1987.
O
cenário é desolador.
Poucas
vezes a Gávea terá respirado ares tão confusos e nervosos como o deste
princípio de outubro. Há uma embarcação que parece singrar completamente à
deriva, sem norte, sem rumo, sem comando, sem nada.
As
perspectivas parecem sombrias.
O
grupo de jogadores bate cabeça, reflexo de uma campanha pífia e incompatível
com a dimensão e o porte do Flamengo. Três derrotas em cinco jogos e uma
pontuação que resvala as últimas colocações da competição.
E
não se consegue um diagnóstico de consenso.
Defensores
acusam abertamente a falta de qualidade nas finalizações ofensivas. “O ataque
não conclui as jogadas, não ajuda na marcação”. Outros são ainda mais
contundentes, “faltam atacantes de qualidade”. Os atacantes devolvem, “a defesa
não marca, o meio-campo só cerca”, os meias acusam todos os outros. Jogadores
como Andrade, Renato e Nunes trocam farpas mútuas e públicas, em uma situação
que foge ao controle do inexperiente treinador Carlinhos, que, apesar de estar
há quase um mês no cargo, ainda não parece ter se livrado das amarras da
interinidade.
Além
de seu temperamento arredio e introspectivo, Carlinhos, que conta com a aberta
desconfiança da crônica e de parte da torcida, ainda padece com as sucessivas
lesões que o impedem de formatar o esquema que julga ideal para a equipe, uma
emulação do desenho adotado por seu antecessor, Antonio Lopes, no Terceiro
Turno do Estadual, com Renato e Bebeto flutuando no ataque sem posições fixas,
Zico um pouco atrás na armação e dois meias aguerridos ajudando Andrade no
bloqueio do meio-campo. Sem Adalberto (que, indo e voltando, ainda vive o drama
da fratura sofrida um ano antes) e Marquinho (negociado com o Atlético-MG),
recorre aos garotos Leonardo e Zinho, além de efetivar o raçudo Ailton no lugar
de Júlio César. No entanto, várias lesões acabam atrapalhando o trabalho do
Violino.
Edinho
está fora, recuperando-se dos socos criminosos desferidos por Geovani no jogo
contra o Vasco. Leandro (que já não consegue manter uma sequência de jogos) é
outro afastado. Bebeto também se machuca, músculo. Leonardo, após boa estreia,
cai assustadoramente de rendimento e está ameaçado de barracão. Jorginho anda
aborrecido com a sua renovação de contrato que ameaça virar novela.
E
há Zico.
Com
o joelho enfim estabilizado após dois anos de agonia e duas cirurgias
arriscadas, o Galinho agora sofre com as seguidas e sucessivas lesões
musculares. Em três meses de atividade, o ídolo flamengo já conviveu com três
lesões sérias (apenas uma decorrente de pancada) e, em um momento de desabafo,
chega a cogitar abandonar a carreira. Zico ainda lida, pela primeira vez na
carreira, com sérias desconfianças e contestações, que partem da imprensa e de
conselheiros do Flamengo, refletido na traumática renovação do seu contrato, em
que alguns membros da diretoria manifestaram-se abertamente contrários, e foi
necessário que o presidente bancasse pessoalmente a operação. Sempre sério,
sempre profissional, Zico segue treinando, em busca, pela enésima vez, ganhar
condições de jogo para, quem sabe, retornar aos gramados e enfim manter uma
sequência de jogos, voltando a ser útil, importante e decisivo.
Mas
agora, com o clube afundado em crise, isso parece distante.
Com
as contusões, Carlinhos precisa garimpar talentos em um elenco escasso. Volta a
recorrer ao veterano Nunes, que exibe em seu futebol visíveis sinais de
decadência, além de um temperamento cada vez mais irascível, deteriorando
rapidamente seu ambiente no grupo. Outro recrutado é o esquecido Kita, que
apenas espera o final do seu contrato para ser negociado. Na defesa, os jovens
Zé Carlos II e Aldair voltam a ter chances. Esse é o time que, desfigurado, vai
se preparando para a sequência da competição, escorado justamente nos dois
jogadores que têm se desentendido em público, Andrade e Renato, os únicos a
serem seguidamente elogiados por suas atuações (aliás, Renato é um caso à
parte, enfim parece ter reencontrado a forma após seis meses indo e vindo ao
Departamento Médico).
A
tabela marca o Coritiba, no Maracanã.
Desmotivado,
desunido e desfigurado, o Flamengo ainda sofre com mais uma crise, que explode
na véspera da partida. Os principais lideres das torcidas organizadas, que há
alguns anos se arrogam o direito de falar “em nome da torcida”, avisam que “não
se responsabilizarão” caso o time experimente novo insucesso. A mensagem, que
nada tem de cifrada, remete aos momentos de terror protagonizados pelos mesmos
atores no início do ano em Niterói (jogadores e repórteres apedrejados após uma
derrota para o Americano) e Mesquita (novo quebra-quebra após um empate com o
time local). Fraca, temerosa e buscando a diplomacia, a diretoria praticamente
oferece a cabeça de Carlinhos aos baderneiros, em caso de revés.
O
Flamengo está às portas de uma hecatombe.
O
Coritiba é um franco-atirador, faz campanha razoável, parece mais satisfeito em
ter revelado o talentoso meia Milton (o que renderá importante aporte de
recursos no futuro com sua venda). Ironicamente, seu nome mais conhecido é
Adílio, que irá enfrentar o clube de coração poucos meses após ter sido de lá
escorraçado, em uma manobra covarde em que a responsabilidade pela dispensa
recaiu exclusivamente sobre o treinador Antonio Lopes (demitido poucos dias
depois).
Maracanã
gelado. Começa a partida.
O
time, escalado com três atacantes (Renato, Nunes e Kita, que veste a 10), não
se entende, a bola queima no pé, vê o Coritiba melhor. Vaias. Palavras de
ordem. Fora fulano, fora beltrano. Falta na intermediária flamenga, lado
direito. A bola na área, rasteira, Tostão escora e Marildo emenda devagar, colocado,
um chute defensável que mesmo assim entra. Coritiba 1-0. Seis minutos de jogo.
Os
torcedores (os organizados) se esquecem do jogo, fazem “passeatas”, ensaiam
invadir o gramado, praguejam contra a diretoria, contra Carlinhos. O time segue
errando tudo. Receosos, alguns já se posicionam perto da saída. Vai ter
confusão. O Flamengo parece afundar em crise.
O
Flamengo morreu, decretam alguns.
Renato
lança Jorginho, que avança pela direita e cruza. A bola sai errada, mas o
goleiro Rafael se atrapalha e não chega. O zagueiro Vagner chega para escorar.
Vem confiante, está sozinho, a bola parece fácil.
Tudo
indica que irá controlar o lance. Tudo indica. Todos os prognósticos. Toda a
expectativa. Toda a opinião.
Mas
Vagner escora mal. É gol.
Começa
a reação do Flamengo. No jogo. No campeonato. Na vida.
Como
as coisas são, desde sempre.
(O Flamengo venceu a partida por 3-1, com direito a um gol de placa do contestado Kita. A vitória foi fundamental para devolver a tranquilidade à equipe que, aos poucos, foi se reorganizando e, numa arrancada fulminante, partiu para a conquista do tetracampeonato brasileiro, comandada por Bebeto, Andrade, Renato. E, principalmente, Zico).