Saudações flamengas a
todos.
Vários tipos de
jogadores ajudaram a construir e a escrever a história do Flamengo. Heróis,
ídolos, semideuses, vilões.
Mas há uma categoria de
jogadores particularmente interessantes. Os anti-heróis. Jogadores que tinham
tudo para serem idolatrados, reverenciados, mas por algum motivo a coisa
desandou. Abro essa semana uma série falando de alguns desses jogadores, e já
inicio com um dos mais polêmicos. Recomendo o vídeo no final do texto, contendo
uma pequena amostra de imagens, algumas raras. Boa leitura.
OS ANTI-HERÓIS, PARTE I
– RENATO GAÚCHO
1 – PRIMEIRA PASSAGEM
(1987 – 1988)
O time misto do
Flamengo vai sendo derrotado pelo Santa Cruz no Maracanã (0-1), em partida
válida pela última rodada do Brasileiro de 1986 (que transborda para o ano
seguinte, coisas da Era Nabi). Mas ninguém se importa, seja pelo Flamengo já
estar classificado, seja pela bomba que explode, a contratação de Renato
Gaúcho, sonho antigo do rubro-negro (que andava atrás do atacante ao menos
desde 1986) e última operação da Estrutural de Rogério Steinberg (que ajudara a
repatriar Zico e Sócrates algum tempo antes).
A identificação de
Renato com o Flamengo é intensa e imediata. O atacante estréia em um amistoso
contra o Uberlândia, no Parque do Sabiá (2-2) e marca seu primeiro gol pelo
clube em Florianópolis (2-1 sobre o Avaí, outro amistoso). Já se destaca nas
primeiras partidas da Taça Guanabara quando sofre séria lesão na planta do pé,
ao chutar a sola de um zagueiro adversário no lance em que marcou um dos gols
flamengos na vitória sobre a Portuguesa da Ilha (2-0). Ainda tenta retornar de
forma precipitada, o que atrasa ainda mais sua recuperação. Jogador conhecido
pela dificuldade em entrar em forma, usa as últimas partidas do Estadual para
ganhar ritmo de jogo, e chega voando fisicamente ao Brasileiro. Idolatrado e
extremamente motivado, é o motor e o trator da equipe que conquista o
tetracampeonato. Renato marca gols decisivos, acumula assistências e é
premiado, de forma justa, como o melhor jogador da competição. Vive o auge de
sua popularidade no Flamengo.
Com o prestígio nas
alturas, torna-se símbolo sexual, acumula casos amorosos e é uma das
celebridades do verão de 1988. No embalo do título brasileiro, Renato comanda o
Flamengo à conquista da Taça Guanabara, com destaque para o jogo decisivo contra
o América (2-1), em que revive Garrincha e protagoniza uma das maiores atuações
individuais da história do Maracanã.
Mas nenhuma árvore
crescerá a ponto de tocar os céus. Poucos dias depois, é caçado criminosamente
em uma partida contra o mesmo América e lesiona o joelho (que a partir daí
sempre atormentará sua carreira). Retorna cerca de 30 dias depois, fora de
forma e totalmente atordoado pela idéia de se transferir para a Roma-ITA, que o
assedia quase diariamente. O Flamengo perde rendimento, Renato não é sombra do
jogador do primeiro turno, e a torcida não o perdoa, associando os jogos
pálidos ao processo de sua negociação (a transação chega a ser fechada antes do
fim do campeonato). As vaias se sucedem, Renato ameaça não disputar as partidas
finais mas recua, o que não impede a perda do Estadual e a amarga despedida,
repleta de declarações magoadas e fortes.
2 – SEGUNDA PASSAGEM
(1989 – 1990)
Sua
chegada, após apagada passagem pela Roma, já é marcada por várias polêmicas.
Vários conselheiros questionam o valor da compra, que poderia ser usado para a
renovação do contrato de Bebeto (evitando o trauma da perda do jogador para o
rival Vasco), outros veem perspectivas de sérios problemas de convivência do
astro com o treinador Telê Santana, antigo desafeto. E, com efeito, a relação
entre Renato e o treinador dura apenas três jogos, implodindo após Telê tirar o
atacante no meio de uma partida contra o Corinthians (0-1), crise que redunda
na saída do técnico.
Mas a
“vitória” no embate não melhora muito o rendimento de Renato, que faz um
Brasileiro apagado, mesmo sob o comando de seu amigo Valdir Espinoza. Em 1990 o
craque, mais motivado e buscando vaga na Seleção que irá ao Mundial, torna-se
rapidamente o líder e a referência da equipe, sendo um dos poucos a se salvarem
na pífia campanha do Estadual (o que lhe valeu a ansiada convocação). Polêmico,
suscita reações diversas, ao ajudar a decidir partidas e ao atrapalhar
provocando em demasia os adversários, especialmente em clássicos.
A péssima
campanha no Estadual provoca reformulações, e Francisco Horta (ex-presidente do
Fluminense) é contratado para a direção do futebol. Rapidamente a relação entre
Renato e Horta se deteriora, com trocas públicas de farpas (“Renato é o nosso
Frank Sinatra, mas ele está rouco”), e o dirigente tenta incluir o atacante em
trocas com o São Paulo (por Raí) e até o Vasco (por Bebeto), sem sucesso.
Renato ainda é o craque do time, mas cai de produção, voltando
“instantaneamente” a atuar em alto nível após a demissão de Horta, depois de
uma sequência de maus resultados no Brasileiro. No restante do ano, Renato
coleciona atuações de gala (como nos 2-0 contra a Portuguesa, no Canindé),
protagoniza com o amigo Gaúcho um ataque devastador, e, dividindo a liderança
da equipe com o craque Júnior (que enfim conquista o merecido espaço), faz do
Flamengo Campeão da Copa do Brasil. Mas, ao tempo que é novamente destaque em
um título nacional, torna-se vilão ao perder um pênalti contra o Grêmio em Juiz
de Fora, na derrota (0-1) que praticamente cravou a eliminação flamenga do
Brasileiro (faltaram dois pontos para a vaga).
Ao final
do ano, a diretoria do Flamengo é trocada, e o novo presidente, alegando
questões financeiras, não faz questão de cobrir a proposta do Botafogo, e
Renato se muda, no início de 1991, para General Severiano (o que
necessariamente não desagrada alguns jogadores do elenco). Em sua passagem pelo
alvinegro, várias vezes comete “atos falhos” exaltando a grandeza do Flamengo.
TERCEIRA PASSAGEM
(1993)
Após atuar
por Botafogo e Grêmio, Renato se reencontra no Cruzeiro, terminando 1992 como o
melhor atacante brasileiro em atividade, empilhando gols e jogadas mortais,
conquistando a Supercopa Libertadores e voltando a atuar no nível de 1987. A
excepcional fase do jogador chama a atenção da nova diretoria do Flamengo, e a
proposta rubro-negra entusiasma Renato, que ignora as melhores ofertas do
Santos e do próprio Cruzeiro e retorna à Gávea.
Mas a
terceira passagem do craque pelo Flamengo é marcada por confusões e
contratempos. Após estreia discreta em festivo amistoso contra o Cruzeiro e
alguns poucos jogos (destaca-se na vitória contra o Nacional-COL, onde marca o
único gol do jogo ao roubar a bola do folclórico Higuita), Renato volta a
sofrer séria lesão no joelho e perde praticamente o primeiro semestre. Retorna
na reta final do Estadual, é criticado por seu individualismo, arruma confusão
com o atacante Nilson (a ponto de baterem boca em público), e o estopim é a
partida contra o Itaperuna, que vai se arrastando em um empate (1-1) que
praticamente elimina o time do Estadual. Nos minutos finais, pênalti. Renato
toma a bola das mãos de Nilson (o cobrador oficial) e isola a bola e as chances
rubro-negras.
Alguns
dias depois, já pelo Torneio Rio-SP, Renato, que nunca manteve boa relação com
os jovens da base, reclama do posicionamento de Djalminha, que retruca, a
discussão se torna áspera e degenera para a troca de sopapos. O incidente
encerra a passagem do garoto pelo Flamengo, mas Renato sofre apenas leve
punição.
No
Brasileiro e na Supercopa, Renato volta a atuar em bom nível, formando perigosa
dupla de ataque com Casagrande. O Flamengo cresce e chega às finais das duas
competições. Mas as confusões não cessam. Renato marca vários gols importantes,
mas comete um pênalti infantil contra o Vitória, na Fonte Nova, já pela Fase
Final, lance que sela uma derrota decisiva e acende nova crise de
relacionamento, agora com Júnior Baiano. O Flamengo não resiste aos problemas
de convivência e ao estafante calendário, encerrando o ano de forma frustrante.
Em 1994,
novamente Renato é negociado sob o pretexto de “dificuldades financeiras”, e se
transfere para o Atlético-MG. Aparentemente, é o início da linha descendente na
carreira do atacante.
QUARTA PASSAGEM
(1997-1998)
Quando o Flamengo
repatria Romário em 1995, um entusiasmado Renato se oferece para retornar ao
rubro-negro. Pretensão enxotada, o atacante encontra abrigo no rival
Fluminense, onde, motivado, torna-se ídolo e referência. No entanto, volta a se
lesionar seriamente no joelho e é relegado a segundo plano nas Laranjeiras.
Magoado, aceita a oferta de tornar a vestir a camisa do Flamengo, mesmo longe
de suas melhores condições físicas. Agora atuando como homem de área, mostra
instinto goleador, marcando alguns gols importantes e fazendo a diferença nos
poucos momentos em que consegue entrar em campo. A experiência não dura muito
tempo, e Renato é enfim derrotado por suas limitações físicas (ironia, já que a
capacidade física sempre foi seu diferencial).
Sai de cena o jogador,
entra a personagem polêmica e irreverente, capaz de suscitar as mais exaltadas
reações. Pode-se idolatrar, admirar, odiar, rejeitar. Mas Renato Portaluppi
jamais terá convivido com a indiferença. Porque, com seu temperamento sanguíneo
e pulsante, soube cultivar na sua relação flamenga, o mais visceral dos
sentimentos. O mais ardente. O mais Flamengo.
A paixão.
“Esse Internacional só
tem o goleiro, o lateral-direito e o 10. Precisa de meio time pra pensar em
título brasileiro” (na semana da decisão do Brasileiro de 1987);
“Convoco a torcida do
Botafogo a comparecer em peso ao Maracanã. Venham todos, porque assim meu bicho
será maior” (na véspera de um Flamengo x Botafogo. O bicho por vitória na época era uma
percentagem da renda);
“A torcida do Flamengo
é um espetáculo. Dá vontade de parar pra ficar olhando. Bem diferente da
nossa.” (durante um Flamengo x Botafogo, em 1991, em que Renato atuou pelo
Botafogo);
“Sempre tive o
Fluminense como time pequeno. Joga como pequeno, tem jogadores de time pequeno.
Minha expectativa contra eles é sempre dar uma goleada. Aliás, se jogarem
abertos, é isso o que vai acontecer.” (antes de um Fla-Flu, em 1990);
“Às vezes o pequeno
ganha. Não deixa de ser pequeno por isso.” (depois de perder um Fla-Flu).