Irmãos flamengos,
estamos em época de muita
especulação. Como não aprecio muito esse disse-que-disse de bastidores, aproveito a oportunidade para prestar uma sincera homenagem ao
primeiro Tricampeonato do futebol profissional do Clube de Regatas do Flamengo, conquista que completa setenta anos em 2014.
O texto é de Mário
Filho. Longo, mas que compensa, e muito, pela profundidade, e pela fidelidade
do retrato traçado em suas linhas a respeito do que foi aquela decisão,
disputada no antigo estádio da Gávea, em 29 de outubro de 1944, com mais de
quarenta mil presentes, e vencida pelo Flamengo por 1x0, gol de Agustín Valido,
aos 41 minutos do segundo tempo.
Deve-se lembrar que o
time do Flamengo teve sérios problemas antes da decisão. Domingos da Guia já
não integrava o elenco, pois fora vendido; Modesto Bria, vitimado por uma
furunculose generalizada, jogaria no sacrifício; Valido, que inclusive havia
parado de jogar há um ano e meio, e fora chamado apenas para disputar os jogos
finais, estava com 39º de febre; Pirilo também encontrava-se gravemente doente; Zizinho idem.
Além disso, o
adversário, Vasco da Gama, vivia momento muito melhor, consolidando o time que
viria a ser cognominado “expresso da vitória”, e que formaria a base com a qual
a seleção brasileira se sagraria vice-campeã mundial em 1950.
Como se vê, as
circunstâncias eram bastante adversas.
Podemos perceber da
leitura que o Flamengo já era uma alucinação naqueles anos de 1944. Imaginemos
o que eram o Rio de janeiro e o Brasil em 1944. Era outra cidade; era outro
país.
O post será composto
por passagens que selecionei para os amigos.
Sem mais preâmbulos,
revivamos a história através dos olhos perscrutantes de Mário Filho.
...
A Caminho da
Gávea
“Acordei, eram nove
horas. Fui tomar café e, depois do café, cheguei à janela. Lá vinha um bonde
Gávea, arrastando-se. Gente pendurada nos balaustres, como cachos de bananas.
Devia surpreender-me mas não me surpreendi. Aquilo, pelo contrário, pareceu-me a
coisa mais natural do mundo.
O povo das
arquibancadas tinha de amanhecer na Gávea, para poder arranjar lugar. Não se
tratava só de comprar uma arquibancada, de entrar. O mais importante era tomar
os pontos estratégicos do campo. Daí a necessidade de chegar cedo e em massa.
Um torcedor, hoje, se multiplicava. Não se sentia um indivíduo: sentia-se
multidão e era arrastado por ela. A multidão atrai, como um ímã. É um chamado
irresistível.
Os que estão pendurados
nos bondes vieram de lugares diferentes. Não se conhecem e são mais que irmãos.
Eu me senti envolvido
pelo ambiente do match, fiquei com
pressa. E era cedo, muito cedo ainda.
Havia uma cadeira, na
tribuna de honra do Flamengo, com o meu nome. Ninguém poderia sentar-se na
cadeira, a não ser pata tomar conta. Quando eu chegasse, encontraria o lugar:
não havia perigo de ficar de fora. O que me apressava, porém, não era o perigo
de perder o lugar, era outra coisa.
Eu queria ver a Gávea,
o mundo de gente na praça, as bandeiras desfraldadas ao vento, queria ouvir as
buzinas dos carros, os gritos sem nem para que, horas antes do jogo, de
Flamengo ou de Vasco.
No Jardim Botânico, os
bondes lembravam vagões e mais vagões de trem, engatados. Os automóveis iam a
passo. E eu me excitava, querendo estar no campo logo de uma vez. Saltei na
praça (Santos Dumont, na Gávea, distante cerca de um quilômetro da sede do
Flamengo).
Todo mundo corria. Eu
não tinha necessidade de correr. Aquela gente corria porque não tinha um lugar
marcado; a minha cadeira estava à minha espera. Apressei o passo por nada,
devia ser porque todos corriam. Quando dei por mim estava correndo. Cheguei
cansado ao portão do Flamengo.
...
A Gávea
A torcida do Flamengo,
a que era chefiada pelo Jaime de Carvalho (fundador da Charanga do Flamengo),
tomara conta da arquibancada da lagoa. Jaime de Carvalho desfraldara uma
bandeira do Flamengo, grande, nova, com as listras pretas bem pretas, com as
listras vermelhas sangrando, num mastro de ripas.
Não era a única bandeira do
Flamengo do lado de lá. Havia outra, mais velha, quase desbotada, uma bandeira
que tinha tremulado muitas vezes, em outras tardes. De onde eu estava não podia
ler os cartazes de pano, esticados. Um deles tinha de ser o “Avante, Flamengo”.
E eu julguei distinguir as letras do “Avante Flamengo”, o grito de guerra de
Jaime de Carvalho.
José Lins do Rêgo me
contou que estava na Gávea desde as oito e meia da manhã. Achei até um pouco
tarde. José Lins do Rêgo, aliás, disse oito e meia como quem diz duas horas da
tarde. Quando ele chegou, a praça (Nossa Senhora Auxiliadora, defronte à sede
do Flamengo) já estava cheia. Havia uma fila que nascia no portão das
arquibancadas e fazia uma porção de voltas, para envolver o Hospital Miguel
Couto.
José Lins do Rêgo foi
para o dormitório da garagem. Newton Paes Barreto (médico do Flamengo) estava
examinando Pirilo, que fazia caretas de dor. De um lado Pirilo, de outro lado,
Valido. ‘Valido está com febre’? – perguntou José Lins do Rêgo. ‘Trinta e nove
graus’ – respondeu Newton Paes Barreto. José Lins do Rêgo engoliu fel. O Pirilo
de cama, o Valido com trinta e nove graus de febre, como é que podia rir, achar
graça em alguma coisa?
...
Entrada do Time do Flamengo
A torcida do Flamengo,
do lado da lagoa, mexeu-se. Olhei para onde devia entrar o time do Flamengo.
Ainda não chegara a hora do time do Flamengo aparecer. O Vai na Bola
(funcionário do clube e torcedor fanático), porém, correu pelo campo, trazendo
em cada mão um enorme prato de metal, batendo um no outro, sem parar. Era o
aviso para que a torcida do Flamengo se preparasse.
Foguetes assobiavam,
num ensaio geral. E eu senti a presença do time do Flamengo, em campo, muito
antes de o ver. É que, do lado de lá, uma língua de fogo agitou-se, antes de
uma explosão seca de dinamite, que abalou a estrutura do estádio.
Jaime de Carvalho
achara pouco a bomba de São João. Para saudar a entrada em campo, do time do
Flamengo, só bomba de dinamite, embora pequena. Bastava tocar fogo no pavio da
bomba de pesca, e num instante se ouviria a explosão da dinamite. Uma cortina
de fumaça escondeu a torcida do Flamengo.
E eram os clarões da
dinamite, que, de quando em quando, escancaravam a cortina de fumaça. A gente tinha
a impressão de ver as cabeças dos torcedores do Flamengo, os braços que se
agitavam. As bombas de pesca caíam na beira do campo, arrancavam grama,
pulverizando-a. E os jogadores do Flamengo, defronte da tribuna de honra,
erguiam hurras.
...
O Gol do
Título
E o Flamengo (já no
segundo tempo) atacava mais, e pela esquerda: as bolas passavam por cima, pelos
lados. Barqueta (goleiro do Vasco) defendia. Este negócio de atacar mais não
resolvia. O que resolvia era o gol, e o gol não vinha. Podia até suceder que o
Vasco, atacando menos, marcasse um gol. Quem marcasse um gol seria o campeão.
E o jogo acaba não
acaba. O Vevé ia bater um foul. Molas
(cartunista argentino) ouviu ‘vai ser agora’. Talvez fosse agora. Vevé bateu o foul. Molas viu a cabeça de Valido
subindo. A bola bateu na cabeça de Valido e foi para dentro do gol.
Parecia que todo mundo
enlouquecera. José Lins do Rêgo agarrara Luiz Gallotti pelo pescoço e
apertava-o de encontro ao peito. Eu me lembrei da finalíssima: ele fizera o
mesmo comigo, quase me cegara – um botão do paletó dele querendo varar-me um
olho.
Não se via mais ninguém
do lado da lagoa. Uma cortina de fumaça de foguetes e de bombas tapara a
multidão do Flamengo. Guilherme Gomes (o árbitro da decisão) estava junto da
bandeirinha; era melhor deixar a torcida do Flamengo desabafar de uma vez. E a
torcida do Flamengo esticava a emoção do gol: continuava gritando, pulando.
Quem era Flamengo não podia nenhum outro Flamengo, sem abrir os braços.
Valido chorava. A
vontade de chorar fora mais forte do que ele. Enquanto Valido chorava, Tião
(companheiro de ataque no time do Flamengo) ria. Tião não sabia chorar, sabia
rir. Era um riso enternecido. Tião ria e beijava Valido. Não beijava uma nem
duas vezes. Beijava uma porção de vezes, devargazinho, emendando um beijo no
outro. E Valido, desfeito em lágrimas, deixava-se beijar, sem um gesto, as
pernas fracas, tudo rodando diante dele. Valido estava tão fraco que Tião
precisava segurá-lo. Se Tião não o segurasse, ele cairia, rolaria por terra,
para chorar melhor, e lá ficar soluçando.
‘Quanto faltava?’ – era
a pergunta que todo flamengo fazia. Faltava pouco. Sem contar os descontos,
dois minutos. Dois minutos passavam depressa – passaram depressa. Acabados os
dois minutos, o jogo não parou. Aí, o tempo começou a se arrastar, nada de
Guilherme Gomes apitar. ‘Olha a hora!’ – a multidão gritava para Guilherme
Gomes. E Guilherme Gomes olhava para o cronômetro.
‘Olha a hora! Olha a
hora!’ – eram os gritos da multidão. O ‘olha a hora’ saía grosso da boca da
multidão; de milhares de bocas, ao mesmo tempo, um ‘olha a hora’ que não
parecia humano. E Guilherme Gomes voltava a olhar o cronômetro.
...
O Fim do Jogo
Quando Guilherme Gomes
apitou, agitando os braços, foi como se abrisse as portas de uma prisão
gigantesca. A multidão pulou as grades e entrou em campo. Num instante o
gramado desapareceu – as cabeças dos torcedores do Flamengo subindo e baixando.
Era a libertação de milhares de pessoas. Os grilhões tinham sido partidos com
um gesto mágico de Guilherme Gomes. Agora, sim, José Lins do Rêgo podia
respirar à vontade, abrir o peito, gritar Flamengo. Grito de vida que voltava,
de renascimento.
Cartazes...Popeye
(símbolo do Flamengo criado pelo cartunista Molas) dando o braço à Miss
Campeonato e o Almirante (símbolo do Vasco) com a sogra, segurando a cauda do
vestido da noiva.
A Gávea era do
Flamengo, só do Flamengo. Olhei para o outro lado e vi um homem chorando. Homem
não chora. Chora sim: Valido chorou. O homem estava de corpo duro. Endurecera o
corpo para não soluçar. A boca fechara-se para os soluções; os olhos, porém se
abriam para as lágrimas, que corriam livremente. O homem que chorava não tinha
vergonha de chorar na frente de todo mundo. Pelo contrário, orgulhava-se das
lágrimas: boas, puras, cristalinas.
Os jogadores do
Flamengo equilibravam-se nos ombros da torcida. Biguá (lateral do Flamengo e
símbolo da raça rubro-negra) subia e baixava. Torcedores pulavam para apertar a
mão de Biguá. Biguá encolhia-se, mas não adiantava. E o peso do corpo de um
torcedor arrastava-o para baixo.
Quando os torcedores, que carregavam Biguá,
chegaram em frente à cerca que dava para a tribuna de honra, alguém abriu o
portão baixo, de ferro e fez um sinal. Biguá era como um bicho acuado que
encontra um buraco por onde se meter. Atirou-se no chão e quase bateu com a
cabeça na cerca de arame, sujando as mãos de terra. Biguá pensava que estava
livre, mas não estava: José Lins do Rêgo abriu os braços e apertou Biguá de
encontro ao peito. Foi um abraço rápido. ‘Me desculpe, doutor Zé Lins’ – Biguá
quis atravessar o corredor da tribuna de honra. Havia mais gente que queria
abraçá-lo, rolar com ele pelo chão.
O que acontecera a
Biguá acontecera, também, a todos os jogadores do Flamengo. Até Quirino
aparecia nos braços da torcida. Valido é que sumira. Onde estava Valido? Agora
só se via a multidão, que cobria todo o campo. E cartazes, uma porção de
cartazes. E clarins. Do outro lado a banda de clarins; o sino repicando sem
cessar. Não se escutava o barulho dos pratos de metal do Vai na Bola. Os sons
se misturavam: era a sinfonia da vitória.
Perto de mim um
torcedor do Flamengo cantava, sozinho, ‘Flamengo, Flamengo, tua glória é
lutar’. Cada torcedor do Flamengo fazia o que lhe vinha na cabeça, sem olhar
para os outros. E no fim, tudo dava certo. Era o delírio do Carnaval, noite de
terça-feira gorda na Avenida.
Não havia ninguém, no
vestiário do Flamengo, que não estivesse chorando e rindo ao mesmo tempo.
...
A Festa da Torcida do Flamengo
Só agora o campo se
esvaziava. E Jaime de Carvalho correndo de um lado para o outro, avisando todo
mundo. A torcida do Flamengo iria a pé, da Gávea até a sede do clube (antiga
sede, na Rua do Russel, nº 22, hoje Praia do Flamengo, nº 66, que dista em torno
de dez quilômetros da Gávea), como num rancho, a Estação Primeira a caminho da
Praça Onze.
Nada de bonde. Os
bondes, os lotações, estavam bons para a torcida do Vasco, que voltava de
cabeça baixa. O torcedor do Flamengo tinha de levantar a cabeça, de empinar o
queixo, de estufar o peito. Nada disso! O torcedor do Flamengo tinha era de se
espalhar, de sambar, de pular, de puxar cordão, alegrando todas as ruas,
fazendo escancarar todas as janelas. E Jaime de Carvalho, já rouco, continuava
a dar ordens.
A multidão encheu a
praça. Os lotações fonfonavam. De longe se via os bondes carregados de gente.
Os bondes iam para a cidade, levando os vascaínos e os flamengos que não sabiam
esperar. A vontade de Jaime de Carvalho era fazer parar todos os bondes. Quem fosse
Flamengo que saltasse. ‘Vai na Bola’ batia com um prato de metal no outro, sem
ritmo, só para fazer barulho. Os clarins tocavam. Havia gente dançando.
Os
cartazes subiam e baixavam como estandartes. Os cartazes eram os estandartes do
bloco do Flamengo. Jaime de Carvalho deu o sinal. Todos a caminho. E a multidão
movimentou-se, cantando e dançando.
Os automóveis e os
bondes passavam na frente do bloco do Flamengo. Havia gente que saltava para
engrossar a multidão, entrar no brinquedo. As janelas se abriam: Jaime de
Carvalho tinha certeza de que elas iam se abrir. Abriam-se e enfeitavam-se de
sorrisos. Havia flamengos em toda parte: a cidade era do Flamengo. Garotos
corriam na frente do bloco – o ‘Vai na Bola’ batendo com os pratos. Gritos de
Flamengo de estourar os pulmões – um hino aqui, um samba acolá.
E a sede do Flamengo
ficava longe, quase junto do jardim do Palácio do Catete. O bloco tinha de
atravessar o Jardim Botânico, São Clemente, a Praia de Botafogo, a Avenida da
Ligação, a Praia do Flamengo.
Ninguém, porém, achava longe. Parecia até que a
sede do Flamengo era ali.”
Mário Filho: Histórias do Flamengo.