domingo, 25 de maio de 2014

Alfarrábios do Melo


O calor sufoca.

Inclemente, o sol espraia-se sem cerimônia pelos mais afastados recônditos, assando mentes, corpos e corações que se entregam à sua dura rotina diária. Que suam e porejam o seu sustento, desafiando o clima senegalês que se lhes condena a um perene desconforto.

A ampla e arborizada área que abriga o gramado da Gávea instiga o irromper de uma suave brisa, que fenece em sua inglória luta de tornar menos inóspito o clima brutal. Que, quente, também está denso. E tenso. No centro do gramado, vários corpos empapados em suor circundam a maciça figura de um senhor, cuja expressão transmite uma falsa sensação de fragilidade e cansaço. Mas seus olhos cintilantes e agudos denunciam uma mente vivaz. E voraz.

Fleitas Solich está irritado.

O treinador paraguaio explode numa arenga que se torna ainda mais pesada por conta do clima. As palavras entram na cara dos jogadores de maneira forte, quente. Fleitas abusa dos sopapos verbais, brada todo seu descontentamento, mostra não aceitar, não admitir e não tolerar o recente desempenho de sua equipe.

O Flamengo acaba de ser goleado pelo América.

Foi a segunda partida da decisão do Campeonato Carioca de 1955 (que transbordou até abril do ano seguinte). Decisão iniciada com uma sofrida vitória por 1-0, gol a dois minutos do fim (marcado por Evaristo), e que teve continuidade com o verdadeiro vareio de bola sofrido pelos bicampeões, uma goleada inapelável, irretorquível, 1-5. Resultado que faz com que toda a imprensa já considere os rubros como os virtuais campeões da cidade, afinal o Flamengo vem em uma trajetória nitidamente descendente, ganhou os dois primeiros turnos mas viveu uma queda absurda em seu futebol. O América, que venceu o terceiro turno de forma invicta, está voando e vem praticando o melhor jogo do momento, como aliás atesta a ampla superioridade mostrada até aqui nas finais. Falta apenas uma partida, a “negra maluca”. Para muitos, apenas um protocolo para o título americano.

Fleitas Solich termina seu esporro. Vai começar o treino. Última atividade antes da finalíssima.

O treinador inicia a distribuição das camisas dos titulares. Vai jogando as peças aos atletas. Evaristo, Zagalo, Joel, Chamorro. Dequinha, Pavão, Tomires, o garoto Duca (que vem substituindo o goleador Índio, lesionado). Súbito, o choque que estaca todos em um pesado imobilismo, deixa atônitos até mesmo os curiosos que por acaso estão por perto.

As últimas duas camisas são destinadas a Servílio e Dida. Estão fora Jadir e Paulinho.

Ninguém entende absolutamente nada. Em silêncio, parvos, os jogadores realizam o treinamento, cumprindo as instruções de Fleitas. O aguçado olhar do Feiticeiro percebe alguns focos de inquietação cá e lá, mas Solich age com naturalidade, não denuncia o menor sinal de indecisão ou vacilo. O treino é encerrado, e no ato algumas rodinhas se formam, enquanto o treinador vai ganhando o rumo do vestiário.

Fleitas Solich sabe que o time não vem bem e anda em declínio. Também tem plena consciência de que a temporada não foi fácil, o grupo, após a (relativamente) tranquila conquista do bicampeonato em 53-54, começou a dar sinais de acomodação, cujo expoente maior foi o craque Rubens, que tanto aprontou que acabou afastado do elenco, numa briga que até hoje traz sequelas. Há jogadores que perderam a flama, o medo, o temor da competição interna e se julgam titulares vitalícios, sabe o Brujo. E as consequências começaram a se mostrar na forma de aviso, no terceiro turno do campeonato, em que o Flamengo alcançou um desastroso quarto lugar, o pior desempenho da equipe em três anos. E a goleada na final mostra enfim a Fleitas que a necessidade de mudar é premente. Convicções precisam ser revistas, ideias repensadas. Do contrário, o preço será a perda do sonhado tricampeonato.

Do ponto de vista meramente técnico e tático, Fleitas Solich percebe que o sistema defensivo do Flamengo anda muito vulnerável no jogo aéreo, peculiaridade da qual o troncudo e grandalhão atacante Leônidas da Selva (não confundir com o craque Diamante Negro) tem se servido nas finais. O Feiticeiro também percebe que, com a lesão de Índio, o ataque flamengo perdeu consistência, em nada lembrando o tal Rolo Compressor. Sem movimentação e entrosamento, o time vem sendo facilmente neutralizado pelas defesas adversárias.

As peças a serem sacrificadas não são propriamente iniciantes. O médio-direito Jadir (posição precursora da atual lateral-direita) forma há anos com Dequinha e Jordan uma das melhores linhas do país. Jogador extremamente voluntarioso e raçudo, é um dos atletas mais queridos da torcida, que costuma exaltar suas costumeiras demonstrações de garra. No entanto, Jadir não atravessa boa fase, e nas duas partidas das finais foi envolvido pela ala esquerda do ataque americano, formada pelo irrequieto Romeiro e por Leônidas. Mesmo assim, ninguém imagina que esteja em risco a posição de um dos mais sólidos titulares da equipe.

Já o atacante Paulinho é simplesmente o artilheiro do campeonato e vive a melhor fase de sua carreira, coroada com a convocação para a Seleção Brasileira. Protagonizou a (até aqui) maior atuação individual do campeonato, ao marcar 3 vezes nos 6-1 impostos ao Fluminense no segundo turno (o jogo que acabou com a carreira do goleiro Veludo). Insinuante e de faro goleador, Paulinho é um dos principais nomes do campeonato. Não atravessa um grande momento (não marca gols há seis jogos), mas é reconhecidamente uma das armas do Flamengo para a busca do título. Mas o Feiticeiro tem outros planos.

Os escolhidos são Servílio e Dida. O primeiro é um defensor duro, ríspido e um verdadeiro “bate-estaca” na área, jogador muito difícil de ser batido pelo alto. O que lhe falta em habilidade lhe sobra em vigor físico e especialmente na capacidade de intimidação. Já Dida, que é tratado como uma “joia sendo lapidada”, é um atacante extremamente talentoso, de velocidade alucinante e índole goleadora, o que inclusive mostrou em alguns jogos, como o inesquecível clássico contra o Vasco (2-1), em que transformou o consagrado médio-volante Eli do Amparo em um “jovem desamparado”, segundo os jornais. Mas Dida, ainda muito jovem, acanhado e tímido, aparentemente não tem o estofo necessário para a disputa de um jogo final, de uma decisão. Isso é o que diz a lógica.
Mas Fleitas banca as duas alterações. Troca um dos ídolos do time por um reserva esforçado e substitui o artilheiro da equipe por um garoto acanhado. E não dá o menor sinal de arrependimento.

Chega o dia do jogo. O Maracanã explode em um dos maiores públicos de sua história. Estima-se mais de 200 mil pessoas no estádio, pois os portões estão arrombados por uma multidão histérica. O Presidente Juscelino Kubitschek está nas tribunas. Tudo aponta para uma das partidas mais emblemáticas da história.

Como esperado, a decisão de Fleitas repercute mal no grupo de jogadores. Paulinho, de temperamento mais contemporizador, reconhece em entrevistas a má fase e demonstra aceitar a opção do treinador, embora manifeste seu descontentamento com os colegas. Mais virulenta é a reação do passional Jadir, que chuta portas, xinga litros e vai atrás do presidente Fadel Fadel. “Quero minha rescisão de contrato, estou sendo posto de bode expiatório, assim não pode ser”. Fadel o acalma, “tenha tranquilidade, espere passar o jogo, pense melhor, não se faz nada de cabeça quente”.

O Feiticeiro sabe que as medidas são impopulares. Não está atrás de amor, está buscando vitórias. Tem a ampla certeza de que o respeito e a credibilidade se conquista dentro do campo, não fora dele. Não é bobo, sabe que os jogadores também estão descontentes com a fase do time, e no fundo anseiam por mudanças. Mais do que gostar, jogador admira e aprecia o comandante que demonstra segurança, firmeza e capacidade. O líder que ousa, age e ajuda os comandados a devolverem resultados. O comandante que, mesmo de temperamento odiado, fará com que todos cresçam profissionalmente.

É nisso que Fleitas aposta. Sabe ser admirado, reverenciado, até quase temido, pelos jogadores que não se cansam de mostrar espanto com a forma como o treinador é capaz de fazer alterações táticas profundas sem mexer em nenhum jogador em campo (até porque substituições são proibidas). E nesse momento de turbulência, irá se impor com a demonstração viva de que tem a mais absoluta certeza do que está fazendo. A história despreza os volúveis, os frágeis, os que se sujeitam as contingências e por elas são subjugados.

Preleção no vestiário. Antes, alguns jogadores tentam interceder pelos jogadores barrados. Mas Fleitas ignora os argumentos. E, em seu curto discurso, limita-se a dizer, com sua voz empostada, sotaque ainda algo carregado, “Esqueçam o antes, o durante e o depois. Vivam o agora. Ganharemos esse título. Seremos campeões. Eu confio em vocês. Apenas o que peço é que confiem em mim. Deem seu máximo. Joguem na plenitude, e vocês farão feliz essa torcida aí fora mais uma vez.”

“Apenas confiem. E lutem.”

* * *

1- O Flamengo derrotou o América por 4-1, tornando-se tricampeão estadual. A grande figura da partida foi o jovem Dida, que marcou os quatro gols da decisão. Dida, ao lado do jovem Duca, com quem havia formado dupla nos aspirantes, mostrou-se inteiramente à vontade no jogo, como previra Fleitas. Servílio foi apontado como o outro destaque, tendo anulado inteiramente o atacante Leônidas, que teve atuação apagada. Como também planejou o Feiticeiro.

2 - Apesar da ameaça, Jadir não rescindiu com o Flamengo. Permaneceu atuando pelo rubro-negro até 1962. Até hoje é lembrado como um dos principais jogadores da história do clube.