domingo, 27 de julho de 2014

Alfarrábios do Melo

A noite abraça a Gávea.

A sensação é de impotência,  de desamparo, de absoluta incapacidade de reação. Decorridas 16 rodadas do Campeonato Brasileiro, o Flamengo ocupa a lanterna da competição, com apenas duas esquálidas vitórias, precisando descontar quatro pontos para sair da zona de rebaixamento, onde está instalado há vários jogos. Na mais recente partida, a derrota em Volta Redonda para  o Juventude (0-1) sela a demissão do treinador Abel, definitivamente desgastado desde a catástrofe da final da Copa do Brasil.

Mas Abel, com todas as limitações, terá feito muito e é o menos culpado.

A demissão é confirmada em um lacônico comunicado da diretoria. Repórteres se acumulam em bom número para cobrir a crise e extrair declarações do interino Andrade, que irá comandar o time na difícil partida seguinte, contra o Guarani, em Campinas. Abraço aqui, aperto de mão ali, votos de boa sorte acolá, pipoca a bomba. Subitamente, Abel, Andrade e os jogadores se tornam meros coadjuvantes, figuras secundárias e descartáveis. A notícia não está mais neles. O alvo de agora são os corredores acarpetados da Gávea.

Consuma-se o golpe.

* * *


A política de austeridade forçada adotada pela nova diretoria começa a cobrar seu preço. No início do ano havia sido criado o Fla-Futebol, departamento (teoricamente) autônomo entregue ao comando do ídolo Júnior. No entanto, as severas dificuldades financeiras impostas por problemas como o bloqueio das receitas de patrocínio da Petrobras, além de penhoras diversas e, principalmente, a falta de uma real independência dos demais poderes do clube, estrangulam seu raio de ação. Nesse contexto, o Flamengo somente se torna atrativo para veteranos em fim de carreira e apostas desconhecidas. O clube é esnobado por jogadores do quilate do volante Zé Luís, nulidade revelada pelo Marília-SP que prefere atuar no futebol mineiro.

Ainda assim, Abel consegue aglutinar esse caldo de mediocridade e formar algo minimamente competitivo, ainda que em âmbito regional, com a ajuda de algumas ilhas de talento que ainda remanescem no elenco (Júlio César, Felipe, Rafael e jovens como Jean e Ibson), e com surpreendente naturalidade desbanca o favorito Fluminense e conquista um dos Estaduais mais tranqüilos de sua história (no embalo da “poeira”). No entanto, a chegada às finais da Copa do Brasil (abençoada por uma tabela extremamente favorável) cria uma ilusão de título e grandeza, logo desfeita pela acachapante derrota para o modesto e apenas certinho Santo André em pleno Maracanã.

É o bastante. O impacto é devastador, o clube perde algumas peças importantes e entra no Brasileiro com um elenco coberto por severas e graves lacunas, como o comando de ataque, onde o irregular e afoito Jean recebe a incumbência de se tornar o responsável pelos gols da equipe. Não dá certo, as derrotas se sucedem, a bola não entra, o time entra em parafuso e a pressão da torcida e da imprensa começa a se tornar insustentável. Isso tudo num contexto de salários invariavelmente atrasados. O resultado é a lanterna do Brasileiro.

Os insucessos em campo começam a provocar turbulências na política interna. Enciumados com o sucesso inicial da política “pé no chão” de Júnior, os diretores ditos “amadores” encontram finalmente terreno fértil para ação. Picuinhas, declarações enviesadas, estranhos entraves para a liberação de verbas para contratações, várias armas são postas a campo na tentativa de sepultar de vez o trabalho do departamento, cuja autonomia é tida como potencialmente perigosa na guerra de poderes do clube. Talvez farto, talvez indiferente, o presidente anuncia uma medida absolutamente heterodoxa para buscar acalmar o incêndio. Uma ação impactante, de força, de peso. Vai passear na Disney.

* * *

O boato é finalmente confirmado. Não há mais rumores ou especulações. Os repórteres estão diante de um fato. E o fato está lá, dando entrevistas, explicando todo o ocorrido. Cabelos pintados, aparelhos e uma fisionomia que esboça um sorriso tímido, o atacante Dimba ocupa o centro de uma roda de jornalistas, dirigentes, curiosos e outros abutres, todos sequiosos para repercutir a nova contratação do Flamengo. Dimba será o camisa 9 a partir de agora.

É o golpe.

Dimba surge no futebol ao marcar o gol que dá ao Botafogo o título estadual de 1997 e, por conseguinte, mais um vice-campeonato ao Vasco. Depois, constroi uma carreira permeada de altos e baixos, sempre em equipes médias, até explodir de vez no Brasileiro de 2003, onde se torna, pelo Goiás, artilheiro e recordista de gols da competição, marcando 31 gols. O desempenho de Dimba aguça o interesse do Flamengo, mas uma proposta melhor do São Caetano faz com que o goleador praticamente sele sua ida ao Azulão paulista. É quando o presidente em exercício, fortemente alinhado à ala “amadora”, intervém e, com mão forte, aumenta a oferta e acena com uma proposta irrecusável para o jogador, com mimos como pagamento adiantado e independente da folha do clube, bônus adicional por desempenho e outras amenidades. Contrato de jogador de primeira linha.

As declarações emanadas da diretoria “amadora” do Flamengo são contundentes. “Foi uma oportunidade que surgiu. O dinheiro? Alguns ilustres rubro-negros estão ajudando. Flamengo é assim, quando precisa de recursos apelamos até ao Tio Patinhas. Aliás, o presidente deve estar fazendo isso agora”, “O Júnior? É marujo. Almirante não tem que prestar contas ou pedir opinião a marujo”.

Júnior, claramente emparedado, cogita pedir demissão, mas recua, “não sou covarde e não vou fazer o que eles querem”. Fecha-se com os jogadores, que entendem a posição do “Capacete” e passam a cobrar publicamente e de forma mais pesada os atrasos salariais, que persistem enquanto o Flamengo traz um jogador a peso de ouro. “Não aceitamos tratamento diferenciado”, bradam os líderes do elenco. “Dimba é craque e será tratado de forma diferente sim, gostem ou não. Terá os mesmos privilégios que Edmundo e Romário desfrutam em seus clubes.”, afirma categoricamente um dos diretores “amadores” participantes do golpe (ou contratação).

Diante de intervenção tão oportuna, o ambiente entre os jogadores consegue se tornar ainda pior. A despeito de certo sucesso inicial (marca o gol da vitória na estréia contra o São Paulo e emplaca alguns  tentos importantes nos jogos seguintes), o tímido e acanhado Dimba sucumbe à péssima receptividade de que desfruta no elenco, a ponto de, mais à frente, não suportar a indiferença e chamar os jornais para denunciar um “boicote” dos jogadores, o que redunda na demissão do treinador Ricardo Gomes e na implosão definitiva da já pálida relação que mantém com o restante dos atletas. Seu rendimento em campo cairá a ponto de perder a vaga de titular para o esforçado Whelliton, mas Dimba acabará se redimindo ao marcar, de falta, o gol que abrirá o caminho para a suada salvação do Flamengo, no empate contra o São Paulo no Morumbi, já na penúltima rodada (o time escapará de vez nos estranhos 6-2 enfiados no Cruzeiro, no jogo final).

Dimba não resistirá ao caótico início da temporada seguinte e terminará, ironicamente, sendo negociado justamente com o São Caetano, clube que tentara contratá-lo um ano antes.

Essa é a história resumida dos bastidores que envolveram a passagem de Dimba no Flamengo. A história de Editácio Vieira, como poderia ser a história de Fernando, ou Fábio, ou Rodrigo, ou Edvaldo.



Ou Robson.