O calor sufoca.
Inclemente,
o sol espraia-se sem cerimônia pelos mais afastados recônditos,
assando mentes, corpos e corações que se entregam à sua dura
rotina diária. Que suam e porejam o seu sustento, desafiando o clima
senegalês que se lhes condena a um perene desconforto.
A ampla e
arborizada área que abriga o gramado da Gávea instiga o irromper de
uma suave brisa, que fenece em sua inglória luta de tornar menos
inóspito o clima brutal. Que, quente, também está denso. E tenso. No centro do gramado, vários corpos
empapados em suor circundam a maciça figura de um senhor, cuja
expressão transmite uma falsa sensação de fragilidade e cansaço.
Mas seus olhos cintilantes e agudos denunciam uma mente vivaz. E
voraz.
Fleitas
Solich está irritado.
O
treinador paraguaio explode numa arenga que se torna ainda mais
pesada por conta do clima. As palavras entram na cara dos jogadores
de maneira forte, quente. Fleitas abusa dos sopapos verbais, brada
todo seu descontentamento, mostra não aceitar, não admitir e não
tolerar o recente desempenho de sua equipe.
O
Flamengo acaba de ser goleado pelo América.
Foi a
segunda partida da decisão do Campeonato Carioca de 1955 (que
transbordou até abril do ano seguinte). Decisão iniciada com uma
sofrida vitória por 1-0, gol a dois minutos do fim (marcado por
Evaristo), e que teve continuidade com o verdadeiro vareio de bola
sofrido pelos bicampeões, uma goleada inapelável, irretorquível,
1-5. Resultado que faz com que toda a imprensa já considere os
rubros como os virtuais campeões da cidade, afinal o Flamengo vem em
uma trajetória nitidamente descendente, ganhou os dois primeiros
turnos mas viveu uma queda absurda em seu futebol. O América, que
venceu o terceiro turno de forma invicta, está voando e vem
praticando o melhor jogo do momento, como aliás atesta a ampla
superioridade mostrada até aqui nas finais. Falta apenas uma
partida, a “negra maluca”. Para muitos, apenas um protocolo para
o título americano.
Fleitas
Solich termina seu esporro. Vai começar o treino. Última atividade
antes da finalíssima.
O
treinador inicia a distribuição das camisas dos titulares. Vai
jogando as peças aos atletas. Evaristo, Zagalo, Joel, Chamorro.
Dequinha, Pavão, Tomires, o garoto Duca (que vem substituindo o
goleador Índio, lesionado). Súbito, o choque que estaca todos em um
pesado imobilismo, deixa atônitos até mesmo os curiosos que por
acaso estão por perto.
As
últimas duas camisas são destinadas a Servílio e Dida. Estão fora
Jadir e Paulinho.
Ninguém
entende absolutamente nada. Em silêncio, parvos, os jogadores
realizam o treinamento, cumprindo as instruções de Fleitas. O
aguçado olhar do Feiticeiro percebe alguns focos de inquietação cá
e lá, mas Solich age com naturalidade, não denuncia o menor sinal
de indecisão ou vacilo. O treino é encerrado, e no ato algumas
rodinhas se formam, enquanto o treinador vai ganhando o rumo do
vestiário.
Fleitas
Solich sabe que o time não vem bem e anda em declínio. Também tem
plena consciência de que a temporada não foi fácil, o grupo, após
a (relativamente) tranquila conquista do bicampeonato em 53-54,
começou a dar sinais de acomodação, cujo expoente maior foi o
craque Rubens, que tanto aprontou que acabou afastado do elenco, numa
briga que até hoje traz sequelas. Há jogadores que perderam a
flama, o medo, o temor da competição interna e se julgam titulares
vitalícios, sabe o Brujo. E as consequências começaram a se
mostrar na forma de aviso, no terceiro turno do campeonato, em que o
Flamengo alcançou um desastroso quarto lugar, o pior desempenho da
equipe em três anos. E a goleada na final mostra enfim a Fleitas que
a necessidade de mudar é premente. Convicções precisam ser
revistas, ideias repensadas. Do contrário, o preço será a perda do
sonhado tricampeonato.
Do ponto
de vista meramente técnico e tático, Fleitas Solich percebe que o
sistema defensivo do Flamengo anda muito vulnerável no jogo aéreo,
peculiaridade da qual o troncudo e grandalhão atacante Leônidas da
Selva (não confundir com o craque Diamante Negro) tem se servido nas
finais. O Feiticeiro também percebe que, com a lesão de Índio, o
ataque flamengo perdeu consistência, em nada lembrando o tal Rolo
Compressor. Sem movimentação e entrosamento, o time vem sendo
facilmente neutralizado pelas defesas adversárias.
As peças
a serem sacrificadas não são propriamente iniciantes. O
médio-direito Jadir (posição precursora da atual lateral-direita)
forma há anos com Dequinha e Jordan uma das melhores linhas do país.
Jogador extremamente voluntarioso e raçudo, é um dos atletas mais
queridos da torcida, que costuma exaltar suas costumeiras
demonstrações de garra. No entanto, Jadir não atravessa boa fase,
e nas duas partidas das finais foi envolvido pela ala esquerda do
ataque americano, formada pelo irrequieto Romeiro e por Leônidas.
Mesmo assim, ninguém imagina que esteja em risco a posição de um
dos mais sólidos titulares da equipe.
Já o
atacante Paulinho é simplesmente o artilheiro do campeonato e vive a
melhor fase de sua carreira, coroada com a convocação para a
Seleção Brasileira. Protagonizou a (até aqui) maior atuação
individual do campeonato, ao marcar 3 vezes nos 6-1 impostos ao
Fluminense no segundo turno (o jogo que acabou com a carreira do
goleiro Veludo). Insinuante e de faro goleador, Paulinho é um dos
principais nomes do campeonato. Não atravessa um grande momento (não
marca gols há seis jogos), mas é reconhecidamente uma das armas do
Flamengo para a busca do título. Mas o Feiticeiro tem outros planos.
Os
escolhidos são Servílio e Dida. O primeiro é um defensor duro,
ríspido e um verdadeiro “bate-estaca” na área, jogador muito
difícil de ser batido pelo alto. O que lhe falta em habilidade lhe
sobra em vigor físico e especialmente na capacidade de intimidação.
Já Dida, que é tratado como uma “joia sendo lapidada”, é um
atacante extremamente talentoso, de velocidade alucinante e índole
goleadora, o que inclusive mostrou em alguns jogos, como o
inesquecível clássico contra o Vasco (2-1), em que transformou o
consagrado médio-volante Eli do Amparo em um “jovem desamparado”,
segundo os jornais. Mas Dida, ainda muito jovem, acanhado e tímido,
aparentemente não tem o estofo necessário para a disputa de um jogo
final, de uma decisão. Isso é o que diz a lógica.
Mas
Fleitas banca as duas alterações. Troca um dos ídolos do time por
um reserva esforçado e substitui o artilheiro da equipe por um
garoto acanhado. E não dá o menor sinal de arrependimento.
Chega o
dia do jogo. O Maracanã explode em um dos maiores públicos de sua
história. Estima-se mais de 200 mil pessoas no estádio, pois os
portões estão arrombados por uma multidão histérica. O Presidente
Juscelino Kubitschek está nas tribunas. Tudo aponta para uma das
partidas mais emblemáticas da história.
Como
esperado, a decisão de Fleitas repercute mal no grupo de jogadores.
Paulinho, de temperamento mais contemporizador, reconhece em
entrevistas a má fase e demonstra aceitar a opção do treinador,
embora manifeste seu descontentamento com os colegas. Mais virulenta
é a reação do passional Jadir, que chuta portas, xinga litros e
vai atrás do presidente Fadel Fadel. “Quero minha rescisão de
contrato, estou sendo posto de bode expiatório, assim não pode
ser”. Fadel o acalma, “tenha tranquilidade, espere passar o jogo,
pense melhor, não se faz nada de cabeça quente”.
O
Feiticeiro sabe que as medidas são impopulares. Não está atrás de
amor, está buscando vitórias. Tem a ampla certeza de que o respeito
e a credibilidade se conquista dentro do campo, não fora dele. Não
é bobo, sabe que os jogadores também estão descontentes com a fase
do time, e no fundo anseiam por mudanças. Mais do que gostar,
jogador admira e aprecia o comandante que demonstra segurança,
firmeza e capacidade. O líder que ousa, age e ajuda os comandados a
devolverem resultados. O comandante que, mesmo de temperamento
odiado, fará com que todos cresçam profissionalmente.
É nisso
que Fleitas aposta. Sabe ser admirado, reverenciado, até quase
temido, pelos jogadores que não se cansam de mostrar espanto com a
forma como o treinador é capaz de fazer alterações táticas
profundas sem mexer em nenhum jogador em campo (até porque
substituições são proibidas). E nesse momento de turbulência, irá
se impor com a demonstração viva de que tem a mais absoluta certeza
do que está fazendo. A história despreza os volúveis, os frágeis,
os que se sujeitam as contingências e por elas são subjugados.
Preleção
no vestiário. Antes, alguns jogadores tentam interceder pelos
jogadores barrados. Mas Fleitas ignora os argumentos. E, em seu curto
discurso, limita-se a dizer, com sua voz empostada, sotaque ainda
algo carregado, “Esqueçam o antes, o durante e o depois. Vivam o
agora. Ganharemos esse título. Seremos campeões. Eu confio em
vocês. Apenas o que peço é que confiem em mim. Deem seu máximo.
Joguem na plenitude, e vocês farão feliz essa torcida aí fora mais
uma vez.”
“Apenas
confiem. E lutem.”
* * *
1- O
Flamengo derrotou o América por 4-1, tornando-se tricampeão
estadual. A grande figura da partida foi o jovem Dida, que marcou os
quatro gols da decisão. Dida, ao lado do jovem Duca, com quem havia
formado dupla nos aspirantes, mostrou-se inteiramente à vontade no
jogo, como previra Fleitas. Servílio foi apontado como o outro
destaque, tendo anulado inteiramente o atacante Leônidas, que teve
atuação apagada. Como
também planejou o Feiticeiro.
2 - Apesar da ameaça, Jadir não rescindiu com o Flamengo. Permaneceu atuando pelo rubro-negro até 1962. Até hoje é lembrado como um dos principais jogadores da história do clube.