Saudações flamengas a todos. O
texto de hoje é um pequeno tributo, na forma de testemunho. O aniversariante da
semana será o único jogador citado nominalmente no texto, como reverência. Boa
leitura.
* * *
O calor é sufocante.
Sinto-me derreter em preto e
vermelho, espremido entre milhares de almas também negro-rubras, nem todas
professando a mesma fé. A aglomeração humana potencializa os efeitos
escaldantes de um sol que parece pairar sobre minha cabeça. O cimento ardente
ferve-me os membros inferiores, e a um persistente e esperado cheiro de suor,
cerveja e mijo se junta a morrinha do lixo. Ainda hoje me parece adentrar as
entranhas das minhas narinas aquela brisa nauseabunda e putrefata do aterro
sanitário do entorno, a faiscante sensação de viver a experiência de uma
partida de futebol literalmente no meio do lixo. E há as moscas, invasivas,
intrusivas, impertinentes, pegajosas.
Enquanto isso, vou mantendo um
animado papo com meu velho pai, latinha indo e vindo à boca, fazendo escoar
feericamente o valioso néctar gelado, seiva que se reveste de fonte de
sobrevivência em meio ao senegal de concreto.
O jogo está perto de começar.
Ir ao estádio em companhia
paterna é um hábito que, outrora frequente, anda raro. A disseminação de
facilidades como a tevê fechada, os jogos em bares, e um processo contínuo de
metropolização, que traz em seu bojo efeitos colaterais como trânsito, filas e
violência, são fatores que têm contribuído para o abandono de uma prática quase
romântica, tal o divertimento.
Mas não poderia me furtar a levar
meu pai ao Flamengo, ao menos mais uma vez.
Flamengo cheio de estrelas, que
começa bem, mas logo vai patinando no meio da tabela, e daí pro fundo,
assumindo um risco real de rebaixamento pela primeira vez desde o início da
história do Campeonato Brasileiro. Time forte, que vive séria crise de
relacionamento entre seus jogadores (“muita medalha esbarrando uma na outra”,
diz o velho), além da ancestral falta de estrutura (salários atrasados, excesso
de gente dando pitaco, essas coisas). Treinadores vêm e vão, nada parece
reanimar o paciente moribundo. Promoções de um amadorismo caricato, como o
“veja o Flamengo vencer ou receba seu dinheiro de volta”, de desfecho óbvio, a
chacota e a ridicularização do clube em horário nobre, tornam-se frequentes. O golpe
de desespero é trazer o veterano treinador, tido como decadente, mas torcedor
fanático e identificado com o clube.
E as coisas funcionam, após um
início de ajustes o Flamengo começa a varrer vitórias seguidas, humilha o líder
do campeonato com um 4-1 consagrador no Maracanã, encanta crônica e torcida com
um futebol compacto e extremamente veloz, e agora vem a Salvador enfrentar um
adversário direto na, pasmem, luta pela classificação aos matamatas da Segunda
Fase.
O estádio está apinhado.
Rubro-negros empurram rubro-negros em busca de um espaço mais compatível com a
distribuição de espectadores nas arquibancadas. Não há “ingressos separados” ou
“espaço dos visitantes”. É pegar a fila, comprar, chegar, escolher o lugar do
estádio e sentar. Uma estimativa pessimista indica as torcidas em meio a meio,
mas o cordão policial tenta segregar um quarto do estádio aos visitantes.
Empurra aqui, pressiona ali, grita acolá, os policiais cedem ao bom senso e vão
espremendo os locais, cedendo à realidade dos fatos.
Mais uma latinha, e aparentemente
a salvo da embrulhada (nunca fique perto de PM, sempre me orientou o velho),
sigo tentando analisar as perspectivas do Flamengo pro jogo. Atuar em Salvador
é sempre difícil, o adversário cresce contra equipes mais fortes, seu
presidente andou “temperando” a partida pelas rádios durante a semana (sempre
fazem isso), enfim, não vai ser mole. Aliás, na última visita ao campo, alguns
meses antes, o time sofreu cinco, uma goleada humilhante. Claro que confio na
vitória, mas já me preparo para um jogo sofrido.
“Acho que o Flamengo vai ganhar
bem, talvez até de goleada”, crava meu velho, o que me espanta, dado o seu
histórico ceticismo. E ele não está bebendo.
O sol ensaia um armistício, mas o
fedor permanece, talvez até mais forte. Times entram em campo, Flamengo de
branco, jogando completo, força máxima. O time da casa tem um desfalque aqui e
ali, mas os principais nomes estão em campo. Especialmente o seu Camisa 10.
O jogo começa e o Flamengo, para
surpresa de muitos (não de meu pai), toma a iniciativa desde o início,
desconhece o adversário, pressiona, põe nas cordas e abre o placar, gol do
goleador baixinho.
Continua atacando, e atacando, e
atacando mais, porém perde um gol atrás do outro, e para alívio e irritação da
torcida local a primeira etapa termina apenas com um magro 1-0 a favor do
rubro-negro legítimo.
“Esse cara é craque”, sai do
silêncio o velho.
“Quem, o Baixinho?”, indago, já
de posse de outra latinha.
“Não, porra! Não é dele que eu tô
falando, do baixinho não precisa falar mais nada. É o Camisa 10 deles. É craque de bola.
Gênio.”
Pondero alguma coisa, enquanto
vou organizando as idéias, dentro do possível. Essa deve ser a quarta ou a
quinta vez que vejo o Camisa 10 ao vivo, andei acompanhando algumas partidas
“in loco” nos últimos meses. Desde que o vi marcar um gol de falta “à Zico”
logo em sua estreia seu futebol me encantou. Mas, ironicamente, hoje ele vai
fazendo talvez seu mais fraco jogo diante dos meus olhos, muito marcado pela
bem armada defesa flamenga. Mesmo assim, meu pai, que nunca o vira ao vivo,
parece encantado.
“Joga muito, é jogador daqueles
antigos, que eu achava que não existiam mais. Já valeu a pena eu ter vindo.”
“Não é exagero?”
“Nada. É ali dentro que a gente
vê se o cara é craque ou não. Tem que ver aqui, na nossa frente, não pela
televisão. A tevê engana.”
A exaltação parece ter um efeito
premonitório. Com efeito, os dois times retornam francamente diferentes do
intervalo. Um desavisado pensaria terem trocado as camisas. O time da casa
perde o medo, solta as amarras e cai pra dentro. O Flamengo se retrai em busca
de contragolpes, que, ao serem negados, o encurralam. E o Camisa 10 volta
jogando o diabo. Dribla um, dois, três, inverte bolas, distribui passes
adocicados, cria, inventa, recita. E o torcedor vai junto, tornando o acanhado
estádio em um alçapão ruidoso e pestilento.
Falta na entrada da área. Pra
eles. Adivinha quem vai bater.
O Camisa 10 se posiciona, postura algo marrenta, algo indolente. Ajeita a bola. Bate com efeito. A bola sobe, sobe, desvia e passa por cima da barreira e começa a descair. Parece que irá fora, mas aos poucos vai ganhando outro rumo. Uma curva traiçoeira, que não parece obra humana. Mas, ao contrário do planejado, a bola perde força rapidamente e a guinada para dentro do gol é muito acentuada. Ao invés do pretendido ângulo superior, acaba indo para o centro da meta, ao encontro das mãos do goleiro flamengo. Que, confiante, já calcula a reposição enquanto a pelota lhe vai chegando ao alcance. É seu erro. Não há mais a força, mas ainda subsiste o gingado, o efeito. E, num rodopio, a bola recusa-se a se aninhar sob as luvas do inocente arqueiro e, aos risos, escapa-lhe furtivamente, qual uma punguista. Cruza a linha branca e enfim fenece. É o empate.
A partir dali o Flamengo vive
coisa de dez, quinze minutos de intensa pressão. Como um filibusteiro, o Camisa
10 amarra a camisa à testa, põe a adaga entre os dentes e ordena o saque. O
treinador flamengo antevê o desastre e reage rápido, resolve adotar uma
estratégia ousada, saca um meia e coloca um centroavante. Manda o time abrir.
Vai pro pau. Agora quem tiver mais bola vence.
Mas é outra alteração que ajuda a
definir o jogo.
A atitude do técnico funciona, o
Flamengo se apruma, intimida o oponente e já está melhor em campo quando um dos
zagueiros locais se contunde. Em seu lugar, entra um grandalhão estabanado, com
a incumbência de marcar o baixinho goleador. E o drama vira comédia. O Camisa
10, agora cansado, cede o protagonismo da partida à atarracada estrela, que usa
e abusa do seu neófito marcador. E o Flamengo volta à pressão da primeira
etapa. Só que, mais focado, mais concentrado, mais disposto a definir logo a
pendenga, agora está agudo, incisivo. E os gols aparecem.
O Baixinho escora um cruzamento
rasante e marca o segundo. Pouco depois, um bem articulado contragolpe, a saída
precipitada do goleiro, o cruzamento à meia-altura e o gol de peito, de
futevôlei. 3-1, jogo perto do fim. Olé, olé.
O time da casa, meio nervoso com
a feição achocolatada que a partida vai assumindo, começa a perseguir os
flamengos aos pontapés, às botinadas. A torcida local, mostrando, como sempre, ser
fiel e que acredita até o fim, vai deixando o estádio em grossas hordas, a
despeito de ainda restarem pouco menos de dez minutos. Tranquilo, o Flamengo
arrefece a pressão mas não recua, povoa o meio e troca passes, escapando das
investidas mais violentas. Um local é expulso, mas a essa altura, enfim, a
partida já parece definida. É quando, numa belíssima e veloz troca de passes, o
Flamengo parte para o último ataque, para a última estocada em um oponente
batido, vencido e entregue. Última bola do jogo, Flamengo 4-1.
Meu pai ri aos gargalhos.
Vamos embora cantando, a roupa
impregnada de lixo. Já estou rouco, não há voz para mais nada. Mesmo assim, ele
pontua:
“Eu disse que era goleada. Mesmo
assim, continuo falando que o que me encheu os olhos foi o Camisa 10. Craque de
bola, há muito tempo não via um desses.”
Não consigo exprimir ao certo
como receber tamanho entusiasmo. A satisfação é natural e óbvia, pois eu já
havia antes identificado várias qualidades no jogador. Mas a forma incisiva e
contundente com que meu pai, que viu (ou ouviu) todas as Copas do Mundo
conquistadas, que acompanhou quatro dos cinco tris, que foi “rato de Maracanã” (não raro assistia a três, quatro
jogos por semana), que acompanhou ao vivo todos os monstros sagrados dos anos
50/60, que chegava mais cedo aos jogos para ver o Zico jogar nos aspirantes, e
que não se entusiasmava com um jogador desde, sei lá, o próprio Galinho, ou com
o Júnior na fase Maestro, o encanto quase infantil que ele demonstrou pelo
futebol desse Camisa 10 dos baianos me despertaram um aviso interior, dando
conta de que talvez fosse prudente prestar uma atenção maior a esse marrento
gringo que andava encantando os nativos da “Boa Terra”.
Com efeito, o craque não durará
muito tempo no Brasil, sendo negociado com o futebol italiano, onde permanecerá
pouco tempo, por conta de seu temperamento difícil. E, após uma negociação
relativamente trabalhosa, retornará ao país, especificamente ao Flamengo, onde
assumirá a Camisa 10. E não demorará para cair nas graças da Nação Rubro-Negra.
De quem Dejan Petkovic será
ídolo. E verá gravado, para sempre, seu nome no Panteão dos Grandes Heróis.
* * *
Essa não foi a última vez que
assisti a um jogo em estádio com meu velho pai. Tornaríamos outras vezes, para
jogos da Seleção Brasileira e mais recentemente na Copa do Mundo. Mas não mais
retornamos para assistir ao Flamengo.
Hoje seguimos vendo o Mengão pela
tevê. Mas não seria prudente perguntar-lhe o que acha do time atual. O interlocutor
provavelmente sairá deprimido.
Ah, e sempre é bom pontuar nesses
tempos “politicamente corretos” e sujeitos à patrulha: não voltei dirigindo pra
casa naquele dia.