Saudações flamengas a todos.
Quem acredita que o assalto a mão
armada ocorrido no Morumbi quarta-feira passada é algo fortuito certamente não
se lembra que roubar jogos com despudor e descaro é marca registrada do
“poderoso” futebol paulista desde o início dos tempos. O goiano do Morumbi
repetiu Marsiglia (2-2 com o Corinthians em 1993) e o conterrâneo Tonhão (2-4
Palmeiras, Copa do Brasil 1999). Não são sequer sutis. Sim, “árbitros erram
contra e a favor”, e com essa conversinha o São Paulo foi agraciado com DOZE
pontinhos extras na sua campanha do título de 2008.
Quanto ao texto, hoje retomo a
série dos anti-heróis flamengos, dos que tiveram tudo para se tornar ídolos
atemporais e, por um motivo ou outro, não lograram êxito. Boa leitura.
OS ANTI-HERÓIS, PARTE 3 - BEBETO
Hoje é dia de festa.
Hoje tem Gávea lotada de
rubro-negros se espremendo na prancha de concreto do Bastos Padilha. Hoje tem
famílias orgulhosas catequizando seus pimpolhos, que vão todos pimpões ornados
em preto e vermelho ver seus heróis. Hoje é dia de Flamengo ao vivo, a cores,
em carne e osso. Dia de pipoca, guaraná e Charanga. Dia de colocar o assunto em
dia enquanto os craques desfilam no gramado e arrancam mais uma vitória pra sua
gente ver. Hoje é dia de celebrar.
Será?
O caríssimo time montado para a
conquista avassaladora e invicta do Estadual perde peças vitais. A reposição
existe, mas é tímida. Mesmo assim, o Flamengo respira otimismo para a disputa
do Brasileiro, pois ainda existe uma base de certa qualidade, o treinador foi
mantido e o elenco, em que pese algumas carências sérias (como na
lateral-direita e no comando do ataque) parece equilibrado. Ademais, vem de
conquistar a Copa Ouro, e no Brasileiro conseguiu duas vitórias em dois jogos. O
torcedor flamengo anda, pois, de bem com a vida.
O time entra em campo. Festa. A
torcida começa a gritar os nomes dos jogadores. “Ro-ger, Ro-ger”, “É Ronaldão,
é Ronaldão”, “Né-lio, Né-lio”, entre outros. Sávio, o Anjo (ou Diabo, como
queiram) Louro, é o mais festejado, com cantos e palmas mais demorados. Agora
só falta um nome. Alguns começam, “Be-be-to, Be-be-to”. Mas ao mesmo tempo
irrompem outros gritos. Apupos. Rabiscos de vaias. Assobios. O coro sai tíbio,
pálido, sem vida, sem vontade.
Algo está errado. O que parece
festa logo se tornará um acerto de contas.
Bebeto chega ao Flamengo em 1983. Muito magro e franzino, aparece
jogando futebol de salão em Salvador, chama a atenção do Bahia, chega a treinar
no tricolor alguns meses mas se transfere para o maior rival, o Vitória, que
lhe acena com o pagamento de ajuda de custo. No rubro-negro baiano, que vive
uma das piores fases de sua história, não demora a se destacar e com apenas 16
anos já ganha oportunidade na equipe principal. Seu futebol agudo e rápido ao
extremo encanta Aymoré Moreira, veterano treinador radicado na Bahia, que passa
a recomendar enfaticamente o garoto a jornalistas, dirigentes e treinadores.
Curioso, Jair Pereira o convoca para a Seleção de Juniores e o Flamengo,
atento, contrata o menino após discretamente ter enviado olheiros para
acompanhar o seu desempenho. Aymoré, empolgado, vaticina: “o Flamengo fez
o negócio da década. Esse menino vai fazer história lá. Vai liderar uma Era,
como o Dida, o Zico.”
Começa a partida, o Flamengo tem
a posse de bola. O adversário está fechado, mas o rubro-negro não tem pressa,
toca a bola com calma. Ou tenta, o gramado está duro, a bola pula. A torcida se
impacienta. Nélio perde sozinho, sem marcação, um gol daqueles inacreditáveis.
A atmosfera aos poucos vai se adensando. Apenas a Charanga, em seu tom monocórdio,
tenta manter o bucolismo da tarde de quarta-feira.
Bebeto rapidamente conquista e impressiona a exigente panela de
pressão flamenga. O fato de ser o único vascaíno em uma família de rubro-negros
fanáticos (por causa de um avô a quem era muito ligado, chamado Vasco) é
minimizado pela dedicação com que o garoto se atira aos treinamentos e pela
qualidade vivamente diferenciada que demonstra diante de todos. Com efeito, o
baianinho mostra-se inteiramente à vontade convivendo com monstros sagrados
como Zico, Júnior, Adílio, Leandro. Com isso, não demora para, mesmo sem a
mínima estrutura física, ser lançado entre os profissionais. Estreia entrando
no segundo tempo de um jogo complicado, contra o Tiradentes-PI no Maracanã, não
pelo adversário, mas pelo péssimo clima entre a torcida e o moribundo treinador
Carpegiani (que pedirá demissão apesar dos 2-0). Mesmo diante de uma massa
irritada, Bebeto faz boa partida e sai de campo aplaudido. “O menino mostrou
potencial”, dizem os jornais. Pouco mais tarde, Bebeto ainda atuará na Final do
Brasileiro, primeiro jogo contra o Santos no Morumbi, fazendo ótima partida e
quase arrancando um improvável empate, e em alguns jogos da Taça Guanabara, em
um dos quais marcará seu primeiro gol pelo Flamengo, na derrota (1-2) para o
Goytacaz, em Campos. Contudo, algumas demonstrações de imaturidade (reclama
enfaticamente ao ser substituído em um Fla-Flu), seu corpo nitidamente franzino
e, principalmente, a pesada crise que desaba na Gávea após a venda de Zico
recomendam calma no lançamento do jovem. E Bebeto é preservado por seis meses.
Vai fazer reforço muscular e aguardar sua hora.
O Flamengo segue tentando atacar,
mas vai batendo na parede. A sólida defesa gaúcha vai conseguindo manter os
cariocas à distância. Sávio chega atrasado em uma bola. Aparecem as primeiras
vaias.
1984 assinala a ascensão definitiva de Bebeto. Utilizado aos poucos no
Brasileiro, ganha uma oportunidade mais sólida ao entrar numa partida contra o
América, já na Terceira Fase. E, em uma atuação de gala, transforma o que seria
um jogo complicado em um monólogo. O Flamengo faz 3-0 e podia ter sido de seis.
Júnior, impressionado, declara ao final, “esse Bebeto não pode mais sair”, e o
Flamengo, antes claudicante, passa a voar em campo. Goleia, massacra, passa por
cima de quem aparece pela frente (que o diga o Santos, impiedosamente
massacrado por 5-0). Bebeto junta velocidade e contundência a um time de
técnica primorosa. E sua “ausência” (é escalado no sacrifício, sem condições de
jogo, o tornozelo inchado) é um dos fatores da eliminação flamenga em um
Brasileiro em que parecia arrancar para vencer. Mas Bebeto não perderá mais a
condição de titular. Os títulos mais importantes ainda
demorarão um pouco, mas a Seleção Brasileira rapidamente aparecerá, fruto de
suas fabulosas atuações na Primeira Fase do Brasileiro de 1985 (é o nome do
campeonato). Zico retorna à Gávea, mas não terá condições, vítima de um crime,
de atuar com regularidade. Bebeto passa a ser, dentro de campo, um dos
principais jogadores do Flamengo. Por vezes o principal.
Enfim o Flamengo perde a
paciência e começa a atacar com mais jogadores. Desesperado e antevendo o
desastre, o treinador grita por calma. Em vão. Mais um ataque frustrado, o erro
no passe, o contragolpe, o gol. O Flamengo sai atrás no placar.
Os craques da Era Zico vão saindo de cena. É a hora de uma nova
geração, que terá sua prova de fogo no Estadual de 1986. E Bebeto mostra-se
pronto para, em que pese seu temperamento arredio, liderar tecnicamente o time
de Jorginho, Adalberto, Aldair, Zé Carlos, Zinho e Ailton, entre outros. E o
punhado de garotos dá ao Flamengo o Estadual de 1986, com Bebeto marcando gol
na final. Aliás, Bebeto vence a disputa particular com outro jovem talento, o
vascaíno Romário, e é eleito “Rei do Rio” e craque da competição. Após um
período de instabilidade, onde convive com lesões e brigas na Seleção,
reencontra seu melhor futebol e, comandado por Carlinhos e Zico,
marca os gols que dão ao Flamengo o tetracampeonato brasileiro em 1987. É seu
seguindo título brasileiro pelo rubro-negro, o primeiro como protagonista.
Termina o primeiro tempo. O
Flamengo sai de campo debaixo de pesadas vaias. Alguns jogadores começam a ser
hostilizados. Entre eles, Bebeto.
A conquista do Brasileiro dá a Bebeto a segurança definitiva de
jogador pronto. O baianinho, que agora atua como “falso nove”, atacante com
inteira liberdade de movimentação, passa a acumular e a empilhar gols com
facilidade. A saída do desafeto Carlos Alberto Silva faz com que Bebeto se
afirme em definitivo na Seleção Brasileira. E no início de 1989, o treinador
Telê Santana consegue encontrar uma formação que torna o Flamengo uma máquina
de marcar gols. E Bebeto, metendo dois, três, até quatro por jogo, é, junto com
Zico, o principal nome da conquista da Taça Guanabara, em cuja partida final,
aliás, marca dois gols. Bebeto vive seu auge no Flamengo, e é tido por muitos
como o principal jogador brasileiro em atividade.
O Flamengo volta a campo.
Recomeça a partida. O time piora. O adversário, melhor agrupado, não permite ao
rubro-negro sequer atingir sua intermediária. O torcedor percebe. E poderia
empurrar, como usual. Mas hoje, não. Hoje vai ser diferente. Vai começar o
inferno.
O sucesso de Bebeto chama a atenção dos principais clubes da Europa.
Alguns (Milan, Real Madrid) sondam. Outros (Roma) tentam abrir negociação. Mas
é o Bayern Munique o mais enfático. Manda representante, há reuniões. Tudo
parece caminhar bem. Mas os alemães exigem que a transação seja acertada mais
cedo, para facilitar a adaptação. Bebeto teria que largar a Taça Rio. O
Flamengo não aceita. Os alemães e o procurador de Bebeto pressionam. O
procurador, aliás, ameaça levar Bebeto a tiracolo para a Europa, oferecendo o
jogador. Exige salário europeu ao Flamengo. Com a confusão, naturalmente o
desempenho de Bebeto (e de outros jogadores, também assediados) cai
assustadoramente na Taça Rio, os gols escasseiam, o time perde rendimento e no
fim acaba perdendo o campeonato. A briga entre a despreparada diretoria flamenga
e o intransigente procurador de Bebeto segue inflamável. O Bayern desiste do
negócio. Irritado, o procurador começa a escutar com mais carinho as (cada vez
mais insistentes) sondagens do Vasco (clube que costuma aporrinhar jogadores
flamengos renovando contrato). A coisa evolui. A diretoria flamenga somente
percebe quando o negócio já é irreversível. E, em uma das mais inacreditáveis e
desastrosas demonstrações de incompetência administrativa de sua história, o
Flamengo perde seu principal jogador para o maior rival da época.
Fabiano sai jogando, dá a
Iranildo, que tenta sair rápido. A bola sobra a Márcio Costa, que corrupia e
toca pro lado a Gilberto, daí a Bebeto, que vem buscar jogo. “Uuuuuuuuuh”,
“Chorão, Chorão”, “Vascaíno, Vascaíno!”, “Filho da p...”
A passagem de Bebeto pelo Vasco é turbulenta, quase um fiasco. É bem
verdade que o jogador logo consegue um título brasileiro pelo novo clube, mas
atuando em jogos esporádicos, sem uma sequência sólida. Nos meses seguintes,
começa a sofrer com lesões persistentes e inexplicáveis, que comprometem
inclusive sua atuação na Copa do Mundo, onde seria titular certo do time de
Lazaroni. Ademais, o Vasco passa a viver uma seca de títulos, que coincide com
a ascensão do Flamengo de Júnior. Com efeito, enquanto Bebeto padece no rival,
o Flamengo conquista dois títulos nacionais, um estadual e uma Copa Rio, com o
artilheiro Gaúcho entronizado como novo ídolo e goleador. Bebeto passa a ser
associado a uma época de vacas magras e fracassos no Vasco, e com isso sua torcida
perde por ele o encanto inicial. E ainda há os jogos contra o Flamengo. Sempre
visivelmente perturbado quando enfrenta o ex-clube (a ponto de, contrariando
sua natureza, provocar e fustigar o adversário pelos jornais antes dos jogos),
Bebeto empilha atuações irreconhecíveis, chegando a ser expulso ou saindo antes
do final. Enfrenta o Flamengo em dez ocasiões. Perde seis e vence duas. Quando,
enfim, consegue retomar seu bom futebol, no início de 1992, o Vasco o negocia
correndo com o primeiro interessado, o Deportivo La Coruña, equipe da segunda
divisão espanhola que acabara de ser promovida. Pouco para quem despertara,
três anos antes, o interesse das principais equipes européias.
A torcida definitivamente se
desinteressa da partida e transforma a Gávea em um pátio de imolação. Não
aguarda mais Bebeto tocar na bola. Resolve vaiá-lo de forma contínua,
interminável. Pragueja toda sorte de cânticos ofensivos, a ele e sua mulher
Denise, que está nas arquibancadas com o pequeno Mattheus no colo. Mas Denise não
é ameaçada fisicamente (há seguranças). “Bebeto é o c...lho”, “Romário,
Romário!”, “Ei Bebeto, vá t...”, as vaias chicoteiam o lombo de uma equipe que,
perturbada, não ameaça e não chega nem perto de um imerecido empate. O
protagonista involuntário do triste espetáculo zanza quase inerte dentro de
campo, devastado e vivamente abalado, quase às lágrimas.
A passagem pelo Deportivo recupera a carreira de Bebeto. Os espanhois
montam uma boa equipe, competitiva o suficiente para se juntar a Real Madrid e
Barcelona na luta pelos principais títulos nacionais da temporada. Os gols
voltam em profusão, e Bebeto se torna ídolo de uma cidade, volta à Seleção
Brasileira e é um dos destaques no tetracampeonato mundial de 1994. Realizado,
resolve retornar ao Brasil dois anos depois e, como uma espécie de desagravo,
escolhe o Flamengo, embora o Vasco acene com uma proposta melhor.
“Fora daqui, chorão filho da
p...!”, “Volta pro Vasco do Eurico, seu m...!”, os impropérios seguem mesmo após o
apito final. Por pouco os xingamentos não se transformam em invasão, ameaça que
não se concretiza por conta de um numeroso e eficaz policiamento. Atônito,
aparvalhado, Bebeto não consegue entender a hostilidade, as vaias. O time jogou
mal, ele mesmo jogou mal, é fato, mas não parece haver motivo para tamanha
virulência. Os jornais, nos dias seguintes, também parecem confusos na
tentativa de explicar e analisar a extensão e a contundência das vaias e das
ofensas.
É Zico, o Eterno Zico, vida
inteira dedicada ao clube, quem resolve o enigma, com indiscutível
simplicidade. “Claro que não concordo com nenhuma forma de violência, não
aceito e acho lamentável. Mas isso que aconteceu com o Bebeto só tem uma
explicação. 1989. A forma como aconteceu, o torcedor se sente traído. Jogador é
profissional, tem que ser, mas há certos limites, não pode passar anos num clube e sair jurando amor ao rival. Torcedor não releva. Não
esquece. Bebeto até pode dar certo, é grande jogador, mas vai ter que lutar
muito.”
A negra tarde da derrota para o
Juventude na Gávea azeda irremediavelmente a relação entre Bebeto e a torcida
do Flamengo. O atacante ainda atuará algumas partidas, marcará alguns gols,
manterá o Flamengo nas primeiras posições por algumas rodadas, mas tudo
logo ruirá, o time desabará e se arrastará de forma melancólica até o final da
competição. Antes disso, Bebeto forçará apressadamente sua saída, sendo
negociado com o Sevilla-ESP, onde também não permanecerá muito tempo, iniciando
o processo de decadência em sua carreira.
Bebeto é frequentemente lembrado
e aparece em entrevistas e documentários relatando as grandes conquistas
flamengas de que participou. Neles, é impossível deixar de lamentar o terrível
desperdício, o desfecho de uma história em que o baianinho parecia predestinado
a exercer um papel relevante. É bem verdade que Bebeto foi grande, foi muito. Mas
poderia ter sido mais. Muito mais.
Um erro. Uma decisão precipitada.
E o vaticínio de Aymoré Moreira se perdeu.