domingo, 10 de agosto de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

É sabido por todos que o ex-presidente Kléber Leite anda se aventurando na “modernidade” das redes sociais. Curioso, fui beber de seus ensinamentos, afinal de contas trata-se de figura respeitável, que costuma discorrer com propriedade sobre os mais diversos assuntos, especialmente os afetos à gestão das coisas do futebol flamengo.

Ainda mais curioso, resolvi relembrar momentos em que o ilustre dirigente dispôs da oportunidade de colocar em prática suas idéias para a gestão do Mais Querido. E é uma dessas passagens que aqui divido hoje. Boa leitura.

* * *

“Estou com uma idéia maluca.”

A frase, expelida num impulso, chacoalha o que até então vinha sendo uma daquelas intermináveis e repetitivas reuniões de gabinete, para tratar de mais uma crise no Flamengo. Treinador demitido, imprecações diversas acerca da qualidade do elenco, da falta de interesse de alguns jogadores, entre outros muxoxos. Mas o presidente acaba de ter uma idéia maluca. E em torno dessa sugestão as discussões se tornam febris, acaloradas, entusiasmadas.

A idéia salva a reunião. Mas não salvará o Flamengo.

*

Reunidos no centro do campo da Gávea, os jogadores assistem, perplexos, à “cerimônia” de apresentação do seu novo treinador, o radialista Washington Rodrigues. Alguns balançam a cabeça, incrédulos. Outros cochicham aos risos, sem sequer disfarçar. Um repórter define a cena como “de uma constrangedora comicidade”. O Flamengo definitivamente quer fazer história, nem que seja por vias tortuosas.

Radialista bem-sucedido, Washington Rodrigues, ou Apolinho, ocupa a cadeira de comentarista principal da Rádio Globo RJ, a emissora de maior audiência no estado. Falastrão, irônico e verborrágico, não esconde de ninguém sua inflamada veia rubro-negra. É particularmente mordaz ao avaliar a passagem do craque Romário, a quem eleva à categoria de desafeto ao criticar de forma contundente as regalias e a falta de empenho do jogador nos treinamentos. “Não há treinador que dê certo com Romário nesse time”, “A torcida anda querendo ver Romário pelas costas”, “minha bazuca está apontada para ele”, entre outras frases de efeito, talvez motivada pela amizade de anos entre o Apolinho e Vanderlei Luxemburgo, recente desafeto do goleador. E para muitos, essa voz grossa pode ter sido o estopim para a “idéia maluca” de Kléber Leite, uma tentativa desesperada de enquadrar o monstro que ele próprio ajudou a criar (com mimos como a construção de uma quadra de futevôlei dentro da Gávea e a contratação de seu fisioterapeuta particular, entre outras regalias).

Mas quem espera a tomada de medidas fortes, logo se decepciona. O Apolinho chega com um discurso conciliador, abraça Romário, fala em “rever a relação”, solta declarações carinhosas (“Romário precisa de um cafuné”) e não dá o menor sinal de que irá impor medidas coercitivas. Busca levantar o moral dos jogadores, chama todos para conversas reservadas, demonstra capacidade de persuasão, surpreendendo os mais céticos. Os primeiros resultados são animadores, uma virada heróica e sensacional contra o Vélez Sarsfield em pleno campo adversário (na melhor e talvez única grande atuação de Edmundo pelo Flamengo), 3-2 nos minutos finais, e uma segura vitória contra o Juventude, em Caxias do Sul (2-0).

Mas os problemas estruturais estão lá. E logo tornarão a aflorar.

Definitivamente, o volumoso Apolinho não é treinador de futebol. Desconhece detalhes como a linha diagonal de cobertura, o sincronismo entre volantes, laterais e zagueiros e não reúne a menor vocação para interpretar qual a formação tática mais adequada para o perfil dos jogadores de que dispõe. Ao contrário, gosta de apregoar que “433 é linha de ônibus”. Indagado sobre o sistema de jogo que deseja implantar no Flamengo, responde sem pudor, “o feijão com arroz, talvez com um ovo frito por cima”. Elege o medíocre volante Pingo o seu “chefe da SWAT” e vai fazendo a alegria de desafetos e humoristas.  Não contente, “contrata” uma nova integrante para sua comissão técnica, uma TV de 14 polegadas que pede para que seja instalada no banco de reservas em todas as partidas do Flamengo. “Gosto de estudar os detalhes, ver a repetição dos lances”, justifica. Enquanto isso, o trabalho real de treinamento do time (ou sua tentativa) vai ficando a cargo do “assistente” Artur Bernardes, treinador de currículo discreto que efetivamente comanda as atividades dentro do campo. “Sigo as orientações dele”, disfarça sem convencer.

Passado o impacto inicial, as crises de relacionamento no elenco tornam a aparecer. Após um inacreditável vexame em Florianópolis, em que o Flamengo do Apolinho consegue a façanha de abrir 2-0 e ceder o empate para um Grêmio cheio de reservas e com nove jogadores, partida em que o esquema “montanha-russa” foi testado e reprovado, o vestiário explode, acirrando o racha entre as estrelas (comandadas por Romário e Edmundo) e o restante do elenco (“comandado” por Sávio). Romário critica os zagueiros, Sávio os defende, ninguém se entende, e o time volta a despencar na tabela. O auge da crise se dá após um Fla-Flu em Campina Grande, quando Romário declara taxativamente que “esse time é uma merda e não vai a lugar algum”.

O resultado é a lanterna de seu grupo ao final do primeiro turno e a ameaça cada vez mais viva de rebaixamento. Como se o surrealismo não fosse suficiente, o Flamengo desiste de exibir seu futebol deprimente pelo Brasil e se fixa no Rio de Janeiro. Em São Januário, que se torna o caldeirão rubro-negro e onde o Flamengo se livra da Série B com vitórias cruciais contra Bragantino, Criciúma, Goiás e Sport.

A crise somente dá sinais de atenuação quando Edmundo começa a se tornar figura cada vez mais ausente da equipe. Convivendo com suspensões e lesões, enfim o Animal fratura o pé contra o Internacional, no Beira-Rio, e está fora do restante da temporada. Romário, que também coleciona ausências pelos mais diversos motivos (dores no pescoço, intoxicação alimentar, cartões amarelos obtidos no final de partidas já decididas), está gordo e vai arrastando sua desmotivação, ansioso pelo final da temporada. Ironicamente, sem os dois astros e escalado com garotos como Fabiano, Rodrigo Mendes e Aloísio Chulapa o Flamengo começa a crescer na Supercopa, vai passando fase a fase até chegar às finais. Na primeira partida, com o time completo, o rubro-negro atua de forma estranhamente apática e praticamente define a perda do título na derrota por 2-0 para os argentinos do Independiente, de nada adiantando o magro 1-0 no Maracanã lotado.

Poderia ser no Maracanã abarrotado, pulsante e fervilhante, mas foi no silencioso e acanhado Estádio Municipal, de Juiz de Fora. Poderia ter sido contra o forte Independiente, um dos mais tradicionais clubes da América do Sul, mas acabou contra o União São João de Araras, lanterna absoluto do Brasileiro. Poderia ser erguendo a taça de campeão, mas a realidade mostrou um time buscando um empate com dificuldades após sair com dois gols atrás no marcador. Opaca, clandestina, mera nota de rodapé. Eis a despedida de Washington Rodrigues do comando técnico do Flamengo.

Experiência que o Apolinho declararia válida, “quem nunca sonhou dirigir seu time de coração?”, mas que se mostrou um recurso extravagante e inútil para sanar as mazelas de um time mal concebido, mal montado, mal planejado, fadado ao desastre.

O perfeito reflexo de seus comandantes.