Saudações flamengas a todos.
Vai começar a trajetória do Flamengo em mais uma Taça Libertadores, campeonato cuja ânsia por mais uma conquista começa a crescer em cada torcedor. Aproveito e conto um pouco da história da passagem de uma personagem cuja contribuição para o título de 1981 parece ser maior do que a posteridade registrou.
Boa leitura.
* * *
Certamente
há vantagens em jogar futebol profissional.
Mas
seguramente uma delas não é a obrigação de manter-se concentrado,
longe da família, dos amigos e das tentações cotidianas,
enclausurado junto a vários colegas de profissão com os quais se
compartilha uma rotina entediante e previsível.
É
exatamente o que está vivendo o grupo de jogadores flamengos,
instalado no nobre e vetusto casarão que se reveste de hotel.
Separados em bolsões de afinidade pessoal ou de simples afazer, os
atletas entregam-se a atividades emocionantes como uma roda de
carteado, um duelo no totó, uma rodada de dominó ou uma simples
conversa fiada, cujo objeto provavelmente não é o perfil técnico
ou tático do Olimpia, o próximo adversário.
Um ou
outro grito mais animado por vezes rebenta no silêncio de uma tarde
que se arrasta preguiçosamente, engessada no incurável tédio de
uma rotina minuciosamente repetida por dias e dias, semanas e meses e
anos.
Até que
alguém entra, esbaforido, resfolegando. Aos gritos.
“Caiu,
o Dino caiu!”
Copos se
quebram, o baralho voa, todos, rigorosamente todos param o que estão
fazendo em busca de detalhes. Há incredulidade, surpresa. Vários
lamentam. Nem todos.
* * *
O
Flamengo não vive um bom momento nesse início de 1981. A frustrada
tentativa de conquista do tetracampeonato estadual cobra seu preço,
e Coutinho, visivelmente desgastado com torcida, diretoria e
jogadores (barrou vários titulares, como Nunes, Carpegiani e Luís
Pereira) acaba entregando o cargo. Entra Modesto Bria, que desde o
início não se mostra capaz de administrar a vasta oferta de
problemas que lhe aparece. Sem os principais jogadores (Zico, Júnior
e Tita), que estão disputando as Eliminatórias pela Seleção, Bria
não consegue construir uma equipe-base. Para piorar, precisa
administrar os vários problemas de relacionamento que vão pipocando
aqui e ali (como o de Nunes, que vai aos jornais reclamar de um
suposto boicote de jogadores), o inconformismo de alguns jogadores
com a reserva e mesmo o de titulares que não aceitam atuar fora de
posição. Impotente, vê o rodado Luís Pereira se escalar
praticamente no grito para um jogo contra o Itabaiana-SE, enquanto a
diretoria, farta do comportamento de alguns atletas, tenta se
desfazer de vários jogadores, sem sucesso (os clubes compradores se
assustam com os salários praticados na Gávea). Nesse contexto, o
desempenho do time em campo é pífio e irregular, capaz de exibições
impecáveis (8-0 Fortaleza) e de vexames constrangedores (0-3
Paysandu, em uma das melhores partidas de Raul no Flamengo, evitando
um massacre). O destaque da primeira fase é o recém-contratado Peu,
que brilha em algumas partidas periféricas (como a vitória por 3-2
sobre o CRB, em sua Maceió).
É quando
o próprio Bria resolve dar o basta e se demite. A diretoria vai
atrás de um nome que implante uma mentalidade mais profissional,
disciplinadora. E se chega a Dino Sani.
Um dos
melhores volantes da história do futebol brasileiro, campeão do
mundo como jogador em 1958, Dino Sani é cria do futebol paulista e,
após pendurar as chuteiras, também constroi sólida carreira como
treinador, cujo ponto alto é o início da montagem do Internacional
que irá dominar o futebol brasileiro dos anos 1970. Com olho clínico
para a revelação de jogadores (efetivou Falcão e Carpegiani), Dino
se sobressai pela busca do aprimoramento de fundamentos, pelo
perfeccionismo e, principalmente, pela implacável observância aos
princípios de hierarquia e disciplina, potencializada por seu
temperamento forte e explosivo. Definitivamente, é o tipo de
experiência com a qual os jogadores do Flamengo não estão
acostumados.
Modesto
Bria ainda dirige o Flamengo na segunda fase, em que, já com os
jogadores de volta da seleção, consegue uma árdua classificação,
superando o perigoso Colorado-PR na última rodada (2-1, virada, dois
golaços de Zico).
O início
do trabalho de Dino Sani já é polêmico. Improvisa Tita na
ponta-esquerda, o que provoca fortes reclamações do jogador (e uma
advertência). Depois, o treinador desiste e resolve trazer Tita de
volta para o meio, agora deslocando Adílio para a ponta. Mais
queixas, mais problemas. Desfigurado, desunido e desmotivado, o
Flamengo não vai longe no Brasileiro.
Para a
continuidade da temporada, Dino Sani identifica vários pontos a
serem atacados. Cisma com Raul e seus descontraídos métodos de
treinamento, entra em atrito com o goleiro e o barra, apesar de não
confiar no inseguro Cantarele. Insatisfeito com o futebol vistoso de
Leandro (em quem identifica excesso de firulas), efetiva o aplicado
Nei Dias na lateral. Adílio, indisciplinado taticamente, é afastado
do elenco e colocado à venda, bem como Fumanchu. O zagueiro Luís
Pereira, que em nenhum momento justificou sua cara contratação, é
negociado com o Palmeiras em troca do ponteiro Baroninho. Também
chega o jovem e irrequieto ponta-direito Chiquinho, do Olaria. E
Lico, retornando do Joinville e encostado, agrada a Dino, que o
reintegra ao elenco.
Mas a
principal queixa de Dino Sani está na preparação física. O
treinador exige a realização de uma inter-temporada e o
cancelamento dos amistosos previamente marcados. A diretoria resiste,
mas diante da insistência de Dino (que inclusive ameaça se demitir)
resolve-se dispor de um período de 12 dias para que os jogadores se
condicionem melhor fisicamente. Essa medida se mostrará fundamental
meses mais tarde, no desgastante final da temporada.
Além
disso, Dino, ao estreitar a convivência com o grupo, começa a
transmitir sua vasta experiência nas coisas do futebol
sul-americano. Com longas passagens em times como Boca Juniors
(jogador e treinador) e Peñarol (treinador), Dino conhece em
minúcias as nuances das equipes que costumam disputar a
Libertadores, a grande ambição flamenga para a temporada. E vai
mostrando aos jogadores como se comportar diante das arbitragens, que
tipo de provocações e ofensas esperar, como irritar os jogadores
dos outros países, como escapar das faltas violentas (“os
zagueiros costumam entrar com o pé meio dobrado, aí atinge bola e
tornozelo, machuca você e não é marcada falta”), entre outros
truques. Um dos mais entusiasmados é Nunes, que passa a utilizar
artifícios como besuntar suas pernas em fartas camadas de gelol,
para, no calor da luta, lambuzar suas mãos e esfregá-las nos olhos
dos zagueiros (em cruzamentos é fatal). Ou chupar cubos de gelo e
arremessá-los no rosto dos adversários. São horas e horas de um
verdadeiro treinamento intensivo com um especialista nas manhas e
mutretas do futebol hermano.
Aos
poucos, o trabalho começa a dar resultado. Apesar de um início
instável, o Flamengo conquista a Taça Guanabara, apresentando na
trajetória alguns momentos convincentes, como a vitória sobre o
Vasco (1-0) ou mesmo brilhantes, como os sonoros 7-0 sobre o
Americano ou a inesquecível excursão a Napoli, com autoritários
dez gols em duas partidas. Alguns jogadores, como Zico, Júnior,
Leandro (de volta ao time) e Nunes estão voltando a render o que
sabem, enquanto Dino vai dando espaço a revelações como o jovem
Mozer. Além disso, o time consegue um heroico empate contra o
Atlético-MG no Mineirão (2-2, revertendo uma desvantagem de dois
gols) e goleia sem dificuldades o Cerro Porteño (5-2 no Maracanã),
assumindo a liderança de seu grupo na Libertadores.
Mas o
temperamento forte de Dino continua fomentando crises. Certo dia,
Andrade se atrasa em trinta minutos, é advertido e expulso de um
treino, o que causa choque, especialmente pelo histórico exemplar do
jogador. Adílio, novamente no time, é orientado a atuar na
ponta-esquerda em um Fla-Flu. Desobedece, o Flamengo perde o jogo e
Adílio é novamente afastado, somente retornando ao grupo após um
humilhante pedido público de desculpas. Tita segue forçando sua
saída, inconformado com a ponta. Rondinelli, que a cada dia perde
mais espaço com Mozer, vai aos jornais reclamar publicamente da
reserva. Enfim, o ambiente até pode ser bom, mas está longe de
apresentar leveza.
E vem a
gota d'água.
Estreia
no Segundo Turno, Maracanã, Serrano de Petrópolis. O Flamengo vai
vencendo (1-0). Falta na entrada da área flamenga. O jogador
petropolitano não cobra direto, bate fraco, só pra encobrir a
barreira, jogada ensaiada, outro atacante vem na corrida. Mozer vira
de costas, posiciona-se, acompanha a bola e se antecipa. Mas, ao
invés do chutão ou do toque fácil a Cantarele, tenta aparar a bola
no bico da chuteira, qual um domingos. Algo sai errado, e Mozer perde
o controle da bola. O atacante chega batendo, e por pouco o Serrano
não empata. Encolerizado, Dino tira Mozer da partida de imediato. O
jovem zagueiro sai de campo aos prantos. Dino vai aos jornais e cospe
vespa contra a atitude “anti-profissional” do jogador, anunciando
sua imediata barração. No entanto, volta atrás e confirma Mozer
para o jogo contra o Olimpia, o que enfurece Rondinelli, que se
queixa de “falta de respeito” nos jornais. A Gávea de repente se
vê imersa em crise, às vésperas de uma partida importantíssima
pela Libertadores. É quando o presidente Dunshee de Abranches,
também conhecido pelo seu temperamento forte, resolve intervir na
questão. É taxativo. “Dino está fora”.
A notícia
cai como uma bomba nos meios esportivos. Afinal, o Flamengo é o
campeão da Taça Guanabara, líder na Libertadores e já está na
final do Estadual. Apesar dos atritos, o grupo de jogadores
comporta-se corretamente, atuando com empenho e aplicação, sem o
menor indício de corpo-mole. Mas está feito. Para o jogo contra o
Olimpia, o recém-aposentado Carpegiani assume de improviso enquanto
a diretoria tenta a contratação de Nelsinho Rosa, campeão em 80
com o Fluminense. Os principais líderes do elenco (exceto Raul)
oferecem um almoço de desagravo a Dino, que curiosamente ao sair se
mostra descontente mas sem qualquer mágoa com os jogadores.
O
Flamengo seguirá sua trajetória, ainda precisando de um tempo até
o ajuste e o encaixe final de suas peças, que redundará no período
mais glorioso de sua história, uma Era festejada ontem, hoje e
sempre.
Uma
caminhada que, entre vários fatores, se deve a algumas medidas impopulares e
enérgicas do controvertido Dino Sani.