Barrado.
A decisão
sai assim crua, seca, sem margem a questionamentos.
“Está
barrado. Vai ter que esperar outra oportunidade. Em Salvador, o time
será outro.”
Resignado,
o craque vai se dirigindo ao vestiário após o treino, enquanto
organiza em sua cabeça o desenrolar dos acontecimentos que levaram o
treinador àquela atitude forte, extrema.
Há
vários meses, talvez anos, o Flamengo vive um momento difícil.
Começa a ser tragado por uma realidade que cobra do clube boas
práticas de gestão, há muito abandonadas no clube. A estrutura
que catapultou o clube ao protagonismo internacional, criada há
algum tempo, já dá sinais de saturação e desgaste. E o resultado
se reflete dentro do campo, com participações pífias em torneios
nacionais e regionais.
E o
processo de crise tem se intensificado nos últimos meses. Correntes
políticas se engalfinham a facas e porretes. Nem mesmo a própria
comissão técnica do futebol se entende, rachada entre os que
preferem a efetivação de medalhões, e até a contratação de mais
estrelas, e os que defendem a efetivação dos jogadores da base, que
nitidamente são de boa qualidade. O processo leva à formação de
grupos, panelas, patotas de jogadores que não se toleram entre si,
boicotes visíveis dentro do campo, o pior ambiente possível. Como
resultado, o time faz o pior Estadual dos últimos 15 anos, e não há
perspectiva de melhora a curto prazo.
O craque,
que sempre soube se manter à margem desse tipo de guerrinha, vai se
lembrando de tudo isso, enquanto ganha o rumo do chuveiro.
Normalmente falante e sorridente, está sério e soturno. A rigor,
anda farto.
O
fracasso no Estadual traz consequências. Cabeças rolam. O
treinador, boicotado pela ala dos “jovens”, é o primeiro a
rodar. Todo pimpão, o treinador dos juniores (apontado como o
principal fator de desestabilização do elenco, por querer impor a
escalação de seus pupilos na marra) se auto-anuncia como o
substituto, já traçando planos para o time profissional. Sonho que
dura 24 horas, quando é demitido junto com o diretor que o
respaldava. Vem um profissional de fora, um “manager” boquirroto
que, ignorando completamente a realidade financeira e histórica do
clube, prega que a solução é “vender os 11 e trazer 11”.
E,
fora os nomes que começam a ir e vir em blocos, pouca evolução se
percebe dentro de campo. As derrotas continuam ali, vivas,
frequentes.
Alguém
se aproxima do craque, é um dirigente. “Soube o que aconteceu.
Olha, a gente pode fazer o seguinte, arrumamos uma lesão, damos no
jornal que você sentiu uma contratura e pronto. O treinador topa.
Acho que nesse arranjo a gente lhe preserva.”
“Não.
Eu estou barrado, não é isso? Não tenho que esconder nada”.
É
evidente que o craque está aborrecido e não gostou da decisão.
Ninguém gosta de perder a vaga no time. Mas o que mais o incomoda é
que, poucas semanas antes, o experiente ídolo já havia decidido se
aposentar. Não renovou o contrato recentemente encerrado. Desfrutou
sua família, os jogos da Copa, a tranquilidade de quem sabe que
construiu uma história bonita e sólida. No entanto, a própria
diretoria do Flamengo, alguns torcedores, amigos e até jogadores se
revezaram numa romaria praticamente diária, buscando demovê-lo da
decisão de encerrar a carreira. Com efeito, seria um desperdício
deixar de apreciar por mais um tempo o seu futebol de alto nível
técnico e competitividade, tão em falta nesses tempos áridos. E o
argumento definitivo veio de um diretor, que acenou com a perspectiva
do craque, com o seu peso e sua força, aglutinar em torno de si uma
liderança que seria capaz de pacificar e acalmar as diversas e
estridentes vozes que não vinham deixando o elenco sair do lugar.
Fora do
time, preterido por um volante caneludo, desses que correm muito,
marcam muito, suam muito mas reúnem imensa dificuldade de lidar com
a bola. A bola, ora a bola, mero detalhe. O que importa é a força,
a “ocupação de espaços”.
De nada
adiantam os argumentos do craque. Em sua visão, renderá muito
melhor atuando como um meia, só que mais recuado. Tem a noção de
que não consegue mais, por óbvio, acompanhar o ritmo de garotos com
pouco mais da metade de sua idade. No entanto, sabe que sua visão
aguda de jogo e habilidade muito acima da média são fatores capazes
de desequilibrar partidas. Atuando recuado, é capaz de rodar bolas,
fazer lançamentos agudos, ditar o ritmo das partidas. Tal como em
sua carreira na Europa, onde seu futebol foi elogiado e aclamado. Mas
no Brasil, a cupidez tática vigente divide o meio-campo em meias ou
volantes. Sem meio-termo, sem variações. Outro dia, revelou ter
atuado de líbero na Itália. Pronto, o meteram de zagueiro. São
coisas que desgastam, desanimam.
Mas o
veterano craque não cai na armadilha. Sabe que é uma referência,
um nome ouvido, respeitado. Um espelho, cujo comportamento e reações
certamente serão replicados pelos jovens ora em formação, ou mesmo
por outros jogadores já formados. Queira ou não, é uma liderança,
e tem a plena noção de que o papel de líder traz enormes
responsabilidades. Ao menos ao líder positivo.
O craque
rechaça a ideia de simular contusão. Aceita a reserva sem reclamar.
Sem um ai. Vê com naturalidade o treinador bater no peito e bradar
macheza aos microfones. Não confabula, não conspira, não geme.
Simplesmente acata. Aos jornais, os protocolares “vou buscar
reconquistar meu espaço”, “foi opção do treinador, respeito”,
entre outras declarações inodoras.
E assim
se faz.
A partida
em Salvador é difícil, a primeira de um mata-mata. O adversário
vem motivado, acaba de eliminar o campeão carioca, e já tem a base
da equipe que a seguir será semifinalista do Brasileiro. É tido
como o favorito. O estádio recebe um bom público, embora pudesse
encher mais. O Flamengo começa bem, abre o placar, mas a seguir cede
o empate. Na volta do intervalo, o adversário passa a controlar o
jogo, dominar, pressionar.
É quando
o craque é chamado. “Vai você.”
E,
tranquilamente, o craque aquece e entra. Com a aura que só os
jogadores de primeira linha possuem, em poucos minutos muda
completamente o panorama da partida. Transforma uma derrota provável
em um empate lamentado, embora o 1-1, para fins de regulamento, não
seja tão ruim.
No
entanto, independente do placar, chama a atenção pela beleza e
plasticidade do seu jogo. Não comete um erro a olho nu. Roda, gira,
canta, torna-se o dono da partida. De repente, é como se pairasse
acima dos outros 21 coadjuvantes, que se limitam a contemplar a forma
como põe no bolso a difícil e traiçoeira arte de jogar futebol.
Dengosa e carente, a bola se aninha a seus pés e lhe declara amor.
E, obediente, faz o que o seu mestre manda. Aceita fazer parte do
verdadeiro recital que se tornam aqueles vinte derradeiros minutos de
jogo na Fonte Nova. O craque, como uma criança, vai se divertindo,
comandando, orientando, brincando. Regendo.
Qual um
genuíno maestro.
* * *
Durou
apenas 65 minutos a barração de Júnior, que recuperou a posição
na partida seguinte, o jogo de volta contra o Bahia, pela Copa do
Brasil-90, vencido pelo Flamengo por 1-0. Júnior voltou a ser
titular e referência da equipe. Além disso, com a profunda
reformulação levada a termo no final do ano, recebeu da nova
diretoria a função de comandar e liderar o grupo de garotos que,
com alguns reforços, passaria a representar o Flamengo dali em
diante. Com notável competência, conduziu o grupo à conquista do
Estadual-91 e do penta Brasileiro em 1992.
* * *
Os Alfarrábios entrarão em recesso no período da Copa do Mundo, retornando em 20 de julho. Espero que, até lá, tenhamos um Flamengo saneado, renovado e reforçado.