domingo, 28 de setembro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Quem acredita que o assalto a mão armada ocorrido no Morumbi quarta-feira passada é algo fortuito certamente não se lembra que roubar jogos com despudor e descaro é marca registrada do “poderoso” futebol paulista desde o início dos tempos. O goiano do Morumbi repetiu Marsiglia (2-2 com o Corinthians em 1993) e o conterrâneo Tonhão (2-4 Palmeiras, Copa do Brasil 1999). Não são sequer sutis. Sim, “árbitros erram contra e a favor”, e com essa conversinha o São Paulo foi agraciado com DOZE pontinhos extras na sua campanha do título de 2008.

Quanto ao texto, hoje retomo a série dos anti-heróis flamengos, dos que tiveram tudo para se tornar ídolos atemporais e, por um motivo ou outro, não lograram êxito. Boa leitura.

OS ANTI-HERÓIS, PARTE 3 - BEBETO

Hoje é dia de festa.

Hoje tem Gávea lotada de rubro-negros se espremendo na prancha de concreto do Bastos Padilha. Hoje tem famílias orgulhosas catequizando seus pimpolhos, que vão todos pimpões ornados em preto e vermelho ver seus heróis. Hoje é dia de Flamengo ao vivo, a cores, em carne e osso. Dia de pipoca, guaraná e Charanga. Dia de colocar o assunto em dia enquanto os craques desfilam no gramado e arrancam mais uma vitória pra sua gente ver. Hoje é dia de celebrar.

Será?

O caríssimo time montado para a conquista avassaladora e invicta do Estadual perde peças vitais. A reposição existe, mas é tímida. Mesmo assim, o Flamengo respira otimismo para a disputa do Brasileiro, pois ainda existe uma base de certa qualidade, o treinador foi mantido e o elenco, em que pese algumas carências sérias (como na lateral-direita e no comando do ataque) parece equilibrado. Ademais, vem de conquistar a Copa Ouro, e no Brasileiro conseguiu duas vitórias em dois jogos. O torcedor flamengo anda, pois, de bem com a vida.

O time entra em campo. Festa. A torcida começa a gritar os nomes dos jogadores. “Ro-ger, Ro-ger”, “É Ronaldão, é Ronaldão”, “Né-lio, Né-lio”, entre outros. Sávio, o Anjo (ou Diabo, como queiram) Louro, é o mais festejado, com cantos e palmas mais demorados. Agora só falta um nome. Alguns começam, “Be-be-to, Be-be-to”. Mas ao mesmo tempo irrompem outros gritos. Apupos. Rabiscos de vaias. Assobios. O coro sai tíbio, pálido, sem vida, sem vontade.

Algo está errado. O que parece festa logo se tornará um acerto de contas.

Bebeto chega ao Flamengo em 1983. Muito magro e franzino, aparece jogando futebol de salão em Salvador, chama a atenção do Bahia, chega a treinar no tricolor alguns meses mas se transfere para o maior rival, o Vitória, que lhe acena com o pagamento de ajuda de custo. No rubro-negro baiano, que vive uma das piores fases de sua história, não demora a se destacar e com apenas 16 anos já ganha oportunidade na equipe principal. Seu futebol agudo e rápido ao extremo encanta Aymoré Moreira, veterano treinador radicado na Bahia, que passa a recomendar enfaticamente o garoto a jornalistas, dirigentes e treinadores. Curioso, Jair Pereira o convoca para a Seleção de Juniores e o Flamengo, atento, contrata o menino após discretamente ter enviado olheiros para acompanhar o seu desempenho. Aymoré, empolgado, vaticina: “o Flamengo fez o negócio da década. Esse menino vai fazer história lá. Vai liderar uma Era, como o Dida, o Zico.”

Começa a partida, o Flamengo tem a posse de bola. O adversário está fechado, mas o rubro-negro não tem pressa, toca a bola com calma. Ou tenta, o gramado está duro, a bola pula. A torcida se impacienta. Nélio perde sozinho, sem marcação, um gol daqueles inacreditáveis. A atmosfera aos poucos vai se adensando. Apenas a Charanga, em seu tom monocórdio, tenta manter o bucolismo da tarde de quarta-feira.

Bebeto rapidamente conquista e impressiona a exigente panela de pressão flamenga. O fato de ser o único vascaíno em uma família de rubro-negros fanáticos (por causa de um avô a quem era muito ligado, chamado Vasco) é minimizado pela dedicação com que o garoto se atira aos treinamentos e pela qualidade vivamente diferenciada que demonstra diante de todos. Com efeito, o baianinho mostra-se inteiramente à vontade convivendo com monstros sagrados como Zico, Júnior, Adílio, Leandro. Com isso, não demora para, mesmo sem a mínima estrutura física, ser lançado entre os profissionais. Estreia entrando no segundo tempo de um jogo complicado, contra o Tiradentes-PI no Maracanã, não pelo adversário, mas pelo péssimo clima entre a torcida e o moribundo treinador Carpegiani (que pedirá demissão apesar dos 2-0). Mesmo diante de uma massa irritada, Bebeto faz boa partida e sai de campo aplaudido. “O menino mostrou potencial”, dizem os jornais. Pouco mais tarde, Bebeto ainda atuará na Final do Brasileiro, primeiro jogo contra o Santos no Morumbi, fazendo ótima partida e quase arrancando um improvável empate, e em alguns jogos da Taça Guanabara, em um dos quais marcará seu primeiro gol pelo Flamengo, na derrota (1-2) para o Goytacaz, em Campos. Contudo, algumas demonstrações de imaturidade (reclama enfaticamente ao ser substituído em um Fla-Flu), seu corpo nitidamente franzino e, principalmente, a pesada crise que desaba na Gávea após a venda de Zico recomendam calma no lançamento do jovem. E Bebeto é preservado por seis meses. Vai fazer reforço muscular e aguardar sua hora.

O Flamengo segue tentando atacar, mas vai batendo na parede. A sólida defesa gaúcha vai conseguindo manter os cariocas à distância. Sávio chega atrasado em uma bola. Aparecem as primeiras vaias.

1984 assinala a ascensão definitiva de Bebeto. Utilizado aos poucos no Brasileiro, ganha uma oportunidade mais sólida ao entrar numa partida contra o América, já na Terceira Fase. E, em uma atuação de gala, transforma o que seria um jogo complicado em um monólogo. O Flamengo faz 3-0 e podia ter sido de seis. Júnior, impressionado, declara ao final, “esse Bebeto não pode mais sair”, e o Flamengo, antes claudicante, passa a voar em campo. Goleia, massacra, passa por cima de quem aparece pela frente (que o diga o Santos, impiedosamente massacrado por 5-0). Bebeto junta velocidade e contundência a um time de técnica primorosa. E sua “ausência” (é escalado no sacrifício, sem condições de jogo, o tornozelo inchado) é um dos fatores da eliminação flamenga em um Brasileiro em que parecia arrancar para vencer. Mas Bebeto não perderá mais a condição de titular. Os títulos mais importantes ainda demorarão um pouco, mas a Seleção Brasileira rapidamente aparecerá, fruto de suas fabulosas atuações na Primeira Fase do Brasileiro de 1985 (é o nome do campeonato). Zico retorna à Gávea, mas não terá condições, vítima de um crime, de atuar com regularidade. Bebeto passa a ser, dentro de campo, um dos principais jogadores do Flamengo. Por vezes o principal.

Enfim o Flamengo perde a paciência e começa a atacar com mais jogadores. Desesperado e antevendo o desastre, o treinador grita por calma. Em vão. Mais um ataque frustrado, o erro no passe, o contragolpe, o gol. O Flamengo sai atrás no placar.

Os craques da Era Zico vão saindo de cena. É a hora de uma nova geração, que terá sua prova de fogo no Estadual de 1986. E Bebeto mostra-se pronto para, em que pese seu temperamento arredio, liderar tecnicamente o time de Jorginho, Adalberto, Aldair, Zé Carlos, Zinho e Ailton, entre outros. E o punhado de garotos dá ao Flamengo o Estadual de 1986, com Bebeto marcando gol na final. Aliás, Bebeto vence a disputa particular com outro jovem talento, o vascaíno Romário, e é eleito “Rei do Rio” e craque da competição. Após um período de instabilidade, onde convive com lesões e brigas na Seleção, reencontra seu melhor futebol e, comandado por Carlinhos e Zico, marca os gols que dão ao Flamengo o tetracampeonato brasileiro em 1987. É seu seguindo título brasileiro pelo rubro-negro, o primeiro como protagonista.

Termina o primeiro tempo. O Flamengo sai de campo debaixo de pesadas vaias. Alguns jogadores começam a ser hostilizados. Entre eles, Bebeto.

A conquista do Brasileiro dá a Bebeto a segurança definitiva de jogador pronto. O baianinho, que agora atua como “falso nove”, atacante com inteira liberdade de movimentação, passa a acumular e a empilhar gols com facilidade. A saída do desafeto Carlos Alberto Silva faz com que Bebeto se afirme em definitivo na Seleção Brasileira. E no início de 1989, o treinador Telê Santana consegue encontrar uma formação que torna o Flamengo uma máquina de marcar gols. E Bebeto, metendo dois, três, até quatro por jogo, é, junto com Zico, o principal nome da conquista da Taça Guanabara, em cuja partida final, aliás, marca dois gols. Bebeto vive seu auge no Flamengo, e é tido por muitos como o principal jogador brasileiro em atividade.

O Flamengo volta a campo. Recomeça a partida. O time piora. O adversário, melhor agrupado, não permite ao rubro-negro sequer atingir sua intermediária. O torcedor percebe. E poderia empurrar, como usual. Mas hoje, não. Hoje vai ser diferente. Vai começar o inferno.

O sucesso de Bebeto chama a atenção dos principais clubes da Europa. Alguns (Milan, Real Madrid) sondam. Outros (Roma) tentam abrir negociação. Mas é o Bayern Munique o mais enfático. Manda representante, há reuniões. Tudo parece caminhar bem. Mas os alemães exigem que a transação seja acertada mais cedo, para facilitar a adaptação. Bebeto teria que largar a Taça Rio. O Flamengo não aceita. Os alemães e o procurador de Bebeto pressionam. O procurador, aliás, ameaça levar Bebeto a tiracolo para a Europa, oferecendo o jogador. Exige salário europeu ao Flamengo. Com a confusão, naturalmente o desempenho de Bebeto (e de outros jogadores, também assediados) cai assustadoramente na Taça Rio, os gols escasseiam, o time perde rendimento e no fim acaba perdendo o campeonato. A briga entre a despreparada diretoria flamenga e o intransigente procurador de Bebeto segue inflamável. O Bayern desiste do negócio. Irritado, o procurador começa a escutar com mais carinho as (cada vez mais insistentes) sondagens do Vasco (clube que costuma aporrinhar jogadores flamengos renovando contrato). A coisa evolui. A diretoria flamenga somente percebe quando o negócio já é irreversível. E, em uma das mais inacreditáveis e desastrosas demonstrações de incompetência administrativa de sua história, o Flamengo perde seu principal jogador para o maior rival da época.

Fabiano sai jogando, dá a Iranildo, que tenta sair rápido. A bola sobra a Márcio Costa, que corrupia e toca pro lado a Gilberto, daí a Bebeto, que vem buscar jogo. “Uuuuuuuuuh”, “Chorão, Chorão”, “Vascaíno, Vascaíno!”, “Filho da p...”

A passagem de Bebeto pelo Vasco é turbulenta, quase um fiasco. É bem verdade que o jogador logo consegue um título brasileiro pelo novo clube, mas atuando em jogos esporádicos, sem uma sequência sólida. Nos meses seguintes, começa a sofrer com lesões persistentes e inexplicáveis, que comprometem inclusive sua atuação na Copa do Mundo, onde seria titular certo do time de Lazaroni. Ademais, o Vasco passa a viver uma seca de títulos, que coincide com a ascensão do Flamengo de Júnior. Com efeito, enquanto Bebeto padece no rival, o Flamengo conquista dois títulos nacionais, um estadual e uma Copa Rio, com o artilheiro Gaúcho entronizado como novo ídolo e goleador. Bebeto passa a ser associado a uma época de vacas magras e fracassos no Vasco, e com isso sua torcida perde por ele o encanto inicial. E ainda há os jogos contra o Flamengo. Sempre visivelmente perturbado quando enfrenta o ex-clube (a ponto de, contrariando sua natureza, provocar e fustigar o adversário pelos jornais antes dos jogos), Bebeto empilha atuações irreconhecíveis, chegando a ser expulso ou saindo antes do final. Enfrenta o Flamengo em dez ocasiões. Perde seis e vence duas. Quando, enfim, consegue retomar seu bom futebol, no início de 1992, o Vasco o negocia correndo com o primeiro interessado, o Deportivo La Coruña, equipe da segunda divisão espanhola que acabara de ser promovida. Pouco para quem despertara, três anos antes, o interesse das principais equipes européias.

A torcida definitivamente se desinteressa da partida e transforma a Gávea em um pátio de imolação. Não aguarda mais Bebeto tocar na bola. Resolve vaiá-lo de forma contínua, interminável. Pragueja toda sorte de cânticos ofensivos, a ele e sua mulher Denise, que está nas arquibancadas com o pequeno Mattheus no colo. Mas Denise não é ameaçada fisicamente (há seguranças). “Bebeto é o c...lho”, “Romário, Romário!”, “Ei Bebeto, vá t...”, as vaias chicoteiam o lombo de uma equipe que, perturbada, não ameaça e não chega nem perto de um imerecido empate. O protagonista involuntário do triste espetáculo zanza quase inerte dentro de campo, devastado e vivamente abalado, quase às lágrimas.

A passagem pelo Deportivo recupera a carreira de Bebeto. Os espanhois montam uma boa equipe, competitiva o suficiente para se juntar a Real Madrid e Barcelona na luta pelos principais títulos nacionais da temporada. Os gols voltam em profusão, e Bebeto se torna ídolo de uma cidade, volta à Seleção Brasileira e é um dos destaques no tetracampeonato mundial de 1994. Realizado, resolve retornar ao Brasil dois anos depois e, como uma espécie de desagravo, escolhe o Flamengo, embora o Vasco acene com uma proposta melhor.

“Fora daqui, chorão filho da p...!”, “Volta pro Vasco do Eurico, seu m...!”, os impropérios seguem mesmo após o apito final. Por pouco os xingamentos não se transformam em invasão, ameaça que não se concretiza por conta de um numeroso e eficaz policiamento. Atônito, aparvalhado, Bebeto não consegue entender a hostilidade, as vaias. O time jogou mal, ele mesmo jogou mal, é fato, mas não parece haver motivo para tamanha virulência. Os jornais, nos dias seguintes, também parecem confusos na tentativa de explicar e analisar a extensão e a contundência das vaias e das ofensas.

É Zico, o Eterno Zico, vida inteira dedicada ao clube, quem resolve o enigma, com indiscutível simplicidade. “Claro que não concordo com nenhuma forma de violência, não aceito e acho lamentável. Mas isso que aconteceu com o Bebeto só tem uma explicação. 1989. A forma como aconteceu, o torcedor se sente traído. Jogador é profissional, tem que ser, mas há certos limites, não pode passar anos num clube e sair jurando amor ao rival. Torcedor não releva. Não esquece. Bebeto até pode dar certo, é grande jogador, mas vai ter que lutar muito.”

A negra tarde da derrota para o Juventude na Gávea azeda irremediavelmente a relação entre Bebeto e a torcida do Flamengo. O atacante ainda atuará algumas partidas, marcará alguns gols, manterá o Flamengo nas primeiras posições por algumas rodadas, mas tudo logo ruirá, o time desabará e se arrastará de forma melancólica até o final da competição. Antes disso, Bebeto forçará apressadamente sua saída, sendo negociado com o Sevilla-ESP, onde também não permanecerá muito tempo, iniciando o processo de decadência em sua carreira.

Bebeto é frequentemente lembrado e aparece em entrevistas e documentários relatando as grandes conquistas flamengas de que participou. Neles, é impossível deixar de lamentar o terrível desperdício, o desfecho de uma história em que o baianinho parecia predestinado a exercer um papel relevante. É bem verdade que Bebeto foi grande, foi muito. Mas poderia ter sido mais. Muito mais.

Um erro. Uma decisão precipitada. E o vaticínio de Aymoré Moreira se perdeu.