A noite
abraça a Gávea.
A
sensação é de impotência, de desamparo,
de absoluta incapacidade de reação. Decorridas 16 rodadas do Campeonato
Brasileiro, o Flamengo ocupa a lanterna da competição, com apenas duas
esquálidas vitórias, precisando descontar quatro pontos para sair da zona de
rebaixamento, onde está instalado há vários jogos. Na mais recente partida, a
derrota em Volta Redonda para o
Juventude (0-1) sela a demissão do treinador Abel, definitivamente desgastado
desde a catástrofe da final da Copa do Brasil.
Mas
Abel, com todas as limitações, terá feito muito e é o menos culpado.
A
demissão é confirmada em um lacônico comunicado da diretoria. Repórteres se
acumulam em bom número para cobrir a crise e extrair declarações do interino
Andrade, que irá comandar o time na difícil partida seguinte, contra o Guarani,
em Campinas. Abraço aqui, aperto de mão ali, votos de boa sorte acolá, pipoca a
bomba. Subitamente, Abel, Andrade e os jogadores se tornam meros coadjuvantes,
figuras secundárias e descartáveis. A notícia não está mais neles. O alvo de
agora são os corredores acarpetados da Gávea.
Consuma-se
o golpe.
*
* *
A política de austeridade forçada adotada pela nova diretoria começa a cobrar seu preço. No início do ano havia sido criado o Fla-Futebol, departamento (teoricamente) autônomo entregue ao comando do ídolo Júnior. No entanto, as severas dificuldades financeiras impostas por problemas como o bloqueio das receitas de patrocínio da Petrobras, além de penhoras diversas e, principalmente, a falta de uma real independência dos demais poderes do clube, estrangulam seu raio de ação. Nesse contexto, o Flamengo somente se torna atrativo para veteranos em fim de carreira e apostas desconhecidas. O clube é esnobado por jogadores do quilate do volante Zé Luís, nulidade revelada pelo Marília-SP que prefere atuar no futebol mineiro.
Ainda
assim, Abel consegue aglutinar esse caldo de mediocridade e formar algo
minimamente competitivo, ainda que em âmbito regional, com a ajuda de algumas
ilhas de talento que ainda remanescem no elenco (Júlio César, Felipe, Rafael e
jovens como Jean e Ibson), e com surpreendente naturalidade desbanca o favorito
Fluminense e conquista um dos Estaduais mais tranqüilos de sua história (no
embalo da “poeira”). No entanto, a chegada às finais da Copa do Brasil
(abençoada por uma tabela extremamente favorável) cria uma ilusão de título e
grandeza, logo desfeita pela acachapante derrota para o modesto e apenas
certinho Santo André em pleno Maracanã.
É
o bastante. O impacto é devastador, o clube perde algumas peças importantes e
entra no Brasileiro com um elenco coberto por severas e graves lacunas, como o
comando de ataque, onde o irregular e afoito Jean recebe a incumbência de se tornar
o responsável pelos gols da equipe. Não dá certo, as derrotas se sucedem, a
bola não entra, o time entra em parafuso e a pressão da torcida e da imprensa
começa a se tornar insustentável. Isso tudo num contexto de salários
invariavelmente atrasados. O resultado é a lanterna do Brasileiro.
Os
insucessos em campo começam a provocar turbulências na política interna.
Enciumados com o sucesso inicial da política “pé no chão” de Júnior, os
diretores ditos “amadores” encontram finalmente terreno fértil para ação.
Picuinhas, declarações enviesadas, estranhos entraves para a liberação de
verbas para contratações, várias armas são postas a campo na tentativa de
sepultar de vez o trabalho do departamento, cuja autonomia é tida como
potencialmente perigosa na guerra de poderes do clube. Talvez farto, talvez
indiferente, o presidente anuncia uma medida absolutamente heterodoxa para
buscar acalmar o incêndio. Uma ação impactante, de força, de peso. Vai passear
na Disney.
*
* *
O
boato é finalmente confirmado. Não há mais rumores ou especulações. Os
repórteres estão diante de um fato. E o fato está lá, dando entrevistas,
explicando todo o ocorrido. Cabelos pintados, aparelhos e uma fisionomia que
esboça um sorriso tímido, o atacante Dimba ocupa o centro de uma roda de
jornalistas, dirigentes, curiosos e outros abutres, todos sequiosos para
repercutir a nova contratação do Flamengo. Dimba será o camisa 9 a partir de
agora.
É o golpe.
Dimba
surge no futebol ao marcar o gol que dá ao Botafogo o título estadual de 1997
e, por conseguinte, mais um vice-campeonato ao Vasco. Depois, constroi uma
carreira permeada de altos e baixos, sempre em equipes médias, até explodir de
vez no Brasileiro de 2003, onde se torna, pelo Goiás, artilheiro e recordista
de gols da competição, marcando 31 gols. O desempenho de Dimba aguça o interesse
do Flamengo, mas uma proposta melhor do São Caetano faz com que o goleador
praticamente sele sua ida ao Azulão paulista. É quando o presidente em
exercício, fortemente alinhado à ala “amadora”, intervém e, com mão forte,
aumenta a oferta e acena com uma proposta irrecusável para o jogador, com mimos
como pagamento adiantado e independente da folha do clube, bônus adicional por
desempenho e outras amenidades. Contrato de jogador de primeira linha.
As
declarações emanadas da diretoria “amadora” do Flamengo são contundentes. “Foi
uma oportunidade que surgiu. O dinheiro? Alguns ilustres rubro-negros estão
ajudando. Flamengo é assim, quando precisa de recursos apelamos até ao Tio
Patinhas. Aliás, o presidente deve estar fazendo isso agora”, “O Júnior? É marujo.
Almirante não tem que prestar contas ou pedir opinião a marujo”.
Júnior,
claramente emparedado, cogita pedir demissão, mas recua, “não sou covarde e não
vou fazer o que eles querem”. Fecha-se com os jogadores, que entendem a posição
do “Capacete” e passam a cobrar publicamente e de forma mais pesada os atrasos
salariais, que persistem enquanto o Flamengo traz um jogador a peso de ouro.
“Não aceitamos tratamento diferenciado”, bradam os líderes do elenco. “Dimba é
craque e será tratado de forma diferente sim, gostem ou não. Terá os mesmos
privilégios que Edmundo e Romário desfrutam em seus clubes.”, afirma
categoricamente um dos diretores “amadores” participantes do golpe (ou
contratação).
Diante
de intervenção tão oportuna, o ambiente entre os jogadores consegue se tornar
ainda pior. A despeito de certo sucesso inicial (marca o gol da vitória na estréia
contra o São Paulo e emplaca alguns
tentos importantes nos jogos seguintes), o tímido e acanhado Dimba
sucumbe à péssima receptividade de que desfruta no elenco, a ponto de, mais à
frente, não suportar a indiferença e chamar os jornais para denunciar um “boicote”
dos jogadores, o que redunda na demissão do treinador Ricardo Gomes e na
implosão definitiva da já pálida relação que mantém com o restante dos atletas.
Seu rendimento em campo cairá a ponto de perder a vaga de titular para o
esforçado Whelliton, mas Dimba acabará se redimindo ao marcar, de falta, o gol
que abrirá o caminho para a suada salvação do Flamengo, no empate contra o São
Paulo no Morumbi, já na penúltima rodada (o time escapará de vez nos estranhos
6-2 enfiados no Cruzeiro, no jogo final).
Dimba
não resistirá ao caótico início da temporada seguinte e terminará,
ironicamente, sendo negociado justamente com o São Caetano, clube que tentara
contratá-lo um ano antes.
Essa
é a história resumida dos bastidores que envolveram a passagem de Dimba no Flamengo. A história de Editácio Vieira,
como poderia ser a história de Fernando, ou Fábio, ou Rodrigo, ou Edvaldo.
Ou
Robson.