blogs que cobrem o Fluminense (clube principal interessado na questão) exortava, quase ostensivamente, sua diretoria a “agir nos bastidores”, para que “a lógica prevalecesse” (mais tarde, diante da repercussão negativa, alegariam ter sido “mal-interpretados”, como é usual nesses casos).

Encerrada a rodada final, e os quatro piores clubes da competição (Fluminense, Vasco, Ponte Preta e Náutico) devidamente remetidos à segunda classe, eis que, após certo interregno, explode a bomba, indicando que dois jogadores haviam sido escalados de forma irregular, justamente na rodada que definiu os clubes a serem rebaixados. E se “justiçou” a Portuguesa, com o Flamengo aposto como “o álibi perfeito” para garantia da “lisura” do processo.

Decorrido quase um ano, a história torna à tona.

E o que salta aos olhos é a esgarçada, despudorada tentativa de, aos arreganhos, praticar um revisionismo que resvala para o grotesco, espancando o livre curso dos fatos com uma lisa desfaçatez de corar meretrizes. Tenta-se, a golpes de marreta, enfiar vítimas e réus na mesma sacola fétida, recorrendo a “suposições” e engavetando convenientemente os fatos.

Ocorre que, ao contrário de 1987, o ano de 2013 foi ontem.

Com efeito, qualquer criança de seis anos, dedicando pouco menos de 10 minutos a uma pesquisa preguiçosa nos wikis e googles da vida, constatará, de forma irretorquível e inescapável, que o Flamengo, campeão da Copa do Brasil, livrou-se matematicamente de qualquer possibilidade de rebaixamento na 36ª rodada, após derrotar o Corinthians no Maracanã (1-0, gol de Paulinho). A salvação matemática foi objeto de destaque nos jornais, sempre muito diligentes quando se trata de juntar os conceitos “Flamengo” e “rebaixamento” na mesma frase. Salvo, mandou um time reserva a Salvador, e na última rodada programou uma grande festa das faixas com o Cruzeiro. Partida iniciada às 19 horas de sábado, antecipada justamente por ser um amistoso, jogo sem qualquer influência maior na tabela de classificação.

Daí, onze meses após, alguns torcedores, que brandem suas canetas e transfundem seus teclados em estandartes para escarrar seu grotesco clubismo, julgando-se protegidos sob o título de “jornalistas”, expelem em jornais e telas suas “verdades”. “O Flamengo brigava contra o rebaixamento na última rodada”, vomita um. “Os principais suspeitos do suborno são o Flamengo e...”, insinua outro, sequer preocupado em ser sutil. Papeletas cinzentas com teorias delirantes, outrora relegadas à pecha de “jornalismo-marrom”, são içadas à categoria de evidências dogmáticas.

A verdade, amigos, é que vivemos um tempo em que boa parte da imprensa não procura noticiar o que está acontecendo, mas o que gostaria que estivesse acontecendo.

A frase “Flamengo rebaixado” e suas derivações possui forte apelo sensorial, quase afrodisíaco. Muitos, ao lhe pousarem os olhos, são tomados por fortes tremores e suores, gemem e arfam até entregarem-se passivos aos seus pensamentos mais lúbricos, lambuzando-se na delícia das fantasias alojadas em seu íntimo recôndito. Saciados após envolvidos por Sodoma e Onã, recompõem-se. Doravante, pidonhos, quererão mais.

E, em nome de uma pretensa “liberdade de expressão”, a verdade (ou sua busca) segue sendo o elemento mais negligenciado, editorias criam suas “histórias” e as pavimentam com qualquer porcaria que lhes sirva de argumento. Os fatos? Ora, os fatos? Se não corroboram a tese, azar o deles. E de Nelson Rodrigues.

Um clube salvo com duas rodadas de antecedência resolve escalar um jogador irregular no último jogo. Claro, como já sabe que o atleta estará irregular, passa a semana montando um esquema de suborno para que outro time seja rebaixado em seu lugar. Veja, um clube que não corre risco de rebaixamento arma uma operação para rebaixar outro clube. Deposita o dinheiro com antecedência, ANTES DE SEU PRÓPRIO JOGO, e assim garante de vez estar livre de um rebaixamento do qual se salvara duas rodadas antes.

Escreva esse parágrafo acima, exatamente com esses termos, e o publique. A maioria esmagadora rirá de sua cara. Agora troque o termo “um clube” por “Flamengo”. A mesma maioria meneará a cabeça, ares sábios: “é, faz sentido”.

Espero que essa investigação esteja de fato sendo conduzida com a seriedade e a isenção que o assunto merece. Que pontos ainda obscuros, como a estranha contundência do procurador-vedete do STJD, a pantomima encenada nos “julgamentos” e seus votos previamente prontos, redigidos e timbrados, a atuação do próprio tribunal em todo o processo, as mal-explicadas relações entre CBF e seus patrocinadores, entre outros, sejam devidamente esclarecidos, ou ao menos discutidos. Que o Flamengo, mais que apoiar e avalizar o processo de acusação, defenda-se atirando, não se permitindo macular por ilações emanadas por personagens de íntima relação com o lodaçal do nosso futebol. E que, a exemplo do Calciopoli-2006, punam-se com rigor clubes, dirigentes e patrocinadores, banindo e rebaixando os responsáveis, mostrando à sociedade que manobras dessa natureza não são mais toleradas.

O Fluminense foi rebaixado dentro de campo. Fora dele, já está rebaixado desde 1996, quando adotou a virada de mesa como recurso institucional.

Finalizo externando que guardo para mim a forte convicção de que esse “Caso Héverton” contém muito mais elementos do que simplesmente a escalação irregular de um jogador. Como são suposições, guardo-as para mim. Mas pontuo que, em Engenharia, costuma-se dizer que um acidente é a junção de vários elementos que convergem para um mesmo evento. E vários fatos se encadearam, nas últimas rodadas, de forma notavelmente coincidente, construindo a perfeita situação para o golpe.

E, como costumo dizer, tenho séria dificuldade em acreditar em coincidências.

Boa semana a todos,



PS – Muitos “comemoraram” a vitória do Eurico na Fla-twitter e afins. Eu não seria tão assertivo em decretar o fim do Vasco. Ao contrário, acho que os vices, em curto prazo, tomarão de volta do Fluminense o posto de “vilão nº 1”, voltando a ser os “rivais da hora”. Mas isso não é necessariamente ruim. O Vasco é um clube, em termos de torcida, muito mais expressivo que o Fluminense. O reaquecimento dessa rivalidade pode ser bom para o futebol nacional, tão contaminado por uma “ditadura paulista” que lhe querem enfiar goela abaixo.