domingo, 7 de setembro de 2014

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos.

Semana passada se falou na quina flamenga no Brasileiro. Já que é tempo de quina, lembro uma que estará sempre guardada nos nossos corações rubro-negros. Boa leitura.

“Enquanto eu for vivo, o Vasco nunca levará quina do Flamengo” (Eurico Miranda, 1991)


FLAMENGO 1-0 VASCO, CAMPEONATO BRASILEIRO 1990

Um Flamengo estropiado e desacreditado derrota o Vasco no Campeonato Brasileiro, com um gol de um jovem desconhecido. Parece familiar? Lembrou Bujica?

O Flamengo não vive um bom momento, há uma crise entre os líderes do elenco e o diretor Francisco Horta, prestes a explodir. Mas os contundentes 3-0 sobre o Náutico, pelas semifinais da Copa do Brasil, amenizam o ambiente. No entanto, o treinador Jair Pereira sofre com uma severa lista de desfalques para o clássico contra o Vasco, agora pelo Brasileiro. Estão fora Júnior, Zanata, Renato Gaúcho, Fernando e Gaúcho. O jeito é recorrer aos garotos das divisões de base.

Se o momento do Flamengo não é bom, o Vasco consegue atravessar situação pior. O time infestado de medalhões vive séria crise de relacionamento entre jogadores, comissão técnica e diretoria e vem de uma humilhante derrota para o Nacional-COL. O treinador Zagalo é contratado, mas não consegue reverter uma marca que já chega a 9 jogos sem vitória e seis jogos seguidos sem marcar gols.

O JOGO – Pressionadas pela situação na tabela, as equipes desde o início atuam de forma agressiva, buscando o gol. O Vasco parece melhor, mas é o Flamengo quem abre o placar, aos 25'. Aílton alça a bola na área e encontra o desconhecido garoto Nélio (em sua estréia nos profissionais), que com inusitada calma domina a bola no peito, espera a projeção de Acácio e fuzila alto, forte, indefensável. A partir daí, o Vasco se atira em desespero ao ataque, e consegue encurralar o adversário. Cria várias chances, mas esbarra na ótima atuação de Zé Carlos e na falta de sorte de Bebeto e Sorato, que perdem gols incríveis. O segundo tempo começa na mesma toada, mas o panorama muda quando Zé do Carmo acerta uma voadora em Marcelinho e é expulso. Com um a mais, o rubro-negro passa a controlar a partida e a fustigar o adversário com contragolpes. É a vez de Acácio aparecer para evitar o segundo gol flamengo. Os vascaínos entoam até mesmo o “João de Deus” (hino arco-íris, não tricolor), mas de nada adianta. No fim, um cruzmaltino invade o campo, refletindo o desespero de uma torcida que, perplexa, vê se repetir diante dos seus olhos o pesadelo do ano anterior, ao frenético coro de “Recordar é viver, Nélio acabou com você”, “Bujica, Bujica” e “Chorão, Chorão”. Final, 1-0. O Flamengo escapa, por ora, da crise. E o Vasco, nela afunda com força.

FLAMENGO 3-0 VASCO, CAMPEONATO BRASILEIRO 1991

Após um início desastroso, o Flamengo de Vanderlei Luxemburgo enfim começa a se encontrar. Alguns reforços já se encaixam no time, o veterano Júnior vai consolidando seu papel de líder do grupo de jogadores e os resultados no campo vão dando tranquilidade ao elenco, como a contundente vitória sobre o Corinthians no Pacaembu (2-0), pela Libertadores. Para a sequência do Brasileiro, o goleiro Gilmar (que estreara em São Paulo) faz seu primeiro jogo no Maracanã, aproveitando uma estranha contusão de Zé Carlos (que teria escorregado em uma piscina). Motivada, a torcida flamenga promete lotar o Maracanã.

O Vasco vive altos e baixos. O time não ostenta a quantidade de estrelas do ano anterior, mas ainda é forte. O comando de Antonio Lopes devolve competitividade, mas o time não engrena. Seu astro maior, o atacante Bebeto, vive às voltas com lesões persistentes e de difícil recuperação. Ademais, o time acaba de ser eliminado de forma vexatória na Copa do Brasil, pelo Remo-PA em plena São Januário. O trunfo é a estreia do obscuro lateral Jorge Rauli.

O JOGO – O Maracanã reabre com setenta mil almas presenciando um verdadeiro passeio, um chocolate do Flamengo sobre um Vasco atônito e aparvalhado, que em nenhum momento oferece ameaça séria à vitória rubro-negra. Com marcação avançada e forte bloqueio no meio-campo, o Flamengo sufoca, pressiona, põe nas cordas até chegar ao primeiro gol. Bola na trave, defesa de Acácio, tudo acontece até que, aos 37', não há como resistir. Júnior, que desfila seu talento em campo, senhor absoluto do jogo, cobra uma falta na área. Gotardo escora e Adilson mergulha de peixinho, 1-0. Na segunda etapa, Alcindo recebe na intermediária e avança pela freeway deixada pelo perdido Rauli. Serve Marquinhos, que apenas desvia de Acácio, 2-0, com 4'. Antes que o Vasco esboce reação, Júnior cobra falta e Gaúcho, inteiramente livre, antecipa-se a Acácio e, aos SEIS minutos, marca Flamengo 3-0. Tudo aponta para uma goleada histórica. Luxemburgo, alucinado, manda o time continuar apertando, mas os jogadores, cansados, preferem recuar e gastar a bola, fazendo gato e rato do adversário. Somente aí, ferido em seus brios, o Vasco demonstra alguma reação e se atira à frente. Perde algumas chances incríveis, especialmente com o voluntarioso Tiba, e enfim consegue um pênalti. Quando todos imaginam que Bebeto irá para a cobrança, o atacante, sufocado pelas vaias da torcida, recusa o encargo. O garoto Tiba pega a bola e bate, mas Gilmar voa e desvia a bola para a trave, lance que o faz conquistar de vez a posição. Pouco depois, Bebeto manca e sai, substituído, “ovacionado” com o coro de “Chorão, Chorão”. A vitória por 3-0 dá ao Flamengo a confiança para a continuidade de um trabalho que só dará frutos mais tarde. E ao Vasco, resta a turbulência e a crise, da qual não sairá jamais em todo o ano de 1991.

FLAMENGO 2-0 VASCO, COPA RIO DE JANEIRO 1991

A eliminação precoce no Brasileiro e na Libertadores faz surgirem questionamentos mais sérios ao trabalho de Vanderlei Luxemburgo. Além disso, a falta de dinheiro obriga o clube a promover uma forte reformulação no elenco, e vários jogadores são dispensados ou negociados. Nesse contexto, surge a Copa Rio, competição criada pela FERJ para manter os clubes em atividade. Luxemburgo resolve levar o torneio a sério, transformando-o em um laboratório para a montagem da equipe que terá nas mãos no segundo semestre.

Com isso, o Flamengo vai liderando com folga a chave da capital da competição, apesar do futebol pouco convincente. Na última rodada, o rubro-negro, já classificado às semifinais, enfrenta o Vasco de Antonio Lopes, numa partida esvaziada pela ausência das estrelas maiores, Júnior (cumprindo suspensão) e Bebeto (servindo à Seleção Brasileira).

O JOGO – O Vasco tenta tomar a iniciativa, pois precisa da vitória para tomar a primeira posição do Flamengo. Nisso, vai criando algumas chances, e o ápice é a bomba de Rauli no travessão, cujo rebote Sorato desperdiça de forma inacreditável. Aos poucos o Flamengo vai se ajustando em campo e explorando as deficiências do medíocre sistema defensivo vascaíno. Marcelinho, o melhor do time e do jogo, é derrubado por Alê, e na cobrança da falta desloca Acácio e marca 1-0, aos 22'. Com o gol, o Flamengo se fecha na defesa e passa a explorar contragolpes em uma velocidade alucinante. Num desses ataques, Djalminha faz o que quer com Rauli e Alê e deixa para Marcelinho, que escora e abre 2-0 no placar. Na segunda etapa, o Flamengo administra com extrema tranquilidade a vantagem, e desperdiça algumas chances de transformar a fácil vitória em goleada. Apático, o Vasco pouco produz. Destaque negativo para as expulsões de Zé Ricardo e Zé do Carmo, ambas por jogo violento. Ao final da partida, o craque Romário, de férias no Brasil, sintetiza o que presenciou: “Só deu Flamengo.” O Flamengo vencerá a competição (3-0 no Americano, na final), o que acabará sendo insuficiente para manter Vanderlei Luxemburgo no comando.

VASCO 1-2 FLAMENGO, CAMPEONATO ESTADUAL 1991, TAÇA GUANABARA

O Flamengo anda desacreditado após demitir Vanderlei Luxemburgo. Com efeito, a crise financeira do clube é vivamente exposta na imprensa, o jovem elenco não empolga torcida e imprensa, e os primeiros jogos passam a impressão de que o time fará figuração. Mesmo assim, o Flamengo vai, aos trancos, somando pontinhos aqui e ali, juntando vitórias suadas. No entanto, é tido como azarão diante de um Vasco que parece viver seu melhor momento no ano.

E o rival tem motivos para exalar confiança. Bebeto enfim consegue empilhar uma sequência de jogos e gols, formando uma dupla bastante temida com Sorato. Sobra talento no meio-campo, com William e Bismarck voando, liderados por Geovani, que retorna da Europa jogando o fino da bola. E o badalado zagueiro Torres fará a sua estreia justamente na partida contra o Flamengo.

O JOGO – O Vasco inicia a partida de forma alucinante, explorando o lado direito, onde o improvisado Fabinho não consegue conter as investidas do esfuziante lateral Cássio. Com 5' de jogo, Sorato avança livre pela esquerda e serve Bebeto, que abre o placar. Pouco depois, o próprio Sorato tem a chance de ampliar, entra sozinho diante de Gilmar, mas chuta fora. Desorientado, o Flamengo parece nas cordas e apela para jogadas ríspidas, o que aumenta a temperatura da partida. Até que, ainda no primeiro tempo, em uma confusão onde sobram sopapos e dedos na cara, são expulsos Charles Guerreiro e França, o que muda completamente o cenário. Sem o volante brucutu, a já frágil defesa vascaína se torna mais exposta e se põe à mercê dos ataques do Flamengo, que, empurrado pela torcida, vai atrás da reação. O empate já poderia chegar na primeira etapa, mas um chute de Gaúcho sai caprichosamente pela linha de fundo.

No segundo tempo, Lopes tenta fechar o buraco na intermediária e saca Bismarck, colocando Macula em seu lugar, alteração que logo se revela desastrosa. O Flamengo empurra de vez o Vasco pra dentro de seu campo. Logo aos 6', Zinho zanza pela esquerda e tenta cruzar, mas Macula dá um tapa na bola. Pênalti, que (após longa reclamação) Gaúcho cobra com violência, empatando. O Flamengo segue em cima. Aos 23', enquanto Bebeto é atendido na beira do gramado (contundido), o Flamengo roda a bola na entrada da área vascaína, Gaúcho recebe e deixa com Nélio, que gira e bate rasteiro. A bola desvia em Macula e engana Carlos Germano. É a virada, 2-1, e o estádio em chamas.

Mas não está acabado. Apesar de perder Bebeto (que enfim sai machucado), o Vasco lança-se numa ofensiva suicida o que torna a partida emocionante. Cria uma chance atrás da outra, mas esbarra em uma atuação de gala de Gilmar, e não consegue reverter a derrota. Ao fim, os 2-1 dão ao Flamengo a confiança necessária para seguir crescendo. E servirão como ducha de água fria para os vascaínos, que não conseguirão assimilar o golpe.

FLAMENGO 2-0 VASCO, CAMPEONATO ESTADUAL 1991, TAÇA RIO

A semana do clássico é badalada, com provocações transbordando de um lado a outro. Bebeto e Gaúcho, disputando a artilharia gol a gol, trocam alfinetadas (“Serei artilheiro e Bebeto me aplaudirá”, “O Gaúcho anda falando muito”). Eurico exalta a “mediocridade” do Flamengo e avisa que passará por cima. “O Eurico joga?”, ironizam os flamengos, muito motivados com a perspectiva de devolver a quina de 1988.

Fato é que o Flamengo enfim parece um time montado e pronto. Carlinhos consegue encontrar o equilíbrio entre a experiência de veteranos, o ímpeto dos garotos e a qualidade dos coadjuvantes. O resultado é um time sólido, com uma defesa quase intransponível (não sofre gols há 450 minutos), um contragolpe mortal e uma compactação sufocante no meio. Equipe que disputa a liderança da Taça Rio com o Botafogo, numa disputa emocionante.

O JOGO – É um vareio. Em sua melhor atuação no campeonato, o Flamengo passa por cima, não toma conhecimento do Vasco e constrói sua vantagem como e quando quer. Após um início equilibrado e cauteloso, por conta do sol escaldante, o rubro-negro avança suas peças e pressiona. Após criar três chances reais, enfim abre o placar, numa bola alçada de Júnior (um passe, tal a precisão), que encontra a cabeça de Zinho, aos 36’. Flamengo 1-0. Na segunda etapa o rubro-negro recua traiçoeiramente, dá a intermediária ao Vasco, que tenta tocar inutilmente. E os contragolpes, mortais, levam os vascaínos ao desespero. Calmo, sem afobação, o Flamengo cozinha o jogo, derrete o adversário no calor, e solta a cavalaria nos minutos finais, numa blitz que resulta no segundo gol, em que Fabinho recebe de Gaúcho e fuzila Carlos Germano. Na anunciada “guerra dos artilheiros”, atuações apagadas de Gaúcho (que perdeu chances, mas ao menos conseguiu uma assistência) e Bebeto (inteiramente nulo em campo). Eufórica, a massa flamenga se divide aos gritos de “eliminado, eliminado”, “quina, quina” e “Bujica, Bujica”, enquanto se diverte com o humilhante olé aplicado em campo.

Ao final, Carlinhos exulta, “fomos perfeitos”. De fato, a atuação do Flamengo é tão impressionante que alguns mais exaltados já projetam vôos maiores para essa equipe, outrora espezinhada pelos críticos. E logo o tempo lhes dará razão.

* * *

Essa é a história resumida da quina flamenga. Não deixa de ser interessante constatar a participação do atacante Bebeto nesse episódio. Com efeito, o jogador atuou em oito das dez partidas que compuseram as duas séries (em 1988 e 1990/91).


Sempre do lado perdedor.