Saudações flamengas a todos,
Domingo passado enfim pude
desligar a televisão de alma lavada.
Nem tanto pela graciosa surra que
o Flamengo impôs ao neo-badalado Cruzeiro e seu futebol bonitinho alçado ao
panteão de “máquina de jogar bola”, “esquema moderno e irresistivel”,
“engrenagem perfeitamente ajustada”, entre outras bobagens com que a imprensa
costuma lamber os que ocupam as primeiras posições da tabela, alçando a
jogadores de primeira linha coisas como Nilton, Egídio e quetais.
Não, os 3-0, em que pese a
mundana satisfação de desfrutar o justiceiro Mengão aplicando a Lei do Talião
(fico imaginando o ximenes deles bradando no vestiário “era pra ser oito!
Oito!”) e devolvendo, dente por dente, revés recente, como lhe soía praticar em
anos pretéritos (hei de lembrar a clássica história dos 6-2 de 1980, vingança sobre o Palmeiras anunciada de véspera, ou os 4-1 de 2003 sobre o boquirroto
Fluminense, ressarcindo goleada imposta semanas antes).
Também não foi a vívida
satisfação ao constatar as verdadeiras cambalhotas retóricas cometidas pelos
torcedores de microfone, a soldo ou não, que tentaram, desafiando as leis da
fisica e da aritmética, transformar um verdadeiro passeio, um chocolate, um
atropelamento, em um resultado fortuito, decorrente de “falhas pontuais”.
Naturalmente, com direito às hilárias insinuações de “favorecimento de
arbitragem”, ancorados num lance esquisito em que o atacante deles e o nosso
zagueiro andaram se enroscando dentro da área aos QUARENTA E SEIS minutos do
segundo tempo.
Tampouco o que me deixou
satisfeito foi a distância de sete pontos aberta para a “zona da confusão”, uma
vez que a pretensa luta contra o rebaixamento se baseia em uma premissa
inexistente. O Flamengo não está sequer remotamente ameaçado de descenso, desde
que atue de forma compatível com as limitações de seu elenco. E pela enésima
vez, como já demonstrara contra os mais bem colocados do campeonato, quando
atua com foco e determinação é capaz de enfrentar de igual para igual qualquer
time do país, o que não diz muito, dada a atual indigência técnica e tática do
futebol nacional, similar talvez somente à vivida no início dos anos 1990.
Não, senhoras e senhores, o que
me colocou um sorriso na cara e tornou-me ensolarada a noite daquele domingo
foi algo mais prosaico.
E robusto.
Foi o Anderson Pico.
Não, não enlouqueci, não surtei,
nem preciso de remedinhos. Também não se trata de trombetear que encontramos a
solução para a lateral. Não é o caso, muito menos, de defender contratação,
renovação, rescisão, com base em 90 minutos de uma atuação aliás discreta.
Nessas linhas não se falará de um novo Júnior, um novo Leonardo, ou (vá lá) um
novo Juan Marrentinho. Nada disso, nem perto disso. Vamos com calma.
Tornando ao texto, o gorducho
Anderson Pico me entregou no domingo algo em falta há anos.
Com efeito, desde o hexa o
torcedor flamengo tem sido obrigado a conviver com as equipes de futebol
indolente e vagabundo da Era da Nadadora (salvo alguma coisinha em 2011), e com o
futebol triste, sisudo, agauchado e europeizado da Era dos Carecas. Jogos do
Flamengo, via de regra, costumam se revestir em verdadeiras jornadas de superação,
sangue e dor, com as excruciantes vitórias chegando aos gemidos, torcedores
exauridos e exangues após 90 minutos de sofrimento, em que ganhar de
qualquer vitorinha da vida é uma jornada épica, heróica, digna de constar em
ilíadas.
Dirão os apressados, e o que tem
o Pico a ver com isso?
Percebam, amigas e amigos
flamengos, a fortuidade da coisa. Eis que, numa bela tarde ensolarada de
Maracanã lotado, emulando (com certa boa vontade, admito) a mágica época em que
se revestia de programa obrigatório para o carioca que esticava da praia ao
estádio pra ver o Mengão amassar suas vítimas, dia sempre regado a cerveja
gelada, eis que nesse cenário místico, mitológico, entra em campo ostentando o
mais sagrado dos mantos, o sacro pano negro e rubro, eis que ali, entre os
nossos onze heróis, os nossos onze vingadores, os onze homens em cujos ombros
repousa a missão de prover a felicidade de milhões, entre esses eleitos alinha
um simpático gordinho, porte físico de torcedor de sofá, engalanado em seu
modelito GG. Reconheço que a testa franziu, o nariz torceu, o muxoxo correu,
“que porra é essa?”, “que prato cheio para a imprensa...”, alguém recordou
“isso que perdeu dez quilos”, entre outras ponderações pouco edificantes. Fato
é que estava lá, altaneiro e todo pimpão, entre nossos onze apolos, o brioso
Anderson Pico. Sim, temi pelo pior.
E aí é que se deu a coisa.
Porque, trilado o apito, certa
horda de bonecos azuis começou a se assanhar para o lado do nosso valente
heroi, que, além de espanar um a um, demonstrou inteligência tática, não
deixando seu setor desguarnecido em nenhum momento, sabendo ocupar seu espaço,
e talento. Sim, talento. Para surpresa e gáudio dos presentes, o gordinho
começou a tratar macio a bola, distribuindo passes precisos, fazendo uma saída
de bola qualificada, enfim, conferindo certo viço a um setor historicamente
maltratado e solapado por uma crônica indigência técnica.
Legal, o rapaz sabe jogar bola.
Mas agora é que vem a questão.
Segundo tempo, lá pelo meio perto
do final, acho que coisa de 35 minutos, algo assim, jogo já 3-0, o adversário
todo animadinho querendo dar pressão após algumas alterações ousadas. Espirra
uma bola lá pra lateral-esquerda, o nosso protagonista vai dominar, mas será
acossado por dois mineiros. Um deles resolve ir à vera, cai pra dentro, bufa,
espuma, arregala os olhos, cerra os dentes e mergulha, “vou tomar a bola desse
gordo”, e se atira qual um huno. Com extrema tranquilidade, nosso personagem
ajeita o corpo e, num gesto mecânico, como se estivesse lendo um jornal, faz um
meneio, um reboleteio, um meio gingado. E, sem tocar na bola, descadeira o
cruzeirense que, grogue, quase vai ao piso.
Risos.
Como se não houvesse limite para
a falta de amor-próprio, o azzurro volta à carga, ensandecido, estabanado, resfolegante.
O bravo Pico faz um carinho e dá um leve tapa na bola, como aquela brincadeira
de menino, jogando de um pé pra outro. E então o cruzeirense se estaboca no
chão, pernas pra cima, numa queda circense, e se desmancha aos cacos. Parece
que teve pedaço do cara que foi parar no Setor Sul.
Sim, senhoras e senhores, então
toda a tensão se desvaneceu, toda a concentração se foi, todo o meu corpo, até
então retesado e contrito na seriedade do prélio simplesmente se desvaneceu
canalizando sua energia para uma tonitruante, ruidosa e caudalosa gargalhada. E
os minutos finais do encontro se me transmutaram em um espetáculo picaresco, em
que onze ratos azuis eram espicaçados em sua dignidade pelos maldosos representantes da
Nação. O propalado encontro contra a “imbatível” máquina azul se tornou uma
jocosa comédia em que até arremesso lateral suscitava sorrisos.
A boca que o Anderson Pico deu no
cruzeirense, deitando-lhe ao chão, teve qualquer coisa de libertadora, de
redentora. Porque ali, em cadeia nacional, para todo o Brasil assistir, o Flamengo
riu da cara do adversário, das dívidas, dos seus problemas, dos tempos
difíceis, do ticket médio, das linhas de quatro, do diabo. O mais improvável dos atores trouxe de volta nossa essência jocosa, irreverente, brincalhona, brasileira.
Domingo passado o Flamengo saiu vencedor
de campo, o que é até algo comum.
Mas no domingo o Flamengo me deu diversão. Depois de anos e anos.
Obrigado, Anderson.